labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro2007- juillet/décembre 2007

Maria Odila Leite da Silva Dias

Prefácio a "Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931) de Elisabeth Juliska Rago


Esta é uma leitura indispensável tanto para os que trabalham com relações de gênero como para os que querem se iniciar nesta área difícil e fascinante. A autora é dotada de sensibilidade arguta para o trabalho de interpretação histórica que persegue. Imbuída da convicção de que somente o histórico desmistifica preconceitos, a autora nos apresenta uma pesquisa minuciosa e sofisticadamente articulada, fundamentando-se na documentação de experiências de vida das mulheres, que aconteceram, no mais das vezes, num processo recôndito e não determinante da história. Essas experiências pertencem ao seu lugar e tempo, porque são singulares e têm, acima de tudo, a especificidade histórica aliada ao tempo, às mudanças e ao devir. Não se revelam, a não ser a um olhar crítico, capaz de enxergar nas entrelinhas o que passou  despercebido e nunca foi registrado na memória da sociedade mais ampla a que pertencem . Infelizmente, o que têm permanência na memória são os preconceitos e as representações do imaginário e  da cultura, sempre  fundamentados em valores misóginos, enfim, os conceitos genéricos que oprimem as mulheres. Beth Rago escolheu um caminho sinuoso e cheio de peripécias, dificultado por fontes lacunares, em busca de pistas e indícios os mais dispersos sobre a vida de duas  mulheres revoltadas e  lutadoras, surpreendentemente originais e corajosas  para seu tempo.

Trata-se de uma pesquisa que envolve duas mulheres, mãe e filha, nascidas na Bahia, no período que vai de 1836 a  1931, que hoje se nos afiguram casos fascinantes, por terem vivido sob a luz de uma extraordinária consciência do que significava ter nascido mulher na sociedade de sua época. Suas trajetórias foram diferentes, pois Francisca Rosa, a mãe, nasceu em Cachoeira, no tempo da luz de querosene e começou a escrever depois dos filhos já criados, aos quarenta anos de idade, quando se mudou para Salvador. Atuou como jornalista e escritora, empolgada em trabalhar sua revolta contra a ignorância a que ficavam relegadas as criaturas do seu sexo. Sua filha Francisca Praguer Fróes formou-se na Faculdade de Medicina de Salvador em 1893 e dedicou sua vida como ginecologista, obstetra e escritora, a demandar os direitos à saúde das mulheres infectadas por doenças sexualmente transmissíveis. Militou como médica e jornalista nos movimentos feministas de seu tempo, reclamando por leis que restringissem o poder excessivo dos maridos sobre as esposas, contra o estado de tutela a que ficavam reduzidas as mulheres casadas, vale dizer, por reformas urgentes do Código Civil de 1916. As mulheres deveriam ter direito à educação e a trabalhos ou carreiras que as tornassem independentes dos maridos. Deveriam atuar na sociedade e na política para poderem introduzir mudanças na vida íntima e familiar, das quais os políticos responsáveis pelos novos tempos republicanos descuidaram completamente, continuando imersos no autoritarismo de antigos senhores de escravos.

O empenho persistente da historiadora em reunir dados que explicassem tais trajetórias, foi estimulado pela vontade de resgatar suas experiências do silêncio e do esquecimento, certa de quanto suas vidas foram expressões importantes de resistência cultural. Ao viverem sentimentos de revolta contra diversas formas de opressão, como a falta de trabalho e de espaço público para as mulheres dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, abriram caminhos para as gerações seguintes, pois inauguraram novas estratégias de luta contra a autoridade despótica de homens pouco atentos ao bem-estar de sua prole. Francisca Praguer Fróes trabalhou em prol de políticas públicas voltadas para a educação feminina, lutando em nome de direitos reprodutivos e de direitos femininos à saúde, desde 1893 a 1931, ano em que faleceu.

Com impecável consciência feminista, a historiadora foi urdindo, no correr deste trabalho, a trama social e política que envolveu a vida dessas mulheres. Rigorosamente atenta às conjunturas temporais que demarcaram essas duas gerações de mulheres, a historiadora concentrou-se em  relacionar pormenores, arduamente coligidos do seu quotidiano, aos processos mais amplos de urbanização, do abolicionismo, de inovações de transporte,  como as ferrovias e os primeiros bondes, da  iluminação da cidade, da política republicana, tanto quanto dos novos conhecimentos científicos importados do exterior.

A mãe, Francisca Rosa, nasceu em Cachoeira, em 1836. O pai trabalhara no Recôncavo como administrador de engenhos e acabou adquirindo uma propriedade de açúcar mediana e um número suficiente de escravos para tocar a lavoura. Morreu cedo e a viúva passou a administrar pessoalmente o trabalho da lavoura, auxiliada pela jovem filha que se encarregou da contabilidade. Francisca Rosa foi educada por professores particulares e adquiriu, como autodidata e leitora ávida, conhecimentos bastante amplos para o meio social em que viveu. Aprendeu francês, tinha uma boa cultura literária, admirava a crítica feminista de Mary Wollstonecraft e do casal Harriet e John Stuart Mill. Era contra o casamento e os enormes riscos contra a integridade física e moral com que a vida conjugal ameaçava as mulheres. A historiadora fez uma pesquisa minuciosa da sociedade e da mentalidade do Recôncavo, a fim de inserir a família de Francisca Rosa entre as elites mais medianas. Estudou o sistema de propriedade e também dos dotes e das estratégias de casamento das elites sempre voltadas para recuperar, na geração seguinte, o que os direitos de herança, estendidos a todos os filhos, custava às propriedades de cada família. Não seria difícil entender por que motivos Francisca Rosa, já próxima dos trinta anos, havia cogitado, finalmente, depois de muita insistência do noivo, em casar-se com um jovem engenheiro judeu, estrangeiro, croata, certamente mais educado e culto do que os possíveis noivos que as elites locais poderiam lhe oferecer. Deixaria de lado a sua formação escravocrata para alforriar escravos e compartilhar com seu marido idéias liberais. Além de trabalhar na construção de ferrovias, o engenheiro croata também realizou inúmeras reformas modernizadoras na cidade de Salvador. É o que leva a historiadora a um trabalho de história das mentalidades para situar o feminismo de Francisca Rosa nas idéias renovadoras de sua época, sementes esparsas de inspiração liberal, mas também positivista e cientificista.

É de se ressaltar o cuidado de Beth Rago em matizar e perseguir as diferentes nuanças tanto das posições feministas de suas personagens, quanto as distintas vertentes do pensamento eugenista da época. Certamente por isso é que resultou deste trabalho um amplo e cuidadoso estudo dos modos de pensar de duas gerações e de dois momentos diferentes da sociedade baiana e brasileira. Nunca é demais realçar a importância do estudo das relações entre gerações para aprofundar a história das relações de gênero e do pensamento feminista.

 Importa também destacar a hermenêutica abrangente e elucidativa, que traçou do meio intelectual de Salvador na República Velha e das teorias eugenistas vigentes num meio excessivamente conservador de médicos baianos ligados à Faculdade de Medicina. Ao estudar a formação intelectual da médica Francisca Praguer Fróes, que se deu, em parte, graças à educação que recebeu de sua mãe e, em parte, ao pensamento eugenista de sua época, resgatou os caminhos progressistas que escolheu, bastante avessos aos preconceitos raciais do seu meio. Embora trabalhasse na mesma escola e escrevesse na mesma revista Gazeta Médica da Bahia, onde Nina Rodrigues divulgava suas teorias  racistas, é de se admirar que os rumos da jovem médica não chegassem  a se cruzar com os dele. Nunca em seus textos Francisca Praguer Fróes sequer se referiu ao destacado médico e antropólogo baiano. Seus estudos seguiram a preocupação higienista da época, porém numa outra vertente, que militava em prol da cidadania feminina ligada à afirmação dos seus direitos reprodutivos e ao saneamento dos costumes conjugais.

Alerta para os muitos obstáculos opostos ao seu estudo de medicina, desde ter de ser acompanhada diariamente às classes por um irmão, soube fazer seu caminho enfrentando preconceitos de todo tipo, sem largar um momento de suas convicções e de seus projetos. Como relatava para um professor que havia se preocupado com as dificuldades que teria de enfrentar: “Mestre, vou desassombradamente seguindo meu caminho, sem olhar para traz ou para os lados, completamente indiferente aos reparos que por ventura possa despertar a minha passagem.” (cap. 2, p.31)

Neste trabalho minuciosamente elaborado, Beth Rago nos conta as dificuldades enfrentadas por outras mulheres pioneiras do estudo universitário e da medicina. Dificilmente, teria Francisca Praguer conseguido fazer carreira em qualquer outra especialidade que não a de obstetra. Graças à vivacidade das fontes reunidas, podemos acompanhar os primeiros anos de sua prática no Hospital Santa Isabel, que pertencia à Faculdade de Medicina e as péssimas condições de trabalho que Francisca Praguer enfrentou. Por meio de suas anotações, acompanhamos os atendimentos que fazia às mulheres mais pobres de Salvador.  A historiadora pesquisou nos arquivos do hospital dados sobre as pacientes, moças muito jovens, ex-escravas em sua maioria, lavadeiras, costureiras, cozinheiras, muitas delas com sífilis, tuberculose ou distúrbios mentais. Cerca de 42% das mulheres, nessa época, morriam antes dos 36 anos de idade. (cap. 2, p. 36)  Nos prontuários estavam registrados os parcos bens com que se internavam e também significativamente acompanhados da anotação ”nenhuma roupa para a criança”.(cap. 2, p.41) Beth Rago acompanhou sua prática e suas publicações que deixavam bem clara a sua intenção de atuar entre seus pares, de igual para igual. Somente em 1911, foi inaugurada a Maternidade Climério de Oliveira, com melhores condições de atender as mulheres grávidas.

A autora nos informa com pormenores as práticas médicas da época, e, em particular, as dificuldades de se introduzirem inovações na belle époque de Salvador, onde os médicos e as elites se mantiveram aferrados aos costumes do passado. A política saneadora e higienizadora de combate à sífilis, ao alcoolismo  e às epidemias  caminhou para a institucionalização de uma polícia dos costumes, por volta de 1916. A moral da época culpava o corpo feminino. Francisca Praguer, por sua vez, voltava-se contra a falta de moderação e a deslealdade dos maridos com relação a seus deveres conjugais e em prol da obrigatoriedade de um exame pré-nupcial para proteger as jovens das doenças sexuais.

A historiadora discute detalhadamente as contribuições de Francisca Praguer Fróes à obstetrícia e ao tratamento de doenças venéreas, aprofundando o estudo do discurso médico da época. Faz o mesmo empreendimento quanto à militância feminista da jovem médica, acompanhando suas atuações e suas intervenções, mediante a construção de um amplo panorama dos feminismos de seu tempo. A autora nos brinda com uma teia elaborada de discursos e contra-discursos de revistas feministas e mulheres conscientizadas e atuantes, a fim de situar as diferenças e as nuanças do pensamento das duas Franciscas.

A última parte do livro acena com um verdadeiro processo de conscientização das leitoras,  na medida em que as insere num universo multifacetado de informações sobre as diversas tendências feministas, que se alternavam nas cidades brasileiras, entre 1880 e 1930.Confronta as críticas de Francisca Praguer aos maridos infiéis com a postura mais candente de Maria Lacerda de Moura, mineira, que defendia o amor plural e o direito das mulheres de terem e criarem filhos fora do casamento. Da mesma forma, destaca  as idéias de Francisca sobre a necessidade da emancipação econômica das mulheres,  suas  raízes, em correntes feministas do século XIX. Além disso, nos informa sobre as  críticas que Francisca Praguer Fróes dirigia a outras feministas baianas, como Amélia Rodrigues, Anna Ribeiro e Edith Mendes da Gama e Abreu, que  permaneciam presas à Igreja Católica, advogando uma militância das mulheres,  restrita a associações filantrópicas da Igreja. (cap. 4, p.28) Francisca também fez campanha contra o casamento e em prol do divórcio juntamente com muitas feministas de outras regiões do Brasil, como Josefina Álvares de Azevedo, a advogada Myrtes de Campos, a escritora baiana Inês Sabino Pinho Maia, abolicionista, a romancista Júlia Lopes de Almeida, Emília Moncorvo Bandeira de Melo (cujo pseudônimo era Carmem Dolores) e Andradina América Andrada de Oliveira, editora de um jornal no Rio Grande do Sul. Em 1931, Francisca Praguer Fróes foi parte integrante do núcleo formador da Federação Baiana pelo Progresso Feminino, passando a militar ao lado de Bertha Lutz. A luta pelo direito ao voto e à participação política das mulheres reuniu pessoas das mais diversas correntes feministas, assim como de diferentes concepções de vida e variadas inserções na sociedade.

O cuidado em nuançar a posição de mãe e filha nas lutas feministas de suas épocas e em mostrar a diversidade de posições adotadas enriquece este livro inovador, extraordinariamente bem documentado, cuja leitura prazerosa envolve os leitores numa profusão de experiências e, sobretudo, de modos diferentes de problematizar a inserção das mulheres na sociedade baiana e brasileira das primeiras décadas do século XX. Ficamos enriquecidas por nos enfronharmos nas experiências de vida inovadora das duas Franciscas e, principalmente, mais informadas da diversidade de vanguardas de conhecimento abertas pelos feminismos contemporâneos, que a autora expõe e discute. Este livro de Beth Rago nos deixa mais esclarecidas sobre  nossas próprias inserções nas lutas feministas de hoje. 

São Paulo, 6 de dezembro de 2006

nota biográfica:

Maria Odila Leite da Silva Dias , Autora de Quotidiano e Poder e outros estudos teóricos feministas.Professora titular de História do Brasil do Departamento de História da FFLCH   da USP,  aposentada

Professora associada do Programa de Pós-graduação em História da PUC-SP

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro2007- juillet/décembre 2007