labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007

 

O “estranhamento” queer” ¨[1]

Guacira Lopes Louro

Resumo

Provocativo e polêmico, o queer, como movimento e teoria, vem sendo ensaiado e contestado, internacionalmente e no Brasil. Mais do que uma fórmula síntese para designar sujeitos e práticas sexuais “desviantes” a expressão caracteriza, fundamentalmente, uma perspectiva de oposição e de contestação. Contrapondo-se, fundamentalmente, à heteronormatividade compulsória da sociedade, o queer também põe em questão os processos de normatização levados a efeito por grupos identitários de gênero, sexualidade e raça historicamente submetidos, o que permite compreendê-lo como um movimento pós-identitário. O queer celebra a diferença que não quer ser “tolerada” ou “assimilada”. Minha proposta, nesta mesa redonda, é discutir algumas possibilidades e limites dessa perspectiva, entendendo-a como uma disposição anti-normalizadora de viver, pensar e conhecer.

 

Meu propósito é trazer aqui o estranhamento queer. Num primeiro momento, recorro a um dicionário e, no verbete estranhar, leio: “admirar-se por não achar natural, por perceber alguém ou algo diferente do que se conhece ou do que seria de se esperar”. O estranhamento ou o ato de estranhar supõe o espanto diante do que se desconhece e implica, freqüentemente, incômodo ou repulsa. Essa compreensão inicial já me permite uma entrada no movimento e na teoria que emergiram, nos anos 1990, a partir dos movimentos e dos estudos gays e lésbicos. É possível dizer que tudo começou com alguns ativistas e intelectuais ligados às chamadas sexualidades “diferentes” que se mostravam descontentes com o disciplinamento e a normatização que lhes parecia vir de todos os lados. Eles e elas resolviam proclamar sua indisciplina, sua disposição anti-normalizadora. Diziam (ou pareciam dizer) coisas do tipo: Se tal como nos qualificam, somos estranhos ou esquisitos, pouco nos importa. É assim mesmo que queremos ser, é assim mesmo que nos queremos mostrar. Não se preocupem em nos integrar. Abaixo com sua tolerância paternalista e benevolente! Nós a dispensamos. Tolerância é como indulgência. E, aqui, acrescento uma pitada do poeta Mário Quintana para explicar: “Indulgência é a maneira mais polida de desprezar alguém”.       

Queer que traduzo, inicialmente, por estranho ou esquisito, é também viado, bicha, sapatão. A expressão, repetida como xingamento ao longo dos anos, constituiu-se num enunciado performativo que fez e que faz existir aqueles e aquelas a quem nomeia. Performativamente, instituiu a posição marginalizada e execrada. A posição que teria de ser indesejada. No entanto, virando a mesa e revertendo o jogo, alguns assumiram o queer, orgulhosa e afirmativamente, buscando marcar uma posição que, paradoxalmente, não se pretende fixar.Talvez fosse melhor dizer buscando uma disposição, um jeito de estar e de ser. Mais do que uma nova posição de sujeito ou um lugar social estabelecido, queer indica um movimento, uma inclinação. Supõe a não-acomodação, admite a ambigüidade, o não-lugar, o trânsito, o estar-entre. Portanto, mais do que uma identidade, queer sinaliza uma disposição ou um modo de ser e de viver.

É verdade que o termo funcionou como uma espécie de expressão guarda-chuva que servia para acomodar todos desviantes da sexualidade “normal”: lésbicas, gays, travestis, bissexuais, transgêneros, drag-queens e kings, etc. etc. Uma expressão que reunia o conjunto dos excluídos da posição sexual dominante, a heterossexualidade. É preciso reconhecer, contudo, que, no interior mesmo dos grupos chamados minoritários, se construíam divisões, experimentavam-se fraturas. A política de identidade empreendida por esses grupos também acabava por fixar, de algum modo, uma identidade gay ou uma identidade lésbica. Construía-se uma representação do sujeito homossexual que era mais “legítima” do que outras. Faziam-se notar “diferenças” entre os já “diferentes”.

Uma meta importante da política afirmativa era a extensão, para todos, dos direitos e condições sociais que historicamente haviam sido privilégios de uns poucos – homens brancos heterossexuais. A luta por partilhar de todos os espaços e instâncias sociais mostrava-se relevante, oportuna. Contudo, por vezes, essa luta parecia deixar de lado a crítica mais contundente aos arranjos, às leis e às instituições reguladores da sociedade. A inclusão impunha-se como valor maior. Mas, perguntavam alguns, valeria a pena integrar-se a tais instituições? Esses espaços que vedavam o ingresso dos “desviantes” e “diferentes” não teriam de ser, antes de tudo, questionados ou desprezados? Fazia sentido “entrar” em tal ordem social? Tornar-se respeitável, normal?

Já se colocam aqui elementos significativos para formular um entendimento mais político do movimento e da teoria queer. A expressão indica o espaço da diferença que não quer ser integrada; uma diferença constituída por sujeitos que se colocam contra a normatização venha de onde vier, ou seja, que se colocam contra a evidente normatização da chamada sociedade “mais ampla” e também contra a normatização que se faz no contexto das lutas afirmativas das identidades minoritárias.

No campo propriamente teórico, a lógica seguirá uma direção semelhante ao movimento social: os/as intelectuais queer se expressam de forma mais desconstrutiva do que propositiva. Desses teóricos e teóricas, não seria muito razoável imaginar a formulação de um corpo organizado de enunciados ou um conjunto de idéias mais ou menos homogêneas. Em lugar disso, o debate, a provocação mútua. Num sentido bem tradicional, talvez a palavra teoria não seja apropriada, mas a expressão se consagrou. Os estudiosos/as queer aproximam-se, de modo geral, das vertentes pós-estruturalistas. E, ainda que suas recorrências a Lacan, a Foucault, a Derrida nem sempre sejam harmoniosas, parece possível identificar-lhes uma postura política mais ou menos afinada, talvez difícil de caracterizar por palavras precisas, mas que remete à inconformidade, ao desassossego. O pensamento dicotômico tradicional e a heteronormatividade compulsória da sociedade são alvos recorrentes de seus questionamentos e de suas análises desconstrutivas.

Somos cientes do quanto nossas sociedades supõem e reiteram um alinhamento “normal” e coerente entre sexo-gênero-sexualidade. As normas sociais regulatórias pretendem que um corpo, ao ser identificado como macho ou como fêmea, determine, necessariamente, um gênero (masculino ou feminino) e conduza a uma única forma de desejo (que deve se dirigir ao sexo/gênero oposto). O processo de heteronormatividade, ou seja, a produção e reiteração compulsória da norma heterossexual inscreve-se nesta lógica, supondo a manutenção da continuidade e da coerência entre sexo-gênero-sexualidade. É binária a lógica que dá as diretrizes e os limites para se pensar os sujeitos e as práticas. Fora deste binarismo, situa-se o impensável, o ininteligível.

O processo de heteronormatividade sustenta e justifica instituições e sistemas educacionais, jurídicos, de saúde e tantos outros. É à imagem e semelhança dos sujeitos heterossexuais que se constroem e se mantém esses sistemas e instituições – daí que são esses os sujeitos efetivamente qualificados para usufruir de seus serviços e para receber os benefícios do estado. Os outros sujeitos, aqueles que fogem à norma, podem ser, eventualmente, reeducados ou reformados (na medida em que seja adotada a ótica da tolerância e complacência); ou talvez sejam relegados a um segundo plano e devam se contentar com recursos alternativos, inferiores; quando não são simplesmente excluídos, ignorados ou mesmo punidos. A heteronormatividade justifica tais arranjos sociais; justifica conhecimentos, práticas, jogos de saber/poder. Portanto, desconstruir sua lógica, demonstrar a fabricação histórica de tal processo e as manobras constantemente empreendidas para reitera-lo pode contribuir para desmonta-lo. A “proliferação e a dispersão das sexualidades”, bem como a “dispersão dos discursos”, anunciadas por Foucault, servem para perturbar e para estranhar essa suposta ordem.

Mas meu desejo neste momento não é propriamente expor ou discutir aqui a multiplicidade de sexualidades queer, ou até mesmo o estranhamento que elas provocam. Por certo vivemos num tempo em que os binarismos de gênero e de sexualidade são insuficientes para dizer dos sujeitos e das práticas contemporâneas, num tempo em que o trânsito entre essas fronteiras se faz mais visível, num tempo em que alguns embaralham, deliberadamente, signos e códigos femininos e masculinos, heterossexuais e homossexuais e escolhem viver na própria fronteira. Hoje a ambigüidade se expõe de modo mais afirmativo, pelo menos em alguns espaços. Ainda que tudo isso esteja mais visível e deva, provavelmente, ser saudado, meu desejo é tentar pensar a disposição anti-normalizadora do movimento e dos estudos queer para além da sexualidade.

Vários teóricos e teóricas sugerem a produtividade do deslizamento do terreno da sexualidade para outros terrenos, convencidos, como diz Eve Segdwick (1995. p. 245), de que “a linguagem da sexualidade” “não apenas se intersecta com outras linguagens e relações pelas quais nós conhecemos, mas as transforma”. Efetivamente, desde suas primeiras manifestações, os estudos e o movimento queer mostraram seu potencial subversivo. Há “uma promessa política no termo queer”, afirmam David Eng e outros estudiosos. Essa promessa reside exatamente em seu potencial de ampla critica aos múltiplos antagonismos da sociedade. Tal como sugerem, é possível entender “o queer como uma metáfora sem um referente fixo” (Eng e outros, 2005). Apoiada nessas manifestações, volto à idéia que expressei inicialmente, a produtividade de se compreender o queer como uma disposição, um modo de ser – e, conseqüentemente, um modo de pensar e de conhecer. Uma disposição para o questionamento e a inquietude, um estranhamento de tudo ou de qualquer sujeito ou prática que se represente ou se apresente como “normal”, “natural” e incontestável. O estranhamento queer pode ser instigante para se pensar a cultura, a sociedade, para pensar o próprio pensamento.

Por certo a sexualidade não se constitui num campo externo a outros modos de diferença, como as de raça, etnicidade, nacionalidade, religião ou classe. Se compreendermos a normalização – no seu sentido mais amplo – como o lugar da violência social, admitiremos que todos esses campos (e ainda outros) podem se valer, produtivamente, das perturbações e da subversão queer. Sabemos que é impossível identificar quem enuncia uma norma: ela acontece, ela se espalha por toda parte e costuma penetrar em todos. É da sua “natureza” essa espécie de invisibilidade e de ubiqüidade, uma generalização e uma propagação intensa, anônima e insidiosa. Uma disposição anti-normalizadora nos incitará a tentar perceber por onde o processo de normalização passa, por onde se infiltra e como se infiltra. Isso pode significar desnaturalizar e, então, desconstruir tal processo.

A lógica binária que subjaz à compreensão dos sujeitos e práticas sexuais sustenta, do mesmo modo, outros campos do conhecimento e da cultura. A verdade e a mentira, o conhecimento e a ignorância, o belo e o grotesco –  não poderiam se mostrar, tal como as sexualidades, misturados? Sua mútua dependência, não nos permite embaralha-los? Deborah Britzman diz que “qualquer conhecimento já contém suas próprias ignorâncias” e segue, afirmando que se poderia “pensar a ignorância não como um acidente do destino mas como um resíduo do conhecimento” (Britzman, 1996, p. 91). Efetivamente, nossas questões e o conhecimento que delas emerge se apóiam numa lógica que, na medida em que dá os contornos do que é possível conhecer, determina o que deve permanecer desconhecido ou ignorado. A ignorância não acontece ao acaso, ela está, de algum modo, inscrita no próprio conhecimento.

Se já perturbamos o binarismo da sexualidade, não seria possível expandir ou borrar os limites de outros binarismos? Perturbar a polaridade entre a verdade e a mentira, o belo e o grotesco? Haverá, efetivamente, uma única verdade? Ou as verdades serão múltiplas? É possível conviver com a pluralidade das verdades? Pode o grotesco ser, também, estranhamente belo?  Quem diz desses limites?  Quem está autorizado a proclamar a verdade ou a atribuir a beleza?

Os sujeitos “descontínuos” e “incoerentes”, como diz Butler, ou seja, aqueles que não se conformam às normas de inteligibilidade cultural pelas quais deveriam ser definidos, nos fazem pensar para além de suas práticas e identidades sexuais. Descontinuidade e incoerência não são, necessariamente, um mal que deve ser evitado a qualquer custo. Em vez disso, podem se expressar como uma disposição para pensar além do que usualmente se é capaz de pensar; podem nos levar a questionar e romper os limites do pensável em muitos espaços, em múltiplos domínios. Talvez seja produtivo desconfiar do estabelecido, do pensamento muito bem arranjado e absolutamente coerente, talvez se deva suspeitar das coisas e dos sujeitos demasiadamente respeitáveis e intocáveis. Talvez se deva estranhar, sempre.

Referências

BRITZMAN, Deborah. “O que é esta coisa chamada amor – identidade homossexual, educação e currículo”. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Educação e Realidade, v. 21 (1), jan./jun. 1996.

BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In Louro, Guacira. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Eng, David, Halberstam, Judith e Muñoz, Esteban. “What´s queer about queer studies now?” Social Text, Vol. 23 (3-4), Inverno de 2005.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

LOURO, Guacira. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizontes: Autêntica Editora, 2004.

SEDGWICK, Eve. Axiomatic. In Simon During (org.) The Cultural Studies Reader. Londres e Nova York: Routledge, 1993.

Guacira Lopes Louro é gaúcha, formada em História pela UFRGS e Doutora em História da Educação pela UNICAMP. Professora titular aposentada da UFRGS, trabalha atualmente como professora colaboradora voluntária no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS. Tem várias publicações na área de gênero e sexualidade, destacando-se os livros Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista (Ed. Vozes, 8a edição) e Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer (Ed. Autentica, 2004).


 

[1] comunicação apresentada no Fazendo Gênero/ 2006 Simpósio temático: “A violência material e simbólica”

 

 

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