labrys, études féministes/ estudos feministas
juin/ décembre 2006/ junho/ dezembro 2006

Entre a vida e a morte, o sexo

tania navarro swain

Resumo

O sexo tornou-se eixo de identidade, medida da intensidade da vida,; mas o que, afinal, determina a importância do sexo e de seu corolário, a sexualidade, senão um dispositivo que edifica os seres enquanto corpos sexuados, numa repetição incessante de comportamentos e gestos, cujo resultado é a consstrução daquilo que deveria apenas designar?

Palavras-chave: sexo, sexualidade, vida, morte, dispositivo sexualidade, dispositivo amoroso

 

“ Sexo é vida” repete incansavelmente uma propaganda na TV. Ejaculação precoce? Falta de desejo? Pela internet recebo dezenas de mensagens: ative seu apetite sexual! frigidez,? tome viagra, melhore seu desempenho! aumente seu pênis! mas eu não tenho pênis, quem sou eu? Libere seus feromônios, não sabe que o cheiro é sedução? Dança do ventre, pompoarismo, preciso me atualizar, perder esta barriga, levantar os seios, aumentar a bunda, ai esta celulite, e o dinheiro para a plástica?

Onde está meu perfume, meu xampu, meus cremes para tudo, preciso depilar a virilha, que cabelo mais crespo, ninguém assobia para mim, ninguém me olha, quem sou eu? meu desodorante venceu, estou suando, que roupa antiga, não transei esta semana, não tive nenhuma paquera, ninguém me disse que eu estava sexy, o que é ser sexy afinal?  quem sou eu,  não consigo seduzir, estou só, só, não sinto desejo, preciso me tratar, será que morri? quem sou eu? não casei, não tenho filhos, não sou mulher? não tenho pênis, não sou homem, quem sou eu?

Este é o quotidiano de tantas mulheres, debatendo-se no dispositivo da sexualidade em ação, que institui e destitui identidades, dita comportamentos, práticas, representações e, sobretudo auto-representações..Firma-se pelo discurso da mídia, da ciência, da psicanálise, das imagens repetidas sem cessar, criando modelos aos quais devo me ajustar, impondo, insidiosamente, padrões de conduta, valores que devem permitir minha inclusão social, meu pertencimento a um grupo, selo de minha saúde física e mental.

Entre a vida e a morte, o sexo. Entre o ser e o não ser, o sexo. Como explicar a expressão “vida sexual”, senão pela desmedida importância que se dá aos órgãos genitais? Porque não se fala, por exemplo, de “vida visual” de “vida manual”? Como a noção de “vida” pode se reduzir a orifícios, excrescências e humores? Porque esta importância, senão para demarcar poderes, lugares de posse e dominação, lugares de fala e de autoridade? Porque, senão para construir e domesticar os corpos assim definidos,  ordem cujos mecanismos hierarquizam, ao criar os valores atribuídos ao sexo? 

O cansaço me toma, face a estas imagens, ruídos, falas, textos, gestos que me invadem a cada segundo, através dos mídia, da literatura, das conversas, de meus pensamentos assujeitados, modelados pela louvação ao sexo e suas práticas. A ode à sexualidade me irrita, pois sou obrigada a ver mamilos, coxas, pelos, bundas, ouvir suspiros e ruídos cavernosos, quando busco distração, riso, encantamento, quando já não há escolha, apenas imposição.

Porque a visão de  línguas , seios, pelos, de bocas enormes e abertas se encontrando deve ser excitante, atrativa, sensual? Aliás,  o que é ser sensual? Diz respeito à sexualidade ou a um erotismo difuso, também indefinível?  Ou significa a ante-sala de uma sexualidade praticada? E o que é esta sexualidade, a emoção de corpos que se des-cobrem ou apenas uma mecânica de gestos quase codificados?

A naturalização das imagens e das práticas sexuais não passa de mais uma essencialização dos corpos,  travestidos em sexo. Foucault se refere muitas vezes a auto- erotismo, - que categoria estranha! neste caso, se o objetivo da sexualidade já não é a procriação, mas um orgasmo geral, porque  a necessidade  de parceiros? Esta grande confusão , de fato, aparece como uma superfície lisa e homogênea de atos naturais, provindos de uma “essência” qualquer, que definiria os impulsos, instintos, pulsões diferenciadas, de mulheres e homens, face ao sexo – discurso redundante pois o sexo é sua definição e a diferença sua instituição, na carne e nas expressões do político .

O que, afinal,  determina a importância do sexo e da sexualidade como raízes da identidade, do ser-no-mundo, da socialização, do processo de subjetivação? Poderia ser apenas mais uma manifestação do humano, mas nas articulações do social é a significação dada ao que se valoriza e que circula com valor de verdade, sobretudo com a marca da natureza, indiscutível, soberana, massa inerte do dejà-là, do pré-construído, das tradições históricas e datadas que adquirem o peso do natural.

Da religião à psicanálise, da história à biologia, o sexo e a sexualidade adquirem foros de fundamento, de marcas hierárquicas, o selo que distingue e ordena segundo uma pré-classificação do humano em feminino em masculino, em função de sua genitália..”Mas eu tenho um útero, exclamam algumas! E daí ? Esta expressão afirma uma essência do feminino aliada aos corpos, ao biológico, uma definição identitária fundada ainda na reprodução.

Seres construídos que somos, a evidencia do sexo é, porém,  tão forte que obscurece as linhas e traços de sua instituição: a  pesada materialidade dos corpos, suas elevações e abismos justificam condutas, conceitos, referencias. O poder é sempre do pai, do masculino, a linguagem é o domínio do falo, da ereção, da racionalidade, da realidade; para o materno resta o ilusório, o irracional,  a falta, a inveja, o repúdio,  “a culpa é sempre da mãe”.  Que mecanismos tortuosos e bizarros  são estes que atrelam razão e sexo, autoridade e ereção, o falo enquanto significante geral? Que cegueira social é esta, que vela as estratégias  de diferenciação dos sexos para melhor instaurar uma “natural” diferença política entre mulheres e homens?

A incongruência é tão enorme que necessita desta constante iteração discursiva e imagética,  desta pedagogia social que institui e  naturaliza os comportamentos e as identidades de sexo. Envoltas e criadas em dicotomias e polaridades, em instituições e práticas que nos delimitam possibilidades e ações, somos prisioneiras de corpos sexuados, desejando sê-lo talvez, reivindicando prazeres efêmeros e insatisfatórios. Nos anos 70 o clitóris foi “descoberto” pelos feminismos, o prazer sexual foi debatido,  exigido, condição de igualdade. Um prazer, entretanto, simbólico, em termos de libertação de um assujeitamento mediado pelos corpos, pois, finalmente, o que  aportam os segundos de  tremores e suspiros face à desmedida importância atribuída ao sexo? Finalmente, era só isto?

O desencanto passa sempre por uma auto representação negativa, questionamentos sobre a  saúde física e mental, adequação social,  uma sociabilidade centrada em seduções, beleza, conquistas, proezas sexuais. Como me insiro ou me desloco em meios onde o sexo é rei, como expressar minhas dúvidas sem cair no ostracismo social, empurrada para as margens, mesmo entre feministas?

A instituição do sexo/sexualidade

Mas o que é afinal, este dispositivo da sexualidade que me enreda e me constrói sem que disto eu sequer me aperceba? Sem que dele eu queira me libertar? Foucault explica que a noção de dispositivo expressa a própria produção da sexualidade, histórica, datada, que não se refere à uma realidade subjacente, um dado da natureza que o poder tentaria domesticar.Seria, segundo este autor,

(...) uma grande rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências se imbricariam uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder. .(1976: 139 )

O dispositivo da sexualidade, assim identificado, atua em  tecnologias do sexo , estas táticas sociais  anônimas que utilizam todo o acervo, todo o arquivo de memória, todos os esquemas de  interpretação disponíveis no social, não apenas induzindo à sexualidade, mas moldando o sexo e o desejo sexual em suas arestas e pontas, em torno e além da  heterossexualidade reprodutiva.

A sexualidade, nesta perspectiva não está no domínio do “natural”, do biológico, mas na produção discursiva do sexo-necessidade, do sexo-verdade, do sexo- identidade, do sexo-vida, faz . (...)proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar os corpos de maneira cada vez mais detalhada e de controlar as populações de forma cada vez mais global.” (Foucault, 1976: 141)

            O dispositivo, portanto, inventa os corpos e os possui, cria-os ao defini-los e moldá-los enfatizando o prazer , sem defini-lo nem questioná-lo, para melhor apagar os traços de sua construção e domesticação. Quem não sente este prazer, tão louvado, sem que se saiba exatamente do que se fala, acha-se doente, anormal; porque os consultórios estão tão cheios de “problemas” sexuais? Porque não tomar o desejo ou a emoção quando vêem, sem precisar de remédios, estímulos, análises?

Porém, se Foucault identifica as tecnologias do sexo na produção da sexualidade, não assinala as tecnologias de gênero ( De Lauretis, 1987),  que criam corpos sexuados ao mesmo tempo em que instituem sua diferença e a desigualdade como seu corolário incontornável, já que natural. E esta construção se repete pela proliferação de imagens e discursos que me assaltam, me percorrem, me possuem, me identificam, me sugerem sempre mais sexualidade, lá onde procuro emoção e encontro.

 Estes discursos sociais produzem sexo – corpos biológicos – e sexualidade – práticas sexuais - de forma mais densa no binário e na hierarquia, e assim produzem gêneros, diferenças, margens, centros, polaridades, padrões, tipologias e as diferenças assim instituídas trazem as marcas do político, das relações de poder de um patriarcado que ainda não disse suas últimas palavras.

No sexo, portanto, o destino biológico naturalizado das mulheres enquanto mulheres, como mães, na sexualidade como orifícios a serem usados, objetos de prazer e sobretudo de poder, o poder de determinar, de dirigir, de humilhar, de ironizar, de inferiorizar, de possuir, de violentar, de controlar, de comprar, de traficar.  Christine Delphy, Colette Guillamin  identificam, com pertinência, “a classe dos homens”, ampla coalizão em um sistema histórico e social , o patriarcado, que lhes confere “ naturalmente” autoridade, prestígio e a posse das mulheres também enquanto classe, o que as transforma NA MULHER, singular que apaga todas as singularidades.

Neste sentido, a prostituição e o estupro, a violência doméstica que povoam o cotidiano das mulheres  condensam o poder masculino sobre os corpos femininos , reproduzindo, em seu  medo ou  aviltamento  a sexualidade na violência, o poder ligado ao sexo..

As mulheres enclausuradas em seus véus, as meninas vendidas e usadas neste grande  festim mundial  onde se consome o feminino transformado em carne e orifícios  são  do patriarcado a expressão mais clara- elas são e estão no mundo para servir os homens,  de todas as formas, nas dobras de seus desejos e injunções. A prostituição infantil existe, por exemplo, neste grande mercado de mulheres em que a juventude cada vez mais tenra é exigida, meninas de 8 ou 9 anos são violentadas todos os dias de suas pobres vidas e os consumidores são homens comuns, o pai de família, o estudante, o funcionário, o operário, este senhor respeitável de cabelos brancos que passa.  Porque este silencio em torno destes consumidores de carne fresca, canibais de nossas filhas, senão para encobrir o sistema que os abriga, os laços de poder que sustentam o patriarcado, a sexualidade soletrada no masculino?

Diz uma recente publicidade na TV, para vender perfumaria: “ mulheres e homens são diferentes”. Isto parece  expressão do óbvio, reafirmando e repetindo a idéia da “natureza” dos sexos; entretanto,  a diferença está sendo construída no próprio momento em que as imagens  assim desfilam. A diferença   existe, isto  é inegável, de um indivíduo para outro, mas não fundada na essência dos corpos marcados de sexos e sim em  sua construção pelas pedagogias sociais múltiplas, entre as quais a espiral envolvente da própria  sexualidade. Como salienta Colette Guillaumin:

A noção de diferença, cujo sucesso entre nós é prodigioso(...) é ao mesmo tempo heterogênea e ambígua. (...) Heterogênea pois contém por um lado, dados anátomo-fisiológicos e de outro, fenômenos socio-mentais.(...) Níveis que são inseparáveis, pois são consequencia uns dos outros, distintos, porém, em nível de análise(...) Enfim, não se pode falar de "diferença" como se isto aparecesse em um mundo neutro. Pois com efeito, se falar de "diferença das mulheres" é tão fácil é porque se trata de algo que diz respeito às mulheres E as mulheres não são vacas leiteiras ( fêmeas)mas um grupo social determinado ( as mulheres) sobre as quais sabemos que a característica fundamental é de serem apropriadas. E que esta apropriação é enquanto grupo ( e não somente enquanto indivíduos inseridos em laços pessoais) (Guillaumin,1979,:4)

As estruturas de poder político, aí presentes  desaparecem  e o sexo/sexualidade se impõem como marcas e limites do humano , dos seres transformados em corpos sexuados, cuja expressão maior é um rosto feminino. Como analisa Colette Guillaumin, as mulheres não tem um sexo, elas são um  sexo. Diferentes, portanto, uma diferença política que ancora nos corpos sua justificativa, que dota a genitália das marcas do superior e do inferior. Diferentes, as sexualidades femininas e masculinas? sem dúvida, já que nascem de construções representacionais e imagéticas em torno da construção política dos gêneros. A sujeição se naturaliza na diferença.

Adrienne Rich já nos anos 1980 apontava para esta questõa: Diz ela:

(...) porque a sobrevivência da espécie,. os meios de ferilização e as relações afetivas/eróticas foram são rigidamente identificadas umas às outras; e porque coerções tão viooentas foram julgadas necessárias para assegurar uma sujeição total, tanto afetiva quanto erótica, aos homens.(?) (Rich,1981:21)

O dispositivo amoroso

Assistimos, atualmente, uma crescente submissão dos corpos aos imperativos da sexualidade, de maneira diferenciada e binária. O dispositivo cria e age sobre os corpos sexuados segundo seu pertencimento à classe das mulheres ou a dos homens. Para estes, a sexualidade se apresenta, em primeiro lugar, como um imperativo identitário e uma necessidade, tão urgente quanto comer ou beber , fonte de um prazer considerado inefável. Mas o que é afinal, este prazer? Uma tumefação, um jato de esperma, tudo em 30 segundos? Ou o prazer da posse, não somente do corpo de outrem, mas também de sua individualidade? pois, com efeito, é um indivíduo que se possui, que se compra, este é, de fato, o prazer inconfessável. A linguagem comum exprime perfeitamente isto, pois ter  relações sexuais com uma mulher,  se diz “possuí-la”. Se os mecanismos da sexualidade são simples, quase lineares, sobretudo para os homens, é toda uma economia simbólica de relações de sexo que lhe confere a força de vida e o selo da identidade. “Seja um homem !”, signfica, de fato, “não seja uma mulher! ».

Nas fendas do dispositivo da sexualidade, as mulheres são « diferentes », isto é, sua construção em práticas e representações sociais sofre a interferência de um outro dispositivo : o dispositivo amoroso. Poder-se-ia seguir sua genealogia nos discursos – filosóficos, religiosos, científicos, das tradições, do senso comum – que instituem a imagem da « verdadeira mulher », e repetem incansavelmente suas qualidades e deveres: doce, amável, devotada ( incapaz, fútil, irracional, todas iguais!) e sobretudo, amorosa. Amorosa de seu marido, de seus filhos, de sua família, além de todo limite, de toda expressão de si.

O amor está para as mulheres o que o sexo está para os homens: necessidade, razão de viver, razão de ser, fundamento identitário. O dispositivo amoroso investe e constrói corpos-em-mulher, prontos a se sacrificar, a viver no esquecimento de si pelo amor de outrem. As profissões ditas femininas partilham estas características: enfermeira, professora primária, doméstica, babá, etc. O dispositivo amoroso, por outro lado, as conduz diretamente para uma heterossexualidade incontornável, coercitiva, sem equívocos, já que a procriação é sua recompensa. Mesmo se o prazer é raro ou ausente, é uma sexualidade sem questões, sem desvios, é assim, ponto.No discurso feminino, “ser mãe” é condição de autoridade, é o lugar de fala inteligível.Adrienne Rich insite que "(...) a heterossexualidade, como a maternidade, deve ser reconhecida e analizada como instituição política- mesmo e mais especialmente por aquelas que sentem-se em sua experiencia pessoal como as precursoras de uma nova relação entre os sexos"!(1981:20)

O dispositivo amoroso, assim,  cria mulheres além disto e dobra seus corpos às injunções da beleza e da sedução, guia seus pensamentos, seus comportamentos na busca de um amor ideal, feito de trocas e emoções, de partilha e cumplicidade. A sexualidade às vezes é até acessória. As tecnologias sociais do gênero investem os corpos-sexuados-em-mulher em práticas discursivas que propõe como axioma a “natureza” feminina, um pré-conceito ancorado no senso comum, propagado e instituído por um conjunto de discursos sociais.Todavia, como bem sublinha  Foucault .

“O ‘pré-conceitual’ assim descrito, em lugar de desenhar um horizonte que viria do fundo da história e se manteria através dela, é, ao contrário, no nível mais ‘superficial’ ( em nível dos discursos)o conjunto de regras que se encontram aí efetivamente aplicadas” (:1987:83)

Ou seja, as práticas criam o objeto dos quais descrevem o funcionamento ou os contornos, em um processo contínuo. Assim, a fórmula de Judith Butler (1990) “não há genero fora de práticas de gênero”, aí encontra todo seu sentido. É efetivamente o gênero e suas tecnologias que constroem os sexos e suas delimitações, seus princípios de exclusão, suas formas e expressões, a heterossexualidade como norma e referencia, a sexualidade como fundamento do ser. Mulheres nos social, fêmeas no biológico, os corpos-em-mulher fixam uma identidade fictícia onde se imbricam as injunções do amor e da sexualidade.

O dispositivo amoroso se afirma nas práticas que se desdobram de forma exponencial para a construção do feminino: a educação formal, a pedagogia sexual, a disciplina dos corpos – magros e belos – a domesticação dos sentidos e dos desejos para seguir a imagem ideal DA mulher. Isto é o assujeitamento, em sua plenitude. Restam as brechas, o formigamento do desejo de liberdade, para além da sexualidade e do sexo...

O dispositivo amoroso e a sexualidade formam a trama onde se tece e se produz o feminino – a objetivação indissociável do processo de subjetivação, a produção do sujeito de um saber e a produção do saber sobre um sujeito por meio de práticas discursivas e não discursivas diversas. As tecnologias do gênero tem assim uma dupla face, externa e interna a si mesma, que trabalha na produção do sujeito feminino em quadros de valores para os quais é e cria referencia. A ação sobre si utiliza técnicas de adaptação, de recusa, de assujeitamentos aos códigos, aos limites, às normas de gênero e de sexualidade, constituindo o que chamamos de "processo de subjetivação".

Por ocasião deste processo de subjetivação, portanto, eu me construo, incessantemente. E as tecnologias do sexo, do gênero, são constitutivas de meu devir, já que eu sou por meio da iteração, do assujeitamento, da recusa ou do excedente em relação às normas e definições.

Atualmente, os moldes que detém os contornos mulher / homem tornam quase impossível uma relação igualitária nos embates sexuais, atravessados de poder. Há, nas dobras dos lençóis, um maniqueísmo binário insidioso mesmo se os papeis pode ser, eventualmente, intercambiáveis. Onde há sexualidade abriga-se  também a posse, a traição, a honra, a auto-estima, a emoção,  valores que se confundem em torno de corpos definidos pelo poder de nomeação, pela performatividade dos comportamentos codificados pelo social, pelas condições de imaginação que esculpem modelos e referentes ideais.   

Sou bastante cética sobre o tema da sexualidade incontornável. Claro, as redes de sentido que nos conferem inteligibilidade – a começar por nossa própria auto-representação – nos desenham assim: seja sexy ou morra, tenha sexo ou morra.  A performance sexual é tudo, o desejo de outrem abre meu caminho para o mundo, garante minha inserção no social. O que cruamente,  reduz-se a línguas, bocas, mãos, órgãos genitais em profusão, ditando a identidade e a eclosão da vida.

Estimo, porém,  que o dispositivo da sexualidade, imbricado ao dispositivo amoroso atingiu seus limites de saturação. O que me parece evidente é que a injunção à sexualidade – e aí não importa qual seja sua prática – é a ação do poder criando uma nova servidão, a dos orifícios, das ereções, das performances, das conquistas, uma banalidade que faz morrer de tédio. Sinto necessidade de mudar de nível, de mudar, apenas. Não, não sou contra a sexualidade, ao contrário. Tenho, entretanto, um engajamento feminista, um engajamento comigo mesma, que impede o cego assujeitamento às imposições do social sobre meu corpo e meu ser. Procuro, ao contrário, perfurar as evidências infladas de certezas e verdades, as que criam obrigações e fixam identidades, encobrindo a face do poder.

Quem sou eu, fora da sexualidade ? quem sou, fora das normas do sexo? Porque devo me curvar às normas que impõe a sexualidade como fundo de verdade do ser? De fato, pouco me interessa saber quem eu sou, já que não sou mais a mesma, no momento desta enunciação. A liberdade não é uma palavra vã. Se ela se encontra no fim do arco-íris sua  conquista é o caminhar crítico da construção de mim, que me leva onde nunca fui, que me afasta daquilo que não serei nunca mais, livre, porém, das servidões biosociais. É assim que concebo a estética da existência: a produção crítica de mim, enquanto sujeito político e histórico, transitando em temporalidades e lugares inusitados, quebrando os grilhões do natural, da sexualidade compulsória, das novas servidões que se anunciam ao criar nossos corpos.

referência bibliográficas:

 

BUTLER, JUDITH, 1990. Gender trouble. Feminism and the Subversion of Identity , New York : Routledge.

DE LAURETIS, Teresa (1987) Technologies of gender. Essays on Theory, Film, and Fiction., Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press

GUILLAUMIN, Colette:1979. Question de différence. Questions féministes, septembre, n.6, Ed. Tierce. pp 3-22

FOUCAULT,Michel . 1976, Histoire de la sexualité, Foucault électronique, Folio 4

FOUCAULT, Michel.1987. A arqueologia do saber, Rio de Janeiro, Forense Universitária

RICH,Adrienne.1981 La contrainte à l´hétérossexualité et l´existence lesbienne, Nouvelles questions féministes mars, n.1 Ed. Tiercepp15-43

nota biográfica:

 

 

tania navarro swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre  na Université du Québec à Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 e organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente um livro “História no Plural”,  além de vários artigos em revistas nacionais e internacionais.Organizou igualmente o livro "mulheres em ação:práticas discursivas, práticas políticas", publicado em 2005. É editora da revista digital Labrys, estudos feministas"

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