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féministes/ estudos feministas ENTRE O SEXO, A BELEZA E A SAÚDE: O ESPORTE A CULTURA FITNESS[1] Silvana Vilodre Goellner Resumo: Este texto objetiva analisar o esporte e a cultura fitness como espaços contemporâneos de produção de corpos generificados cuja espetacularização além de educar outros corpos, reafirma o discurso da naturalização das diferenças sexuais e, por conseqüência, o da inferiorização das mulheres neste universo tido como masculinos. Palavras-chave: esporte, corpos, gênero, diferenças sexuais
“Esporte é vida, é saúde” repetem os médicos, a mídia, os professores de educação física. Saúde é beleza, beleza é malhação, malhação não se dá sem performance, performance é espetáculo. Corpos são espetáculos contemporâneos, instituições performantes que, ao moverem-se, carregam muito mais que músculos, ossos e aparências. Carregam significados, tornam carne representações e discursos que operam, no detalhe, o controle, a vigilância, o enquadrinhamento, a fixidez. E, também, a resistência, o descentramento, a transgressão. Corpos são gestualidades conformadas e transgressoras cuja educação integra a construção do humano. Atravessam tempos e culturas, movimentam o imaginário, fazem pulsar diferentes rituais e simbologias. Revelam o tempo onde foram educados e produzidos, reconstroem passados da mesma maneira com que projetam o futuro. Como práticas corporais contemporâneas, o esporte e a cultura fitness, vêm, desde os anos 80, conquistando espaços cada vez maiores no cotidiano de cada um de nós, movimentam nosso pensamento, nossos sonhos, desejos, fantasias e, literalmente, nossa materialidade biológica, ou melhor, aquilo que denominamos corpo. Movimente-se, dizem os arautos da boa saúde, transformem em exibição as formas arduamente conquistadas nos parques, praças, academias, spas, ginásios e ruas. Expurguem a preguiça, o sedentariasmo, o excesso de gorduras, carnes, rugas, feiúra, apatia. Sejam, pois, hígidos e virtuosos. Festejem seus corpos mas nada de excessos, de transbordamentos, de dissonâncias. Nada que desestabilize representações e discursos minuciosamente construídos sobre os corpos, suas aparências e sua funcionalidade. Afinal, se o corpo é materialidade biológica, como sempre atestam os essencialistas, nada de desnaturalizações, descontruções, ambigüidades, hibridismos. Sujeitos masculinos e femininos devem ser educados de forma a fazerem visíveis em si mesmos as marcas identitárias do masculino e do feminino. Sim, masculino e do feminino no singular pois para o essencialismo[2], impera o olhar universal e biologizante sobre corpo onde as singularidades e as diferenças são apagadas, diluídas nos seus contornos. Mas como não sou nem essencialista nem olho os corpos como matéria universalmente edificada pelos desígnios da natureza, penso ser importante problematizar a naturalização de alguns discursos que incidem sobre os corpos e o faço tomando o esporte e a cultura fitness como territórios onde, por mais que se tente engessar a naturalização, é neles que se encontram alguns dos princípios de sua ruína. Em outras palavras, em diferentes situações onde acontecem podemos observar quão tênues são as bases biológicas que justificam as diferenças entre homens e mulheres. O tema é extenso e promissor... ouso narrar, aqui, apenas alguns fragmentos que considero relevantes para essa reflexão ciente de que tantos outros são possíveis e fecundos. Fragmento 1: Esporte e cultura fitness e a construção de corpos generificados Dada a materialidade do corpo biológico são os argumentos de cunho biologicista aqueles que, em grande parte, justificam a inserção, adesão e permanência de homens e mulheres em diferentes práticas corporais e esportivas. A eles a aventura, a potência, o desafio, a força; a elas, a aventura comedida, a potência controlada, a força mensurada, o desafio ameno. Para as mulheres, em grande medida, é incentivado viver o espetáculo esportivo desde que não deixe de lado a beleza e a graciosidade, atributos colados uma suposta “essência feminina”. Se o destino de toda mulher é a maternidade, nada de sobrecarregar o corpo, potencializar demasiadamente os músculos, excitar os nervos, enfim, envolver-se em atividades que colocam estas representações em perigo. Estas recomendações permeiam inúmeros discursos que, mesmo no século XXI, tomam a anatomia como o espaço primeiro a designar locais sociais, comportamentos, atitudes, gestualidades que generificam e hierarquizam os corpos e os sujeitos. Para exemplificar a naturalização dessa narrativa apresento o fragmento de uma reportagem publicada no jornal Zero Hora no dia 20 de agosto de 2004 com o seguinte título “As mulheres bóiam mais facilmente?” Dizem seus autores: Homens e mulheres têm uma densidade inferior à da água, mas a das mulheres é um pouco menor (0,962kg/m3 delas contra 0,978kg/m3 deles). Isso se deve, entre outros fatores, a uma constituição corporal que inclui ossos menos densos, bacia maior que a cintura e mais quantidade de tecido adiposo (gordura), todos relacionados à gestação. Portanto as mulheres flutuam melhor que os homens, que precisam empregar força muscular para obter uma melhor sustentação na água (LOPES e SANTOS, 2004, p. 32). Discursos como estes estão ancorados na idéia de que mulheres e homens têm características distintas e inatas e estas que são imutáveis. Além disso induzem a acreditar que são estas características que determinam traços de caráter e comportamento, funções sociais, espaços de pertencimento e possibilidades de socialização para eles e para elas. Se os corpos são construídos na cultura, as representações de gênero a eles associados também o são. Isso significa perceber que “os corpos carregam discursos como parte de seu próprio sangue” (BUTLER apud PRINS e MEIJER 2002, p.163). Eles, os discursos, se acomodam no corpo. Em outras palavras: os constituem. Vale ressaltar que nessa análise não está sendo negada a materialidade do corpo mas o foco é deslocado: do corpo em si para os processos e relações que possibilitam que a biologia passe a funcionar como causa e explicação de diferenciações e posicionamentos sociais” (MEYER, 2003, p.19). Ao analisar o que denomina de transgressões de gênero nos esporte de aventura, Bárbara Humberstone (2003) cita um exemplo bastante pertinente para analisarmos como, no campo esportivo, os argumentos que justificam a inserção e ou exclusão de homens e mulheres em determinadas modalidades esportivas estão inscritos na ordem do biológico. A mídia esportiva inglesa, ao narrar a morte de uma das melhores montanhistas do mundo, Alison Hargreaves, teceu inúmeros comentários que levavam a crer que este era um espaço inapropriado para as mulheres. Hargreavez não era uma alpinista inexperiente: foi primeira mulher a subir o Himalaia sem uso de oxigênio e já havia subido, com sucesso, vários picos em diferentes partes do mundo. Morreu em 1995 quando descia da montanha K2, no Himalaia. No mesmo mês de sua morte, dois homens morreram ao descerem a mesma montanha. Estes alpinistas foram retratados como homens “de grande integridade e tremenda estatura”, enquanto Hargreaves foi proclamada uma mãe inapta e “obcecada” pelo desejo de chegar ao topo. Os homens também tinham filhos.... Se a maternidade é o “destino” de toda a mulher, qualquer ação que coloque essa determinação em perigo é representada como imprópria. Assim, se o mundo selvagem e perigoso da montanha (e de diversos outros esportes) é permitido e até incentivado aos homens, as mulheres que ousam enfrentar esses desafios são representadas como alucinadas, persistentes, obcecadas e, quiçá, inconseqüentes. Sua presença parece ameaçar – e de fato ameaça – não apenas a representação do esporte como um território masculino mas ainda o próprio discurso da naturalização das diferenças corporais. Talvez por isso mesmo seja quase intolerável! Seus corpos, suas carreiras e sua persistência no campo tido como “deles” acaba por colocar às claras que a representação de feminilidade construída e ancorada na exacerbação a determinados atributos tais como a graciosidade, a harmonia das formas, a beleza, a sensualidade e a delicadeza não passa de uma construção cultural que, inclusive, o próprio desenvolvimento tecnológico do esporte já permitiu destruir. Habilidades esportivas e capacidades físicas não são inatas mas adquiridas frente a minuciosos processos de treino e preparação, seja para homens, seja para mulheres. No entanto, a aceitação da “inferioridade biológica” das mulheres ainda se faz presente em diferentes discursos que legitimam a divisão sexual tornando-a inabalável, mesmo em modalidades esportivas que não exigem intenso esforço físico. Talvez seja por essa razão, dentre outras, que parece ser absolutamente natural, quando a referência incide sobre as mulheres atletas, mencionar sua beleza e feminilidade ou, então, questionar aquelas que não evidenciam na aparência de seus corpos tais atributos. Não são raros os exemplos de reportagens na mídia brasileira onde, mais do que analisar os talentos e méritos esportivos das atletas, o foco situa-se, exatamente, na aparência de seus corpos. Nestas abordagem importa menos o fato das mulheres serem atletas pois a centralidade está noutro lugar: nomeadas como musas, belas, princesas das quadras, meninas, garotas, etc, os comentários incidem mais sobre essas peculiaridades do que sobre suas trajetórias, conquistas ou frustrações esportivas. Em 2004 o jornal Zero Hora apresentou uma pequena matéria sobre a tenista russa Maria Sharapova, intitulada “Loira, linda e até sabe jogar”. Vejamos: Linda, vitoriosa, milionária e mundialmente famosa, tudo aos 17 anos, assim é Maria Sharapova, a tenista que sacode a cabeça quando joga, usa blusinhas decotadas com a barriguinha de fora, nasceu na Rússia e, ainda por cima sabe jogar (p. 24). Não há menção a uma carreira bem sucedida cujas vitórias, por exemplo, permitiram que ela faturasse por volta de 10 milhões de dólares apenas naquele ano de competição. A referência primeira é a beleza, sensualidade e, como não poderia deixar de ser, a feminilidade. Como uma estratégia de manutenção das representações de tradicionais gênero e, também de hierarquização entre os gêneros essa atitude acaba por sexualizar as atletas e, assim, reafirmar a ênfase que no esporte se atribui a diferenciação sexual (Hartmann-Tews e Rulofs, 2001). Na Revista Sul Esporte publicada em novembro de 2005 há uma reportagem intitulada “Superatletas” e faz referência a uma competição denominada Triathlon Sport Clube Internacional que contou com cerca de 200 participantes. A prova consistia de 1,5 Km de natação, 40 km de ciclismo e 10 km de corrida e foi disputada por homens e mulheres. As imagens que a revista publica falam por si só e são reveladoras, tanto da sexualização da mulher, quanto da sua inferiorização neste esporte de “superatletas”.
Figura 1 Figura 2 “Na bike as disputas foram de alto nível” “o número de mulheres aumenta a cada prova” Enfim, não há dúvidas de que o esporte e a cultura fitness operam, no detalhe, com a generificação dos corpos sendo que para o feminino está muito presente o que denomino de uma estética da contenção: nada de excessos, nem de gorduras, nem de músculo, nem de ousadias, nem de inserções em espaços que parecem não ser seus. Repito: parecem ser e isso está absolutamente distante do que é! O campo esportivo tem sido um dos redutos de recitação constante do discurso da diferenciação sexual que, pautado pela idéia da fragilidade e inferiorização as mulheres, perpetua a hierarquização e o domínio masculino. A análise que Becky Beal faz a respeito da inserção das mulheres no skate é parece confirmar essa afirmação. Muitos dos argumentos que justificam a diferenciação de acesso e permanência neste esporte estão ligados, outra vez, aos aspectos biológicos de seu corpo. Ao entrevistar skatistas homens, nos Estados Unidos, identifica diversas falas que apontam para o skate como uma atividade que pode provocar machucaduras e ferimentos no corpo e que isso não ficaria bem para as garotas. Ou, ainda, para a alegação de que, para as garotas, não é natural gostarem de esportes de risco. Para além desses fatores, faz ver o quanto a indústria do skate pouca oportunidade oferece às mulheres, em geral porque seus proprietários são antigos atletas e estes acabam patrocinando apenas homens e dificilmente reconhecem as mulheres como grandes skatistas. Por essa razão, afirma Beal, as skatistas ao perceberem que os homens não as tomam com seriedade, para serem aceitas nesse universo, precisam provar que são melhores que muitos deles (2001, p. 1016). No Brasil a realidade das skatistas não é diferente desta. Em outubro deste ano, uma atleta brasileira conquistou uma vitória muito significativa para o skate nacional. Karen Jones, venceu a etapa mundial do Slam City Jam, em Calgary, no Canadá, na modalidade vertical. Além de a mídia fazer pouca referência a essa conquista, o modo como apresentou a atleta e sua importante vitória merecem nossa atenção. Uma delas, assinada por Gabriele Lomba e publicada no site “Globoesporte.com” assim refere-se à Karen: “Menina vai competir entre os homens”. A palavra menina já a coloca em situação completamente desigual. A menina em questão tem 21 anos, é formada em rádio, TV e design multimídia, tem uma carreira esportiva sólida fora no Brasil e no exterior sendo considerada, em 2005, a melhor skatista do país. Karen é, também, a única brasileira a praticar a modalidade vertical half pipe e, em muitos campeonatos, compete com os homens. Reportagens como estas e tantas outras indicam que o esporte não é um território de livre acesso para as mulheres. Para estar lá é necessário muito investimento e não apenas físico. Como um campo de disputa de poderes, constitui-se, ainda, como um espaço que produz, reforça e reanima a generificação dos corpos, cuja inscrição de marcas culturais vinculadas a masculinidades e feminilidade se dá de forma minuciosa e persistente. Fragmento 2: O corpo feminino tornado espetáculo para consumo próprio e de outrem A espetacularização dos corpos femininos na cultura contemporânea pode ser observada em várias instâncias culturais tais como revistas, propagandas, outdoors, programas televisivos, cartazes, filmes... Pode ser visto, nas ruas, praias, shopping-centers e, também, nos espaços onde acontecem as práticas corporais e esportivas. Nesses distintos lugares é possível identificar um processo educativo a produzir a espetacularização tanto de quem vê, quanto de quem é ou sente-se o próprio espetáculo. Enfim, desde há muito tempo existem inúmeras práticas destinadas a educar o corpo feminino de forma atrair sobre si o olhar do outro. O esporte e a cultura fitness não estão distantes dessa configuração. No campo do fitness é bastante óbvia essa afirmação na medida em que as academias se tornaram espaços privilegiados dessa representação: sob o véu da saúde são os objetivos estéticos aqueles que têm empurrado as mulheres para uma quase exacerbada malhação. Emagrecer, endurecer as nádegas, firmar os seios, eliminar a flacidez, o excesso de peso e de gordura são alguns dos motivadores da prática de atividade física e, também, de ações radicais que de saudáveis nada têm. Aliadas à malhação, a restrição alimentar e o uso de anfetaminas para minimizar a fome, têm se destacado como estratégias utilizadas por inúmeras meninas e mulheres que buscam desenhar seus corpos a partir dos contornos culturalmente valorizados em nossa sociedade. No dia 25 de novembro de 2006, o jornal Zero Hora publicou uma matéria que indica ser o Brasil é o país que mais consome drogas inibidoras de apetite. Segundo relatório da Secretaria Nacional Antidrogas, são 300 toneladas ao ano. No campo do esporte a referência à beleza é, também, facilmente encontrada nos discursos e imagens que circulam na mídia em outros tantos espaços. De um lado há a identificação de que o esporte, tal qual a cultura fitness, é um locus privilegiado para a construção de corpos hígidos, saudáveis, belos, potentes, velozes, dinâmicos..... de outro, há a necessidade de, quando a alusão for ao esporte feminino, dizer da beleza dos corpos das mulheres. Essa imposição é o que tenho chamado de imperativo da beleza segundo o qual, mesmo que a mulher não seja bela, deve fazer o possível e o impossível para ser ou, ainda, para parecer ser. No caso do esporte: seja atleta, mas bela e se, possível, feminina. Durante as Olimpíadas de 2000, realizadas em Sydney, a evista Veja On-Line publicou uma matéria com o seguinte título: “O corpo no Olimpo: o importante não é apenas vencer mas também ter perseverança, estilo, vender uma imagem de gloria”. Assinada por Dorrit Harazim diz: A medalha de bronze pendurada no pescoço da ginasta russa Ekaterina Lobazniouk quase lhe batia nas pernas, na semana passada, durante a premiação da prova de salto no cavalo. Pudera: a atleta mede apenas 1,41 metro, pesa 40 quilos e parece ter no máximo 13 anos de idade – na verdade, tem 17. Como a maioria de suas adversárias e companheiras de equipe, Ekaterina parece de borracha, não de carne, músculos, veias, ossos e sangue. Desde sempre tem sido assim. Só que essas atletas em miniatura, que têm público cativo em todas as Olimpíadas, davam a impressão, pela primeira vez, de estar completamente deslocadas nos Jogos de Sydney. Jamais seus topetes e franjas endurecidos de laquê, chuca-chucas e presilhas no cabelo, maquiagem que se desmancha no choro e roupas de competição saídas de um guarda-roupa Barbie pareceram tão anacrônicos. Quase uma aberração. Isso porque, nestes Jogos Olímpicos do ano 2000, celebrou-se como nunca a mulher atleta plena, orgulhosa de seus músculos, vaidosa de seu corpo. Nem todas eram bronzeadas como no vôlei de praia, belas como no time de vôlei da Itália ou torneadas como as estreantes olímpicas do salto com vara – modalidade do atletismo até então vetada a mulheres. Contudo, para a grande maioria das 4.254 mulheres que representaram 42% do total de competidores em Sydney, ser atleta, hoje, também é ter arrojo, ostentar saúde e, por que não, ser sedutora, sensual. Em suma, poder e gostar de ser mulherão (2000, p. 12). A recitação do imperativo da beleza inscreve-se outra vez, mesmo sendo infinito o número de atletas que, em distintos espaços, culturas e temporalidades, protagonizam histórias esportivas. Digo atletas porque elas não são um bloco unívoco: são múltiplas e trazem em seus corpos diferentes experiências neste campo tão marcado pela espetacularização. Algumas resistem às diferentes formas de violência e exclusão que permeiam as arenas de competição ou os locais onde se movimentam por lazer ou divertimento. Outras são capturadas por essas representações e acabam por reafirmar sua permanência. A revista Sexy que circulou no mês de julho de 2006 exibiu na sua capa uma fotografia de uma mulher seminua com a seguinte chamada “Aloha! Dani Freitas, a musa do bodyboard tira o biquíni”. Clicada pelas lentes de J. R. Duran, além da imagem reproduzida abaixo, a atleta foi exibida e exibiu-se em de quinze fotografias onde apareceu nua ou com algumas peças de roupa cujas poses sensuais revelavam seu corpo, saliências, reentrâncias, genitália. Nenhuma referência se fez as suas conquistas esportivas. Ser atleta, aqui, era apenas um detalhe!
Um detalhe que não pode passar desapercebido. Afinal, não podemos esquecer que, na sociedade contemporânea, o esporte e a cultura fitness são espaços privilegiados para a exposição de corpos que, ao exibirem-se e serem exibidos, educam outros corpos. Educam a consumir produtos e serviços, idéias e representações (de saúde, sensualidade, beleza, sucesso, etc), a desfilar marcas, a padronizar gestos, a comercializarem-se, a disputar o mercado de empregos e casamentos, a fabricar imagens heróicas, a expressar emoções, a superar limites, a criar necessidades e também a vender o próprio corpo como um dos produtos de uma sociedade que valoriza o espetáculo, o consumo, a estética, a juventude e a produtividade sendo o corpo feminino o objeto primeiro desta mercadorização. Fragmento 3: Corpos desconcertantes: a ojeriza às feminilidades transgressoras Se o imperativo da beleza está colocado na cultura fitness e esportiva, como nomear os corpos que transgridem as representações hegemônicas de beleza e feminilidade. Que interpretações suscitam as musculaturas transbordantes, os corpos que atravessam as fronteiras? Que sensações despertam aquelas mulheres que aderem a esportes tidos como masculinos tais como o futebol, as lutas, o rugby, o skate, o fisioculturismo, etc? Se a busca e reafirmação da beleza e da feminilidade são valorizadas como orientadoras da adesão e permanência das mulheres nas práticas corporais e esportivas, o que dizer daquelas que ousam propor em suas carnes outras formas de viver e exibir a sua feminilidade? O que essas mulheres fazem desacomodar? Por certo seus corpos tensionam olhares acostumados ao mesmo pois desestabilizam e colocam em xeque representações que identificam serem virtuosas as atitudes belas e femininas de um corpo de mulher em ação. Para além dos imaginados danos físicos que esses esportes considerados como violentos podem causar às mulheres (e que também causam aos homens) um outro perigo se avizinha: a temor à “masculinização”. Termo este que parece sugerir não apenas alterações no comportamento e na conduta das mulheres mas também na sua própria aparência, afinal, julga-se o quão feminina é uma mulher pela exterioridade do seu corpo. Quando essa representação é fissurada várias questões estão em jogo: suspeições sobre sua sexualidade são colocadas em movimento pois se não parece ser uma mulher, o que é, então? Uma mulher masculina? Mas, o que é mesmo uma “mulher masculina” se pensamos que há diferentes formas de ser e viver a feminilidade? E de ser e viver a masculinidade? Ao corpo feminino excessivamente transformado pelo exercício físico e pelo treinamento contínuo são atribuídas características viris que não apenas questionam a beleza e a feminilidade da mulher mas também colocam em dúvida a autenticidade do seu sexo. E aí o discurso homofóbico ganha espaço num terreno que permite pouca contestação. Em entrevista à Maurício Cardoso, para uma matéria na revista Veja, Sissi, considerada em 2000 como uma das melhores jogadoras de futebol do mundo diz: “A maior dificuldade que enfrento é a língua de serpente. A primeira pergunta que me fazem é se tenho namorado. Para os jogadores essa é uma questão que aparece depois. Por quê?, pergunta ela. Sexualidade é coisa íntima sobre a qual não tenho de dar satisfação” (CARDOSO, 2000, p. 21). Quando a identidade sexual de determinadas mulheres atletas é colocada em dúvida, tomando como base suas características biológico-genitais, ou ainda, sua inserção em espaços não identificados como sendo “delas”, há uma depreciação da sua aparência corporal e também da sua sexualidade. Isto é, do modo como vivencia seus desejos, seus amores e seus prazeres. A sexualidade, neste caso, é fixada a partir de um modelo tradicional de feminilidade, tornando-se algo impossível de ser transformado, como se a sexualidade, de fato, fosse um substantivo exclusivamente singular. Contrapondo-se a esta idéia, recorro à Deborah Britzman quando afirma que: Nenhuma identidade sexual - mesmo a mais normativa - é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada (apud LOURO, 1997, p. 27). A associação entre esporte e masculinização do modo como vulgarmente é apresentada remete ao medo que se têm de que determinadas práticas corporais operem em favor da construção de uma aparência corporal que deforma aqueles contornos desenhados para o feminino no singular. Remete, sobretudo, ao pavor a uma suposta vivência homossexual, considerada como imprópria, desviante e abjeta. Apoiando-se na heterossexualidade e na maternidade como norma, essa representação da “mulher masculinizada” faz da identidade das mulheres algo fixo, impenetrável, que traz em si formas rígidas de ser e de vivenciar suas experiências, associando a sexualidade à reprodução. Esse modelo, ao ser assumido como dominante, não só restringe suas opções quanto ao exercício pleno e maduro da sua sexualidade como também a naturaliza, visto que a aprisiona aos aspectos biológicos do corpo. Entre o sexo, a beleza e a saúde: o esporte e a cultura fitness. Essas palavras quando direcionadas às mulheres parecem adquirir novas significações: Entre o sexo, a beleza e a saúde: a estética da contenção, do comedimento, do auto-controle e da auto-modificação pois se o corpo hígido, belo, saudável e sexualmente atrativo é a representação hegemônica da feminilidade e a imagem primeira a designar o normal, os corpos diferentes, são os outros. Os do excesso, do transbordamento enfim, deformidades do contemporâneo. E sobre eles vale o desrespeito, a zombaria, o desdém e, diria eu, a violência. Ao abordar a crescente participação das mulheres no mundo do futebol a reportagem “Donas da Bola” publicada no jornal “Folha de São Paulo” em março de 2006 é exemplar dessa afirmação: Na corrida da cozinha para a sala, a professora Andrea Santana, 30, conduz a bola no pé. Para entrar no quarto, dá um certeiro chute de chapa (de lado) e dali sai driblando até o banheiro, onde mata o lance - sem gol, já que banheiros não costumam ter traves. Mas tudo bem, porque o objetivo é só praticar o exercício, proposto por seu técnico de futebol. Até aí, ainda que o local de treino seja inusitado, Andrea poderia se chamar André sem estranhamento. Mas lá vem a jogada que entrega o jogo: "Deixo a bola na cozinha porque é o cômodo que mais freqüento na casa", explica. Bom, a não ser que seja um chef (ou um glutão), é difícil enxergar algum André dizendo o mesmo.O mundinho das mulheres que praticam futebol por prazer é assim mesmo, cheio de adaptações e firulas - e não no sentido futebolístico do termo. Para elas, o que menos importa são a habilidade e o virtuosismo. Coisas que, por sinal, poucas têm (OLIVEIRA e GIANINNI, 2006, s.p). As imagens e os discursos que trago neste texto para adensar os fragmentos que optei por narrar e aquilo que deles permanece noutros lugares e noutros tempos, afirmam uma permanência disfarçada de formas sempre reinventadas de reafirmar o mesmo. São representativos de determinadas escolhas estéticas e políticas que, ao serem aceitas como naturais, inferiorizam as mulheres no campo das práticas corporais e esportivas favorecendo a emergência de diferentes intervenções sobre seus corpos direcionadas para corrigir distorções, apagar singularidades, dirime ambigüidades, anular dissonâncias, e assim, assujeitá-las. Referências: A ONDA É DANI FREITAS, A BOA DA PRANCHA. Sexy, nº 319, julho de 2004, pp.59-77. BEAL, Becky. Skateboarding. In: CHRISTENSEN, Karen et all. International Encyclopedia of women and sports. Volume 3. New York: Macmillan References USA, 2001. BRASIL É LÍDER EM USO DE DROGAS PARA EMAGRECER. Jornal Zero Hora, 25 de novembro de 2006, p. 54-55. CARDOSO, Mauricio. Elas venceram. Revista Veja nº 1645, 2000, pp. 20-22. HARAZIM, Dorrit. O corpo no Olimpo O importante não é apenas vencer, mas também ter presença, estilo, vender uma imagem de glória. Veja On-Line, Edição 1669, 04 de outubro de 2000. Disponível em: http://www.vejaonline.com.be/beleza.mht Acesso em: 20 mar.2003. HARTMANN-TEWS, Ilse e RULOFS, Bettina. International Media Coverage on women´s sports. In: International Encyclopedia of women and sports. Volume 2. New York: Macmillan References USA, 2001. HUMBERSTONE, Bárbara. Gender transgressions and contested natures. In: PEDERSEN & VIKEN (Eds.). Nature & Identity. 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Nota biográfica Silvana Vilodre Goellner é professora doutora do Departamento de Educação Física da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da mesma instituição. É coordenadora da GRECCO – Grupo de Estudos sobre Cultura e Corpo e diretora do Centro de Memória do Esporte da UFRGS. Autora do livro Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Editora Unijuí, 2003 e organizadora, juntamente com Guacira Lopes Louro e Jane Felipe Neckel de Corpo, Gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Vozes, 2003 É professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano/ESEF/UFRGS, Coordenadora do Centro de Memória do Esporte da mesma Universidade.
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