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juillet / décembre 2010 - julho/dezembro 2010

Hildegard von Bingen: Nota Breve*

Norma Telles

 

Resumo

O texto traça um rápido perfil da compositora, poeta, visionária, cientista natural, filósofa Hildegard de Bingen. Personalidade pública, ela viajou atendendo a convites para preleções, foi atuante na política de sua época. A amplitude de suas realizações exige hoje a competência de especialistas de inúmeras áreas de saber. Aqui se esboça um quadro de sua vida, seguindo, especialmente, alguns rastros de suas belíssimas composições e canções para os ofícios nos mosteiros beneditinos que fundou, construiu, administrou. Hildegard é a única compositora do século XII conhecida por seu nome e nos legou um amplo corpus musical.

Palavras chave: Hildegard – compositora – visionária – escritora

 

“Uma pobre e frágil mulher”

Henrique, o quarto deste nome, governava o Santo Império Romano quando nasceu, no vale do Reno em um local conhecido como Bermersheim, uma menina - filha dos nobres Hildebert e Mechthilde - a quem foi dado o nome de Hildegard e que foi destinada ao convento como o ‘dízimo’ para Deus, por ser o décimo filho daquele casal. Corria o verão do ano de 1098.

O relato acima faz parte da Vita, Vida de Sta Hildegard, finalizada depois de sua morte. O título já diz o propósito da obra, é uma hagiografia com fins de canonização pela igreja. Enquanto tal, não pretende oferecer descrição objetiva, mas realçar o miraculoso, a intervenção do poder divino. Oferece também validação para a profeta discernindo a mão de Deus em todos os aspectos de sua vida.

A Vita, apesar de sua proposta, é uma das melhores fontes para os historiadores, pois permite comparar três perspectivas diversas a respeito da vida de Hildegard: a sua própria quando narra na primeira pessoa; a do monge Volmar que foi seu professor e depois secretário e a pessoa a quem ela ditou parte de suas obras, e, a de uma terceira pessoa, um outro monge, que não a conheceu em vida e que terminou a Vita dessa beneditina renana que tanto admirava, procurando encaixar os fatos no esquema de santidade. Existem também outras fontes, dois prólogos nos quais ela conta momentos de sua vida relacionados à escrita; alguns mapas e documentos pertencentes aos monastérios, e, melhor ainda, sua vasta correspondência - em torno de 390 cartas - que testemunha a importância de sua figura pública, pois as missivas foram preservadas, copiadas, coletadas. “A amplitude e os assuntos da correspondência de Hildegard sugerem que ela serviu como abadessa para o mundo (Ferrante:1998:91)”, e descrevem suas posições em algumas das inúmeras polêmicas em que esteve envolvida durante toda vida.

As cartas falam pouco de seus sentimentos, não porque não desejasse se expor, mas porque o que buscavam dela era a palavra de Deus através da prophetissa teutonica.  As cartas funcionaram principalmente como meio de enviar a mensagem divina que, com freqüência, é um ataque à corrupção, ou correção dos vícios dos grandes ou pequenos. Foi muito dura, por exemplo, com o rei Henrique II da Inglaterra, porém mais gentil com sua esposa, outra mulher de renome e prestígio, Eleonora de Aquitania (1122-1204), sugerindo maneira dela se livrar de atribulações. Com as autoridades eclesiásticas Hildegard era bem mais exigente visto estarem elas envolvidos com a salvação das almas.

Hildegard, foi sempre acometida por enfermidades, tinha a saúde o que atualmente os médicos, especialmente Oliver Sacks interpretam como males decorrentes de crises de enxaqueca. De qualquer modo, ela, a despeito das doenças, desempenhou incontáveis atividades. Fundou um convento em Rupertsberg, perto de Bingen, cuja construção dirigiu pessoalmente. Quando esse Monastério, que ficava na margem do Reno onde deságua o Nahe, se tornou pequeno, fez construir Einbingen, em frente, na margem direita do rio, em uma bela região de vinhedos e vinícolas famosos, pontuada por castelos e torres que seria fonte de inspiração para os românticos do século XIX. O mosteiro de são Rupert, foi destruído, em 1632, pela invasão sueca e a segunda fundação de Hildegard, em Einsbingen continuou habitado pelas monjas até o inicio do século XIX quando foi desativado na onda da secularização napoleônica. Em 1907 as monjas voltaram e até hoje está aberto e funcionando.

Filósofa, compositora, dramaturga, a obra de Hildegard sobreviveu aos séculos; polemista, sua voz foi aceita como autoridade pela igreja; escritora,  além da justamente famosa trilogia de obras visionárias sobre doutrina, ética e ciência, cujos manuscritos contêm belíssimas ilustrações, escreveu sobre ciências naturais e medicina, discutindo, entre outros assuntos, a sexualidade e a ginecologia a partir de uma perspectiva feminina; e criou uma língua desconhecida, Lingua ignota, com substantivos imaginários e um ‘alfabeto secreto’, não se sabe bem com que finalidade, talvez médica porque no vocabulário estão algumas palavras para as ervas.

       “Em algumas áreas seus ensinamentos parecem ser social e religiosamente conservadores, enquanto em outras ela esteve na vanguarda do pensamento do século doze ou desenvolveu ideias completamente novas [...] De muitos modos foi “transgressora”, quebrando os tabus sociais de gênero de sua sociedade com impunidade, mas de modo algum foi herege (Newman:1998:2)”.

A vida e a obra dessa mulher polímata, conhecida em sua época como a “Sibila do Reno”, teria sido - observa Newman com vários outros estudiosos - extraordinária em qualquer época.

A vida e os tempos de Hildegard de Bingen (1098-1179)[*]

No século XII o Ocidente adquiriu maior unidade e desfrutou uma vitalidade nova. As invasões que no passado por várias vezes destruído campos e cidades haviam cessado e a economia se renovou; surgiram novas tecnológicas, e movimentos intelectuais e educacionais e núcleos de ensino, alguns dos quais como o da Catedral de Paris, onde ensinou Abelardo, se tornaram famosos e outros formaram os núcleos das primeiras universidades. As modificações na organização social, por outro lado, mostram a fixação de linhagens masculinas que privilegiam os primogênitos e excluem as mulheres da herança a não ser por um pequeno dote. A maioria dos historiadores concorda: esse foi um século misógino, como serão os seguintes, onde prevalecem não só as ideias misóginas do clero sobre o papel da mulher na sociedade, mas também as elaboradas por leigos contemporâneos.

Esses foram tempos de guerras, peste, disputas religiosas e de idéias; de lutas entre bispos e senhores poderosos, cismas no papado, conflitos entre papas e imperadores que acabavam por atingir a todos. A igreja dominava os costumes e dava coesão a uma ampla área geográfica no Ocidente. Ao mesmo tempo, nesse século a igreja foi forçada a aceitar transformações, a enfrentar a heresia dos Cátaros a qual Hildegard se opôs publicamente; a aceitar a nova ordem de Cister liderada pela figura carismática de Bernardo de Clairvaux desafiando em alguns aspectos os beneditinos; o nascente movimento dos mendicantes, brigas por relíquias ou benefícios lucrativos, discussões sobre o celibato clerical (L’Hermite-Leclercq:1990). Em contraste, a ordem de Hildegard conservou o caráter aristocrático dos beneditinos tradicionais, os ‘monges negros’. Por outro lado, houve uma retomada dos valores do inicio do cristianismo e o ascetismo ganhou relevo e prestígio.

A Germânia onde nasceu Hildegard era composta por quatro grandes ducados que se recuperaram mais rapidamente do caos político resultante das invasões, embora a estabilidade da monarquia e das instituições  não tivesse bases sólidas. A falta de governo centralizado permitiu que houvesse aumento da autoridade de duques, margraves e condes e que os bispos que possuíam direitos temporais aumentassem seu poder com o desenvolvimento urbano. Todos esses personagens estavam sempre prontos a travarem combates entre si.

Os reis governavam em nome de Deus e protegiam, ou se opunham a Igreja. Havia ainda o Imperador do Sacro Império, na época de Hildegard, Frederico Barba Ruiva, alguém com grandes ambições territoriais. O envolvimento de imperador ou reis com a reforma do papado, no entanto, teve conseqüências inesperadas e para eles desastrosas, como guerra civil. Esses, na Germânia, foram anos de súbitos revezes de fortuna, de alternância de alianças em um mundo onde o mal e o bem flutuavam para lá e para cá.

Hildegard tinha uns oito anos, uma menina de saúde frágil que desde os três anos tinha visões, quando foi “oferecida a Deus para a vida espiritual”, e passou a viver em companhia de uma anacoreta, Jutta de Spanheim.  No dia de todos os santos, 1º de novembro de 1112, Jutta e Hildegard, então com quinze anos, foram emparedadas formalmente como reclusas e fizeram votos; outras duas meninas estavam com elas e ainda uma atendente. A cela ficava ao lado da capela de um mosteiro beneditino dúplice, o de São Disibod e tinha uma pequena janela por onde conversavam com visitantes em horas marcadas e pela qual eram passados alimentos.

O fechamento da cela de anacoretas era um rito litúrgico solene e a comparação com o sepultamento não era em vão. Empregavam-se hinos e respostas dos ritos funerários e o padre poderia até recomendar as almas como precaução caso viessem a falecer enquanto ali encerradas (Flanagan:1989:31). Hildegard em seus textos e cartas nunca se refere ao emparedamento, não fala sobre sua vida como reclusa, nem emprega uma frase “morrer para o mundo” muito em voga e relembrada no rito de fechamento  da cela. E há uma sutil diferença entre falar da “luz viva”, como ela fez sempre ou sobre a “luz eterna” à qual eram dirigidos os mortos. Por outro lado, ela conta como sempre tivera visões, desde a tenra infância, e como começara a silenciar sobre elas, temendo o que os outros pudessem pensar. 

Hildegard foi colocada no eremitério junto a anacoreta Jutta, bela moça de alta nobreza, filha de conde, que após uma enfermidade prometera, em troca da cura, não aceitar nenhuma das propostas de casamento e, para desespero dos pais, tornar-se reclusa. Jutta tinha uns seis anos a mais do que Hildegard e parece que como ela tinha poderes proféticos; ensinou-lhe os salmos, o que significa que também a ensinou a ler e escrever. O monastério, embora em local de antiga tradição, havia estado abandonado e só alguns anos antes delas ali se estabelecerem haviam começado as reformas.

A jovem Hildegard, cresceu ao som dos cânticos dos Ofícios da liturgia beneditina que escutava de sua cela e “cresceu cercada pelo barulho e azáfama de pedreiros e carpinteiros, uma experiência refletida nas ubíquas metáforas de arquitetura de seu Scivias (Newman:1998:6)”. A idéia de construir um edifício seria cara ao mundo de simbolismo de Hildegard, um de seus temas centrais, mas não só, seria também algo concreto em sua vida. Ela desenvolveu códigos de perspectivas próprios no tratamento das formas arquitetônicas e os empregou no Scivias. Algumas figuras mostram um tipo de planta, com muralhas indicadas por linhas ou por estruturas com ameias, outros desenhos a preocupação com o corte regular e carreiras de pedras que dão estabilidade até para as torres mais tortas; se as direções não estão consistentemente orientadas talvez seja porque as formas arquitetônicas, no todo, sejam mais simbólicas do que reais.

A vida na cela em São Disibod, nos primeiros anos foi, segundo Flanagan, isolada e silenciosa, mas, ao mesmo tempo, partilhada com uma mulher de certo poder espiritual e distinção mundana. Era uma vida austera quanto à alimentação e ao ambiente, mas uma vida onde a alimentação e proteção podiam ser tidas como certas, não causavam preocupações. As duas foram adquirido renome, pois  tratavam doentes com ervas e aconselhavam os visitantes. Os peregrinos faziam doações e afluíam cada vez em maior número.

Com o tempo, a cela acabou por se transformar em um pequeno convento beneditino, pois várias outras moças foram gradativamente se juntando a elas. Jutta morreu em 1136; Hildegard como sua sucessora natural foi escolhida magistra pelas companheiras e depois de longas negociações com o Abade e de uma grave enfermidade conseguiu o que desejava, licença para se mudar para um mosteiro próprio que, no entanto, permanecerá ligado ao dos monges de são Disibod, por isso formalmente ela nunca terá o título de abadessa, mas a designação era empregada assim mesmo por muitas pessoas.   

A escolha da região para seu mosteiro recaiu sobre uma bela região às margens do Reno onde deságua o Nahe, próximo a Bingen. E então as formas arquitetônicas que tanto prezava, foram-lhe úteis, deixaram de ser apenas simbólicas. Hildegard interferiu em toda as construções que fundou. O mosteiro em Ruperstsberg, a primeira construção que fez erigir - e provavelmente também o segundo que não é tão documentado - foi erguido seguindo contornos cuidadosos para atender as necessidades da comunidade. Era famoso não só pelo seu desenho arrojado como também por elementos funcionais modernos, principalmente as facilidades sanitárias e a água corrente em todas as áreas de trabalho (Schipperges:1997:18).  Iniciado em 1148, consagrado uns três anos depois, era um edifício já fora de moda se comparado com a abadia de São Denis em Paris, da década anterior, a primeira obra do novo estilo, o Gótico francês. Mas, lembra Caviness, para os padrões germânicos, parece ter sido precursor de catedrais famosas construídas mais tarde e, no todo, Hildegard merece crédito pelas novas formas de arquitetura que desenhou e construiu.

A partir de então começou a reivindicar também o papel de autoridade em matérias teológicas que irá transmitir através da música ou da sua trilogia visionária, manuscritos com lindas iluminuras executadas em seu escritório, sob sua supervisão. Nas ilustrações ela alterou tão radicalmente os códigos de iconografias da época que interferiu no significado. Por exemplo,

“O diabo comumente era representado como híbrido, com partes traseiras bestiais, uma máscara no genital (e/ou na região anal), traços faciais distorcidos e chifres. [no Scivias III 11.13-14] ela interpreta esse hibrido chocante como a igreja sitiada por ‘fornicação e assassinato e rapina’ e penetrada por ‘vícios fortes e loucura corrosiva’ (Caviness:1998:118)”.

É interessante que o papel subversivo do Anticristo seja retratado como violentador bestial, mas Caviness pensa que a hipérbole não “pegou” porque a norma iconográfica separava o ideal dos seres monstruosos, o que tornava o híbrido sempre maligno. Essa não é a única aparição do grotesco na obra da beneditina renana. “E através dos séculos o grotesco de Hildegard encontra ressonância em inúmeras auto-imagens de artistas feministas contemporâneas, que fragmentam e mascaram seus corpos para repelir o olhar masculino (Canvisses:idem)”. E a música de Hildegard também encontra ressonância, novecentos anos depois, em artistas como Meredith Monk, compositora e artista multimídia que percebendo pontos em comum com a abadessa gravou, em 1996, “Monk and the Abbess”.

Hildegard, lembra Newman (1987:21), oscila entre uma alegre afirmação do mundo e do corpo, e uma melancólico horror da carne – e seu mestre o diabo; uma  tensão enraizada em sua obra que pode até mesmo se tornar uma dicotomia, como por exemplo, um uso afirmativo do simbolismo sexual e uma visão negativa de sua prática.

No século XII, a educação que Hildegard recebeu foi parca se comparada com a recebida pelos meninos de seu estrato social; adulta ela sempre se refere a si mesma como indocta (não educada), e em certo sentido está correta. O mesmo vale para a música, que, diz, nunca ter aprendido. O caso de Hildegard foi diferente do de sua contemporânea Heloisa, escritora, que estudou em Argenteuil convento onde havia rica biblioteca, e recebeu notável educação clássica, ou ainda do de Herrard de Hohenbourg que coletou uma enciclopédia do saber patrístico a partir do rico acervo de livros à sua disposição.

Não tendo seguido o clássico trivium, nem estudado artes liberais, seu emprego da gramática em latim sempre foi vacilante e seu estilo  era tido como estranho, até idiossincrático ao invés de urbano e polido. Para os estudiosos contemporâneos, porém, seu estilo é altamente individual e atraente. No correr de sua vida amealhou enorme quantidade de conhecimentos, como transparece em sua obra, e no final era dotada de erudição prodigiosa.

O objetivo de sua auto-depreciação ao se referir sempre a si mesma como pequena, fraca, inculta, não era fazer um comentário sobre seu treinamento, mas enfatizar que a fonte de suas revelações eram divinas e não humanas. O poder do divino é tal que mesmo utilizando um vaso tão imperfeito quanto uma mulher, ele se manifesta em esplendor. “Sem essa evocação indispensável à profecia, sua carreira como uma escritora e pregadora teria sido impensável (Newman:1998:7)”.

Foi assim que começou a escrever:   

Eis que, no quadragésimo terceiro ano de minha jornada de passagem, eu me uni a uma visão celeste com medo e tremendo, vi uma luz muito forte da qual uma voz celestial falou e me disse: ‘oh frágil humano, [...] fale e escreva o que você vê e escuta (Scivias:1986:1)

. “Atravessada por ventos divinos”, Hildegard, não mais uma mulher passiva e sim uma mediadora ativa, hesita, mas após grave enfermidade acata a sugestão da “luz viva” (lux vivans) que ilumina o que é obscuro, e começa a escrever, isto é, a ditar suas visões a Volmar. A tarefa, no entanto, não era tão simples, embora no século XII as visões tenham se tornado um gênero literário e religioso aceito e difundido.

Este novo gênero, no qual alguns incluem a obra de Hildegard, agrega as poetas dos séculos XIII e XIV - como Hadewichj de Amberes que morreu na fogueira em 1340 e escreveu Amar o Amor, Marguerite Porète queimada pela Inquisição em 1340, Margarida de Oinge, as duas Matildes sendo que a de Magdeburgo (1207-1281) escreveu “O fluxo de luz da divindade”, a reclusa Juliana de Norwich ou sua contemporânea Margarida de Kempe, só para mencionar alguns nomes - ocorreu uma extrema diversidade das enunciações de mulheres. E, importante, místicas e monjas posteriores a Hildegard, cujos textos são em latim, empregaram em seus escritos as línguas vulgares, alemão, francês, flamengo, italiano, dando forma e poesis aos idiomas nascentes. “O espanto dos contemporâneos foi grande ao verem estas mulheres manifestarem-se no terreno teológico e abarcarem a amplitude das questões religiosas. A sua busca de Deus parecia específica [...] (Réginer-Bohler:1990:541)”.

            Hildegard contara para Jutta e para Volmar sobre suas visões, mas para prosseguir sua carreira era preciso obter licença da Igreja. Ela envia o Scivias, em 1146 ou 1147, para Bernardo de Clairvoux que então pregava a Segunda Cruzada. Ele respondeu brevemente dizendo que ela deveria agradecer o dom e fazer penitência. Um ano mais tarde, em outra viagem pela Renânia, acompanhando agora um ex-discípulo que se tornara o papa Eugenio III, Bernardo o informa sobre as Revelações de Hildegard e o papa nomeia uma comissão para examiná-las. O Scivias é aceito e divulgado pelo próprio pontífice que tomando o manuscrito em suas mãos, mostrou-o a todos os que estavam reunidos em um Sínodo. A notícia se espalhou e trouxe à Hildegard o reconhecimento como profetiza o e a tornou uma celebridade cuja fama só aumentou até o final de seus dias. A palavra profetiza tem significado diverso do nosso moderno, refere a alguém que fala a verdade do mundo, que diz como as coisas são e não, como entendemos hoje, que prevê o futuro.  

            “ A pobre e frágil mulher”, ego paupercula feminena forma - “uma pobre forma de mulher” -  como ela se designa é, antes de mais nada, uma formula de humildade que há muito era de praxe, mas ela bem percebia que seu gênero não dava apoio à sua vocação. Ao mesmo tempo, ao se designar deste modo, ela apela, inversamente, para o mesmo conjunto de ideias que desqualificavam as mulheres. “Todos os humildes serão exaltados”, como era o caso de Maria cujo culto prosperou naquele século, mas Maria também era cheia de graça e gloria. A “pobre e frágil mulher” podia ser exaltada até as altura “na condição que seu status normal permanecesse inferior e subserviente. A atividade de Hildegard como profeta poderia parecer divinamente poderosa só porque era humanamente impossível (Newman:1988:3)”. Hildegard, assim como seus contemporâneos, aceitou o paradoxo.

Ela também recusou explicar sua liderança carismática através do topos da “mulher viril”, embora alguns de seus correspondentes tenham empregado o termo ao se referirem a ela. Ignorou aquele modelo e desenvolveu aquela auto-imagem paradoxal que combinava a “frágil mulher” escolhida por Deus para envergonhar os homens fortes, com a exaltada virgem. O seu ideal de “castidade feminina unia virginitas com viriditas, a graciosa fertilidade que florescia tanto no espírito quanto no corpo. O ideal era corporizado em figuras como a “rainha dos céus” a Ecclesia cósmica ou as figuras divinas de Sabedoria e Caridade (Newman:1995:6).

“Essa poderosa e articulada teologia do feminino forneceu a suas monjas um ideal religioso que afastava a noção de inferioridade feminina ao mesmo tempo em que retinha a estrutura de uma piedade ortodoxa impecável. Ao mesmo tempo, o modelo da “mulher frágil” como vaso da profecia permitiu a abadessa desempenhar atos da quintessência masculina como pregar, ensinar e escrever sem ameaçar abertamente a ideologia da dominância masculina (Newman:1995:7)”.

Ao comentar as visões de Hildegard, Dronke emprega a palavra visio para designar três coisas: a peculiar capacidade ou faculdade visionária; a experiência dessa capacidade; o conteúdo dessa experiência. Hildegard foi uma visionária em sentido estrito, como ela mesma explicou em uma carta famosa: não tinha êxtases, transes ou via cenas em sonho; sempre estava acordada, mantinha o comando de seus sentidos, e mesmo assim, via coisas em cores vivas – montanhas, ovos cósmicos, esferas de luz tremulante, figuras colossais, pilares - e as via como quadros vivos ou em movimento.

“Eu sempre vi esta visão em minha alma”. Contava que a sua alma voava alto, até a abóbada celeste e se estendia por vários povos, mesmo que estivessem bem longe. A luz ela descrevia como muito mais clara que uma nuvem que carregasse o sol. Insistia que essa sombra da “luz viva” nunca ficava ausente de seu campo de visão. Outras vezes via dentro dessa “sombra” outra luz, a própria “Luz de Vida”, frases através das quais Newman pensa que Hildegard estivesse se referindo a experiência direta de Deus. Ela mantém uma distância consciente, isto é, não há fusão com o que ilumina, nem alienação, ou desconhecimento do que ocorre. Institui, a partir dessas visões, uma ordem baseada em signos e figuras de complexidade e beleza inigualáveis que traduzem para a linguagem simbólica das imagens os conceitos da filosofia, ao mesmo tempo em que esboça um quadro dinâmico e poético dos mistérios da criação.

Sinfonia do Cosmos  

O cosmos que retrata é complexo e ressoa as mais intrincadas e invioláveis harmonias, embora esteja em perene ebulição com o embate de forças inexoráveis em luta. As coisas de cima respondem as coisas de baixo, Alma, corpo e cosmos interagem em padrões tão dinâmicos quanto excêntricos, irradiado e penetrado pela Luz Viva mesmo no coração da dança cósmica onde o poder escuro ainda tem lugar, mesmo que seja para se ver prostrar em baixo dos pés de Amor. A alma frágil realiza seu precário caminho através do mudo sob a guia da Igreja e Império, sabendo que é livre e pode escolher, em todos os momentos, entre o bem e o mal, entre se rebelar ou obedecer.

Vivificado pelo constante fluxo do verdejar este é um cosmos esplêndido e vivo onde tudo se inter-relaciona. Hildegard percorre todos os temas da doutrina da Igreja, e a originalidade de suas formulações não deve obscurecer sua ortodoxia em sua abordagem da vida espiritual beneditina clássica. Porém, ela está também relacionada com a denominada tradição sapiente ,uma escola perene de pensamento cristão centrada na descoberta e veneração da divina Sabedoria nas obras da criação e redenção. Esta escola que vai dos primeiros séculos até o XXI tem predileção por certos temas como a beleza divina, o aspecto feminino de Deus, um ideal estético de virgindade entre outros. Em geral favorecem o uso de imagens femininas para o Espírito Santo, a Igreja e o cosmos.

Newman pensa que o gênero de Hildegard tem relação com seu  pertencimento a esta corrente de pensamento. Ela “foi o primeiro pensador cristão a lidar seria e positivamente com o feminino enquanto tal, não somente com os desafios colocados pelas mulheres em um mundo dominado pelos homens (Newman:1988:xxi). Hildegard formulou seu pensamento com os símbolos cristãos tradicionais que refletem os grandes paradigmas femininos de Eva, Maria e Igreja. No centro de seu mundo espiritual estão as figuras numinosas que denomina Sapientia ou Caritas: sagrada sabedoria e Amor divino.  

A teologia do feminino aparece e desaparece no transcurso dos séculos. No XII, esse pensamento de raízes neo-platônicas, foi ofuscado pela escolástica de Tomas de Aquino derivada da lógica de Aristóteles que se torna a doutrina dominante daí em diante. Durante o Renascimento, o novo humanismo proveu um solo fértil para que florescesse e também foi adotado pelos cabalistas cristãos, e mais tarde, por místicos luteranos no século XVII. No século seguinte se manifestou em figuras tão diversas como William Blake e Ann Lee, fundadora da seita dos Shakers. No vinte, teve um revival no Ocidente com a obra de Teilhard de Chardin e teólogas alemãs como Gertrud Von Le Fort ou Edith Stein e Maura Bockeler, entre outras manifestações. 

A visão cosmológica de Hildegard está em intima relação com sua teoria musical - a música como elemento de vida e de saúde - e com suas composições que exibem uma extraordinária criatividade.  

Sinfonia da Harmonia Celestial

 

            Hildegard compôs uma centena de canções e é tida por estudiosos – Simon, Fassler, Dronker – como a compositora mais original do século XII. É autora do primeiro drama musical que se conhece, o Ordo Virtutm, para o qual compôs mais de oitenta originais, além de umas setenta e sete melodias: antífonas, responsórios, hinos que ela própria agrupou em um ciclo referido como “A Sinfonia da Harmonia das Revelações Celestiais”. Fassler a considera a mais produtiva compositora medieval de canto monofônico a ser conhecida pelo próprio nome e lembra que ela foi a primeira a coletar sua obra, textos e musicas, e supervisionar a circulação inicial fora de sua comunidade.

Ela dividiu suas canções sacras em duas categorias; a Symphonia armonie celestium revelationum – Sinfonia da Harmonia das Revelações Celestiais, o ciclo de toas as peças litúrgicas conservadas e os textos que fazem parte do drama musical, o Ordo virtutum, O jogo das Virtudes (Fassler:1998:150), ou na tradução de Simon “O jogo dos Poderes Divinos”. Canções e peça, embora separadas, são relacionadas entre si em funções e ideias e pertencem a mesma moldura do esquema teológico e educativo de Hildegard.  

Arrumar as músicas litúrgicas em ciclos não era algo absolutamente novo, e este tipo de esquema adquiria então renovada popularidade. Por outro lado, bem diverso da prática comum era a compositora não seguir os procedimentos de contrafactura, isto é, usar melodias existentes e nelas colocar palavras novas ou compor melodias que poderiam ser cantadas com inúmeras líricas. “Ao invés disso, todas as suas peças combinam palavras e melodia para formar todos inseparáveis (Newman:199815)”. São excepcionais também em suas propriedades formais, pois escrevia sua lírica em versos livres no lugar dos metros clássicos, ou mesmo das novas estrofes rimadas. As melodias que criou são mais rapsódicas e de âmbito mais abrangente do que o canto gregoriano tradicional.

Dronke lembra que já em 1148 um professor parisiense, Odo, comentou a originalidade de suas canções. Mostra como Synfonia é conceito chave no pensamento de Hildegard, uma noção que ela discute tanto nos primeiros trabalhos quanto nos posteriores. Designa não só uma harmonia de diversas notas produzidas pelas vozes humanas e os instrumentos, mas também a harmonia celeste e a harmonia dentro do ser humano. A alma humana é sinfônica e “é essa característica que se expressa tanto no acorde interior da alma e do corpo quanto no fazer música dos humanos. A música é ao mesmo tempo terrena e celestial” e tem o poder de evocar, brevemente que seja, uma consonância paradisíaca anterior à Queda.

A linguagem poética de Hildegard, por outro lado, está entre as mais incomuns da lírica medieval europeia. Ela demonstra conhecer as imagens do amor místico do Cântico dos Cânticos, e certas figuras tradicionais, mas ao desenvolver essas imagens ou expressões “Hildegard se deleita em liberdade poética, e em levar diversos tipos de linguagem a seus limites”. Neste ultimo caso se enquadrariam suas ousadas metáforas mescladas, seu insistente uso de superlativos e exclamações, e construções intrincados nos quais vários particípios ou genitivos dependem uns dos outros (Dronke:1985:9).  

A música para a compositora era a suprema corporalização da alegria, jouissance. “A música, como a fragrância, é substância imaterial; surgindo na terra ela ascende aos céus, enchendo o ar com sua presença e chamando a alma a exaltar. Algumas líricas são quase um convite à dança (Newman:1987:181)”.  Luz e canção inextricavelmente fundidas, cada uma fluindo para dentro e para fora da outra, na junção onde Deus e corpo se encontram. Hildegard provavelmente compunha enquanto cantava a liturgia durante os Ofícios. Como no caso do latim, suas composições são diferentes das de sua época e muitas vezes excepcionais.

Ordo Virtutem é uma dessas composições excepcionais. Em 1970, conta Simon, quando Peter Dronke mostrou a peça aos medievalistas e músicos, não houve duvidas de aclamá-la como uma obra prima. Em 1927 uma edição do Ordo havia sido feita pelas irmãs da Abadia de Sta Hildegard em Eibingen, a mesma abadia que ela fundara em 1165, que corretamente identificaram a peça como um drama musical. Várias cópias e estudos haviam sido realizados, mas ninguém notara a genialidade da obra antes que Peter Dronke  publicasse sua pesquisa (Simon:s/d:6).

A peça, na gravação que possuo***, começa com o mesmo trecho do Scivias que citamos acima, no qual Hildegard informa que aos quarenta e três anos a luz ordenou-lhe escrever, colocado como se fosse uma primeira informação. No prólogo, segundo Dronke, surgem os profetas e patriarcas representando o Antigo Testamento e as Virtudes, os ‘Poderes Divinos’ personificando o Novo Testamento. O prólogo provavelmente era encenado com uma procissão. A protagonista da peça é Anima Felix (Alma Feliz) radiante por usar as roupas de seu corpo e que pede licença às Virtudes para ficar em sua alegre companhia. As dezesseis Virtudes prontamente a acolhem, mas Alma se perde por que não resiste aos apelos do corpo e a primeira Virtude, conhecimento de deus, aconselha-a, em vão a se afastar da tentação. Ela cede ao diabo que entra no palco, mas não canta, não tem música, só balbucia e grita, em prosa, suas alocuções contra Deus, tentando seduzir Anima. Agora algumas Virtudes cantam seu poder específico e as outras respondem em coro, apoiando-a.

Na cena seguinte, enquanto as Virtudes cantam um lamento pela perda  de Alma, agora toda coberta de feridas provocadas pelo abraço do demônio, esta volta em busca do socorro das Virtudes. Elas oferecem ajuda. Mas logo se percebe que o diabo voltou ao palco gritando com Anima que revigorada pelo auxilio recebido, confiante, o rechaça como mistificador. Ele embora amarrado consegue se por em pé e faz outras ameaças, mas agora elas não resultam. O coro das Virtudes e das Almas celebra a vitória

Simon pensa que esta atribuição de não-música ao diabo é o toque de mestre de Hildegard; é o diabo que não tem uma música, e não a compreende, que atrai os homens para longe  das harmonias celestiais do Paraíso. “O Ordo Virtutum é [...] uma obra prima, uma joia entre os dramas musicais medievais (Simon:s/d:15)”.

O estilo musical do Ordo é muito diferente do das canções, embora dependente dos idiomas melódicos que Hildegard favoreceu. Parte da diferença, pensa Fassler, se dá simplesmente pelas performances, pois enquanto as canções devem ter sido cantadas por solistas e um coro seleto, a peça, como hinos e sequências, seria cantada por toda a comunidade (Fassler:1998:172). Hildegard definia o canto comunitário como um ‘ato de encarnação’, básico para a regeneração da vida.

Canto derradeiro

Durante seus últimos anos Hildegard se viu envolvida em uma das mais ásperas polêmicas de sua vida. Ela estava com oitenta anos, em 1178, quando permitiu que fosse enterrado em solo sagrado do mosteiro, um nobre que havia anteriormente sido excomungado, não se sabe por que ou quem era ele. Essa decisão aparentemente inócua levaria ao maior e mais amargo confronto de  sua carreira. A questão era ter certeza que, como afirmava Hildegard, o homem havia sido absolvido antes de morrer. Ao que parece aos estudiosos, os motivos dos prelados que agiram contra ela, eram um tanto suspeitos, perceptível na rapidez com que agiram enquanto o na ausência do arcebispo. Hildegard facilmente conseguiu testemunhas da absolvição, mas a polêmica arrastou-se por dois longos anos. Lamentando a injustiça e a proibição de cantarem os ofícios que acompanhou o interdito, ela “imensamente entristecida”, explica em carta aos prelados de Mainz, que o cântico de louvor estaria enraizado na Igreja através do Espírito Santo, e como “o corpo é a vestimenta do espírito, que tem uma voz viva, então é próprio ao corpo, em harmonia com a alma, usar sua voz para cantar louvores a Deus (Hildegard:1994:79)”

Hildegard, não cedeu, permaneceu firme, se recusou entregar o corpo. No “protocolo” para sua canonização é relatado que ela fez o sinal da cruz com seu baculus sobre a sepultura e esta desapareseu, sem deixar traços. Ou dizendo de outra  maneira, mais objetiva, ela fez desaparecer todos os sinais que pudessem mostrar onde fora sepultado o homem em questão. “Hildegard permaneceu esplendidamente desafiadora, sofrendo, neste último estágio de sua vida, todas as conseqüências da excomunhão, buscando o tempo todo ter revertida a decisão (Baird e Ehrman:1994:80)”, o que conseguiu somente seis meses antes de sua morte, em 17 de setembro de 1179.

O protocolo da canonização não resultou e ela jamais foi canonizada. Não obstante, desde sua morte seu culto continua sem interrupções. No século XIII crônicas alemãs, francesas e inglesas se referiam a ela como Santa Hildegard e em 1324 as irmãs de Rupertsberg conseguiram do papado em Avignon um decreto de indulgência para peregrinos a seu túmulo. Em 1940 o vaticano aprovou a celebração de sua festa nas dioceses alemãs.  “Deixemos esse assunto descansar, porque não nos diz respeito a santidade de Hildegard, mas sim as muitas dimensões de sua vida, obra e escrita (Newman:1998:29)”.

Nota biográfica:

Norma Abreu Telles, bacharel em História pela USP, Mestre em Antropologia e Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP onde foi professora entre 1978-2006. Pesquisadora independente trabalha a obra da escritora Maria Benedita Bormann que pode ser encontrada no site www.normatelles.com.br. Publicou Ronda das feiticeiras (2007), “Bestiários” (2008), “Escritoras, escritas, escrituras (2009)”, “A escrita como prática de si” (2009).

Referências bibliográficas

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FASSLER, Margot. “Composer and dramatist: ‘Melodious Singing and The Freshness of Remorse’”. In Barbara Newman, Voice of the Living Light.

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CDs

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  Hildegard von Bingen,  Symphoniae, Sequencia, deutsche harmonia Mundi, 1989.

Hildegard of Bingen, A feather on the breath of God, Gothic Voices with   Emma Kirby,  Hyperíon, 1983.

Hildegard of Bingen, 11,000 Virgins, Anonymous 4, Harmonia Mundi,1997.

Hildegard of Bingen and Meredith Monk Monk and the Abbess. BMG music, 1996.


 

* Este texto é um de um conjunto de escritos que informaram os cursos de “Mulheres de engenho e arte” e que estão sendo coletados em um livro em andamento.

[*] * Tomei emprestado o título de Bob Wilson, A vida e a obra de Davi Clarke, porque cada vez que escuto musicas da abadessa, me recordo das imagens de sua montagem.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet / décembre 2010 - julho/dezembro 2010