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juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012

Cartas de uma breve residência na Escandinávia : Mary Wollstonecraft

                                                                           Norma Telles

Resumo

 O último livro publicado por Mary Wollstonecraft (1759-1797) foi o de maior sucesso dessa autora radical. Relata uma audaciosa viagem pelos países nórdicos em um período de guerra para resolver negócios. Uma viajante solitária, em uma época que entendia o relato de viagem e historia natural como parceiros, ela observa  povos e costumes, também discute temas políticos ou controversos, razão-sentimento- imaginação, atenta sempre a sua viagem interna e pessoal.  

  Palavras chave: viajante feminismo filosofia.

 

“The art of travelling  is branch of the art of thinking”

                                          Mary Wollstonescraft

 

Rumo norte

No porto de Hull, Inglaterra, um trio incomum esperava entediado que os frios ventos nordeste, que tornavam gélidos os dias de verão, acalmassem, permitindo que a partida rumo ao norte. O trio era composto por duas mulheres, e uma menina pequena. A viagem era perigosa não só por serem mulheres viajando sozinhas, como também por estarem em tempo de guerra. Porém, quem assim viajava não era uma mulher comum, era uma mulher decidida e corajosa, já então reconhecida e respeitada como autora radical.

Mary Wollstonescraft era solteira, por princípio contra o casamento, porém levava uma carta de seu companheiro Gilbert Imlay, afirmando ser ela ‘sua melhor amiga e esposa’ e lhe concedendo poderes para advogar suas questões comerciais pendentes na Escandinávia. A menina que ia com ela era Fanny, sua filha com Imlay e a outra mulher, a ama Margherite que a acompanhava desde La Havre, na França, onde dera à luz em um parto fácil e sem nenhuma complicação. Na bagagem levava além de papel suficiente para escrever cartas e anotar suas observações de viagens, um trabalho encomendado pelo editor Johnson que Tomalin suspeita tratar-se de tradução ou revisão das Memoirs de Madame Roland. Finalmente, no dia 21 de junho de 1795, deixaram o porto:

“Onze dias de fadiga a bordo de um navio que não fora planejado para acomodar passageiros, para não falar de outras causas que você conhece bem, exauriram minha disposição a tal ponto que é com alguma dificuldade que mantenho minha determinação de enviar a você minhas observações, enquanto viajo por novos cenários, animada ainda pelas impressões que me causaram (Wollstonescraft:1[1])”.

O combinado com o capitão era ele deixá-las em Arendall, na Noruega, ou em Gotemburgo, que ficavam em sua rota, mas aconteceu, por causa dos ventos, acabaram passando à noite e ao largo daquelas paragens. Wollstonescraft negocia longamente com o capitão ara que permita que alguns de seus homens as levem em um bote até a praia.

“Com que ansiedade esperei por duas horas para que algum barco pudesse me emancipar – mas nenhum aparecia (p.2)”.

Afinal as negociações resultam e o capitão consente que marinheiros as conduzam à terra firme. Ao se aproximarem do local onde deveriam aportar, receosos observam não haver sinal de ocupação humana, somente, ao longe, dois homens que “nem humanos pareciam”. Ela então promete pequena gratificação aos marinheiros para que as conduzam a outro ponto e foram quatro as tentativas até conseguirem ficar em terra.

O tempo estava agradável, a praia era muito longa, parecia não ter fim. Os marinheiros alegremente contavam anedotas e riam delas; as mulheres apreensivas sobre seu futuro próximo. Afinal descem próximas a um local onde sabiam haver uma morada de marinheiros. Enquanto os remadores vão em busca dos habitantes, Woolstonescraft reflete sobre como as condições de vida produzem pessoas diferentes. Os que vivem presos à subsistência, como parece ser o caso do local aonde chegaram, não tem incentivos para a vida da imaginação, diferentemente, por exemplo, dos parisienses sempre em busca de novidades. E então a curiosidade lhe parecer ser a prova do progresso que fizeram em refinamento,

“Sim; na arte de viver – na arte de escapar aos cuidados que embaraçam os primeiros passos rumo a atingir os prazeres da vida social (p.6)”.

Os pilotos da cabana informam os marinheiros que seu comandante fala inglês, embora não esteja ali no momento. As mulheres descem e fazem levar rápido as bagagens para dentro da casa para poderem liberar os que as haviam acompanhado.

“Ao entrar, fiquei ainda mais agradada por encontrar uma casa limpa, com algum grau de elegância rural (p.7)”, e passa então a descrever todos os detalhes. Logo chega o dono da casa, feliz por falar inglês com alguém, Wollstonescraft também se sente contente, pois com sua esposa só conseguia trocar sorrisos. Os anfitriões são muito hospitaleiros e ele durante “a ceia lhe diz que ela era uma mulher de observação, pois lhe fazia perguntas como as dos homens (p.13)”.

Ela como viajante então faz perguntas de homens, mas como sujeito cognitivo feminino implicado no combate pelas injustiças contra suas companheiras de gênero, ela alega ser capaz de produzir um conhecimento potencialmente mais completo, portanto mais justo do que o produzido pelos homens (Ryall:2000:4). Ela tenta recuperar o lugar de exploração das mulheres no discurso e dele se apropriar; em outros momentos ela toma conceitos ou ideias tidas como masculinas e faz uso diferenciado delas conforme seu interesse.

Impaciente para explorar a paisagem Mary escala as rochas para observar o mar e enxerga o navio que a trouxera se afastando  no mar calmo e, um pouco mais longe, seus olhos são atraídos por alguns amores-perfeitos que brotavam meio as rochas o que a faz lembrar de versos Shakespeare a respeito delas. A menininha, por seu lado, encontra mais gratificação nos morangos selvagens do que nas flores ou nos versos.

Mary se maravilha com a beleza das tardes e noites do verão nórdico - “Nada, de fato, pode igualar essa beleza” – se é que noite é palavra apropriada para o que observa, pois ainda está claro, só faltando um brilho a mais para ser uma luz igual a do dia, aquele mesmo brilho que vezes sem conta se torna impertinente e nos incomoda; a claridade é tão boa que ela conseguiria escrever à meia noite sem precisar acender velas. E assim consegue

“contemplar toda natureza em repouso; as pedras mesmo mais escuras quando as olhamos, pareciam partilhar o repouso geral, e se reclinavam mais pesadamente sobre suas bases (p.14)”.

De dia a paisagem é outra, no horizonte abrangido por seu olhar avista somente rochas empilhadas sobre rochas, o lado mais escuro delas voltado para o mar, uma visão estéril meio a qual pequenos trechos de terra são nascedouros de flores selvagens.

“Olhei em torno com enlevo e senti mais desse prazer espontâneo que dá credibilidade às nossas expectativas de felicidade [...] Esqueci os horrores que testemunhei na França e que lançaram uma sombra sobre toda a natureza [...] (p.11)”.

 

Fraternidade, igualdade e a “liberté des femmes”

Três anos antes da viagem ao Norte, Mary tinha ido para Paris, adepta que era dos princípios da revolução. Ao chegar percebe que as coisas não são como imaginara, como a descreviam seus amigos. Consegue acomodações em uma casa de família que uma de suas irmãs conhecia; mas quando chega estão viajando e ela fica sozinha. Em Londres estava acostumada a caminhar por toda parte, mas não podia fazer o mesmo ali, parecia impossível andar a pé por Paris, e o custo de uma carruagem ela não podia arcar. Então é obrigada a ficar dentro de casa, os empregados parecem não entender o que diz, embora houvesse Necker um ano antes e falasse a língua.

Começa a se sentir doente, mas aos poucos vai encontrando amigos londrinos e se reúne com eles e com políticos franceses. Ela trava novas amizades e consegue o que pensava ser importante,

“estar vivendo uma crise política ameaçadora que ainda absorvia quase toda sua atenção (Tomalin:1985:169)”.

Ela não passava a maior parte de seu tempo com os expatriados, conhecera os líderes franceses e estava ali para escrever sobre eles e os acontecimentos que protagonizavam.

Mary não estava em perigo enquanto permanecesse no Marais, na casa de família. Mas com o passar dos dias ninguém mais se sentia seguro em parte alguma e a vida ficava cada vez mais difícil para os ingleses. Meio a tantos transtornos ela conhece um americano, Gilbert Imlay, capitão e aventureiro bon-vivant que se apresenta a ela como escritor e comerciante.

 Ele tinha trinta e nove anos, ela trinta e quatro e se deixou seduzir, se apaixonou por ele,  construindo para si uma imagem idealizada e não realista dele. Inlay, por seu lado, provavelmente se sentiu atraído pela fama dela. Séculos depois escreveu Virginia Woolf:

 “[...] roçando as carpas ele fisgou um golfinho (Woolf:1932 apud Tomalin:1985:186)”.

A situação na cidade está cada vez mais difícil, Mary precisa deixar sua casa e encontra outra, em Neuilly, onde se instala e vive feliz com o amado por alguns meses. Ela engravida e volta para Paris. O idílio durou pouco, mas foi seu salvo-conduto para permanecer naquela cidade, pois para ela não ser presa por ser inglesa, Imlay pela primeira de outras vezes mente e a registra na embaixada americana como sua esposa.

Condorcet era o grande suporte do movimento dos direitos das mulheres durante a revolução. É preso por ordem de Robespierre e logo depois Charlotte Corday assassina Marat, o que foi outro golpe contra os movimentos de mulheres. Corday é rapidamente presa e levada à guilhotina. Mme Roland amiga de Mary seguiu o mesmo caminho e então foi a vez de Olympe de Gouges, fundadora de vários clubes feministas e autora da declaração dos direitos das mulheres, morrer corajosamente na guilhotina.

 “Antes do final de 1793 o movimento feminista fora esmagado (Tomalin:1985:205)”.

Mary voltara para Paris no auge do Terror, em novembro estava sozinha de novo agora em uma cidade cheia de soldados. Segue então para Le Havre para onde Imlay havia ido à negócios. Ali termina seu livro sobre a Revolução, onde demonstra ambigüidade em relação aos acontecimentos e dá à luz uma filha.

 Volta para Londres para onde Imlay voltara bem antes dela, mas ele não a quer mais; sua antiga casa não está mais disponível e ela, coração despedaçado, sente-se sozinha e uma nulidade, “Sou ninguém” (Tomalin:1985: 224). Ingere uma dose reforçada de láudano, mas é salva a tempo. Imlay então lhe propõe a viagem à Escandinávia em prol de seus negócios, ela aceita, sempre fora boa administradora e gostava de viajar.

 

Gotemburgo

 

         “O caminho para a cidade é no começo muito pedregoso e cheio de percalços, mas nosso condutor era experiente e os cavalos acostumados ao percurso (p.3)”.

 Ela não leva passaporte, entrara por pequenas vilas e por isso não precisara nenhum documento; em Gotemburgo sabia que conseguiria o documento sem dificuldade alguma. No entanto, um funcionário de alfândega pára a viajante e exige dinheiro para deixá-la prosseguir; seus acompanhantes não se dispõem a pagar e por isso são obrigados a desviar do caminho, dar uma volta, para contornar a porta de entrada da cidade.

            “Gotemburgo é uma cidade limpa e arejada, e tendo sido construída pelos holandeses, tem canais em todas as ruas e em algumas há fileiras de árvores que as tornariam muito agradáveis não fosse pelo pavimento que é intoleravelmente ruim (p.19)”.

A cidade é comercial, ali moram mercadores de fortuna tem como única distração dos negócios comer e beber, algo que ela critica; reflete que quanto mais vê o mundo mais se convence que a civilização é uma benção que não é devidamente apreciada por aqueles que não traçaram seu caminho,

 “porque não só ela refina os divertimentos, mas produz uma variedade que nos permite reter a delicadeza primitiva de nossas sensações. Sem a ajuda da imaginação todos os prazeres dos sentidos sucumbem a grosseria [...] Nunca encontrei muita imaginação entre pessoas que não adquiriram o hábito da reflexão; e naquele estado da sociedade no qual o julgamento e o gosto são chamados e formados pelo cultivo das artes e ciências, pouco da delicadeza de sensação e pensamento é encontrado caracterizado pelo sentimento (p.21)”.

Mary em suas cartas tece observações sobre os habitantes da cidade e seus costumes:

“[...]os suecos se gabam de sua polidez; mas longe de serem polidos por uma mente cultivada, sua polidez consiste meramente de formas e cerimônias cansativas” e os hábitos alimentares ela considera detestáveis, “[...]em tudo colocam especiarias e açúcar, até mesmo no pão; e o único modo que consigo explicar seus pratos muito picantes, é o uso constante de provisões salgadas. A necessidade os obriga a estocar peixe seco, carne salgada para o inverno; e depois disso, no verão, a carne fresca e o peixe lhes parecem insípidos (23)”.

E envia ao correspondente descrição detalhada de cada refeição diária.

Anota também dados gerais como a população do país, estimada entre dois milhões e meio a três milhões de pessoas, o que considera muito pouco dado ao tamanho da região e a falta de cultivo além do necessário para suprir necessidades básicas. Perto das praias, onde o arengue é encontrado com facilidade, não há quase cultivo agrícola.

“Recolhido em si mesmo por causa do frio, abaixando a face para evitar as rajadas cortantes não surpreende que o rude prazer dos goles de bebida tenha lugar em todos os divertimentos (p.26)”.

Mary observa também as condições dos empregados, especialmente a das mulheres, e atesta que os suecos estão muito, mas muito, distantes de qualquer concepção de igualdade racional. Os empregados não são chamados de escravos, mas o patrão pode surrá-los impunemente porque lhe paga um salário, embora este seja bem magro.

 “Ainda assim, os homens defendem a dignidade dos homens oprimindo as mulheres. Os postos mais mal pagos e mesmo os mais laboriosos são deixados para as pobres bestas de carga (p.27)”.

 E tal uma etnógrafa moderna, atesta, “Isso tudo eu mesmo presenciei” e a seguir compara com a situação em outros países, concluindo que na maioria deles a situação dos empregados é muito injusta.

As mulheres de fortuna, como em tantos outros lugares, não amamentam seus filhos, tinham amas para isso o que ela não considera saudável devido a falta de cuidados das mulheres de classe baixa. Lembremos que é nesse período que está sendo criado e evocao um novo tipo de amor materno impondo às mulheres, entre outros inúmeros deveres , a amamentação dos filhos.

As suecas, observa Mary, não se exercitam o bastante e ficam gordas bem cedo, tomam muito café, comem alimentos muito apimentados, não se cuidam, por isso tem os dentes estragados o que contrasta com a pela bonita e os lábios vermelhos. Quanto à limpeza, as mulheres de todas as classes parecem muito deficientes. Os homens têm ainda menos refinamento, mas formam todos uma raça robusta, saudável que se distingue por seu senso comum e pendor para o humor, ao invés de por argúcia ou sentimento. Em Estocolmo, ela ouviu dizer, os modos são refinados, a galanteria fora introduzida. Mary, no entanto, sempre prefere as pessoas do campo que a divertem e interessam bem mais; há simpatia e franqueza de coração.

A permanência dela em Gotemburgo é de suas semanas. Deixa ali Fanny com a ama Margherite e segue viagem.

“Meus negócios me chamam em Stromstad (cidade fronteiriça da Suécia), por isso no caminho para a Noruega, eu devo percorrer, disseram, a parte mais agreste do país [...] Viajar na Suécia é muito barato, e mesmo cômodo, se forem feitos arranjos adequados. Aqui, com em outras partes do continente, é preciso ter sua própria carruagem, e servos que falem a língua local, se não a conhecemos [...] em certas ocasiões um empregado que saiba dirigir [os cavalos] pode ser muito útil (42-43)”.  

As estradas, comenta, são surpreendentemente boas, os albergues toleráveis, embora ela deteste as camas, arrumadas em caixas de madeira e muito fofas.

No caminho, admirando as paisagens, ela observa que a Suécia lhe parece o local mais adequado para formar o botânico e o historiador da natureza (p.47) aludindo e prestando homenagem à Carl Lineus (1707-1778) botânico que fixara a nomenclatura e a classificação científica que ainda hoje empregamos, admirado por todos e correspondente de Rousseau, Goethe e Catarina II. Essa homenagem de Wollstonecraft evoca o grande rival de Lineu, o botânico e naturalista George-Louis Leclerc (1707-1788), admirado por Lamarck e Darwin. Ambos figuras maiores das ciências da natureza, autoridades rivais no século XVIII, são como um pano de fundo por detrás da historia natural de Wollstonecraft. 

Ryall (2000) mostra em seu estudo sobre a autora como Buffon éi mais importante para suas reflexões,  pois lhe fornece um modelo conceitual para seu senso de lugar. De vários modos Wollstonescraft assinala sua aliança com a visão totalizadora da épica historia da Terra de Buffon, explicitamente empregando a moldura temporal para dar conta da Escandinávia. Ela enxerga os lugares em sentido temporal, falando em desenvolvimento durante milhões de anos, porém avança mais do que o botânico quando reflete sobre a possibilidade da extinção terrena e se indaga sobre qual seria então o destino dos humanos.

Por outro lado, concorda com o que hoje chamaríamos visão ecológica de Buffon ao mesmo tempo em que desestabiliza o valor-verdade dessas noções ao sugerir conexões com seus pontos de vista e apresentando avaliações como parte do processo narrativo no qual esses pontos de vista são continuamente reajustados. A análise social das Letters está baseada em analogias entre diferentes formas de vida orgânica que servem para humanizar objetos naturais e naturalizar humanos.

Este tipo de recurso pode ser falho em termos científicos mas formam o lócus onde ciência e literatura se encontram.

Ao fazer a relação entre organismos nórdicos e seu severo meio ambiente, Wollstonecraft se refere à noção de “luta pela existência”, lugar comum no século XVIII, mas nela introduz uma inflexão pessoal e positiva. Ao invés de produzir degeneração, acredita que a necessidade de luta pode produzir força e vitalidade. Em seu texto não há contradição entre história natural válida e um ponto de vista epistemológico interessado, ou entre historia natural válida e um sentido afirmativo de lugar e talvez uma outra Vindication (Ryall:2000:12-14).

Em sua caminhada Mary dirige-se à fronteira e ao se aproximar dela está junto ao mar, contemplando um panorama que assume aspectos cada vez mais rudes, e “era sublime” (p.49). Sublime é um termo em uso no século XVIII para indicar uma nova categoria estética distinta de belo e de pitoresco. Remete à gama de relações estéticas com sensibilidade, voltada para aspectos extraordinários da natureza. Essa noção encara a natureza como misteriosa e hostil desenvolvendo nos indivíduos o sentido de solidão. O sublime se dirige ao ilimitado, ao que ultrapassa medidas ditadas pelos sentidos.

Na Inglaterra essa noção está em uso desde Shakespeare e Spencer e Milton, mas foi o Tratado de Burke, em 1757, falando do sublime como aquilo que produz emoção estética que não é paralisante como a incompletude do belo que causou novo modismo.

Wollstonescraft reagiu de imediato ao Tratado de Burke que associava o sublime ao masculino, ao terror, ao devaneio e a força, enquanto associava o belo ao feminino, à passividade, à delicadeza e à fraqueza.  Ela escreveu um folheto onde liga o sublime à esterilidade e o belo a fertilidade, ao maternal e também revisou a ligação negativa entre sublime e morte e um dos exemplos, em Letters é ao contemplar uma catarata o que a faz, para além da morte, contemplar também renascimento e imortalidade.

Continuando sua viagem ela passa pela região onde aconteceu a última batalha entre dinamarqueses e suecos, “que deu nova vida a suas antigas inimizades (p.48)”, travada em 1788 e na qual morreram apenas uns quinze ou dezoito soldados. Isto porque a superioridade numérica e de armas dos dinamarqueses aliados aos noruegueses era muito grande, obrigando os suecos a se renderem.

No entanto, enfermidades e escassez de provisões acompanharam o exército vitorioso em seu retorno. Mary se interessa pelo acontecimento, pensa que seria fácil procurar mais informações em jornais da época, mas está com pressa e não deve se desviar de seus interesses imediatos, embora possa parar um instante para fazer uma reflexão sobre os primitivos habitantes do mundo e as várias situações e climas aos quais foram se acomodando.

Ouro e prata

Até cerca de 1980, os estudiosos, sem saber bem o que Mary Wollstonescraft fora fazer na Escandinávia, atribuíam à viagem razões afetivas por parte dela, supunham que pretendia agradar ao amante e reatar a relação, e por parte dele, que teria sugerido a viagem para se livrar dela. Foi então que o historiador Per Nyström localizou em arquivos da Suécia e Noruega papéis e documentos que elucidaram a questão. Ela estava mesmo em viagem de negócios.

Eis do que se tratava: em junho de 1794, certo Peder Ellefsen, que pertencia a uma rica e influente família norueguesa, comprara o navio Liberty de agentes de Imlay em Le Havre. Ficou claro que Ellefsen nunca fora dono do navio, mas fizera uma venda pró-forma em favor de Imlay. Este rebatizou o navio como Maria e Margaretha, e fez o consulado dinamarquês em Le Havre certificar a transação para que a embarcação pudesse furar o bloqueio naval inglês na França. Carregando ouro e prata o navio zarpou da França com bandeira dinamarquesa e chegou a Copenhague. Ellefsen supostamente teria dado ordens para que o navio seguisse para Gotemburgo, mas ele nunca chegou ao destino. Imlay havia feito várias tentativas para localizar sua preciosa carga, todas em vão. Afinal encarregou Wollstonescraft de negociar com Ellefsen. Este depois da passagem dela pelo país e de suas diligências foi preso por roubo de navio e de carga, embora não se saiba se isso se deveu ao bom sucesso de Wollstonescraft ou ao fracasso das negociações. O destino do navio também é desconhecido.

Stromstad e Noruega

A cidade foi construída em campos de pedras com algumas árvores surradas pelos ventos apontando aqui e ali. Mary fica na casa de um rico comerciante onde é ”recebida com a maior hospitalidade e apresentada a uma ótima e grande família (p.54)”. No caminho para apanhar a balsa que a levaria para a Noruega, ela aproveita para fazer nas proximidades uma escalada em alguns dos penhascos mais montanhosos da Suécia.

Entre os rochedos fica-se ao abrigo dos ventos; flores brincam, correntes fluem e pequenos grupos de pinheiros diversificam as rochas, em alguns trechos ficam áridas e esplendorosas. Mary, em conversa com os acompanhantes, comenta que não conhece a Suíça, mas tem certeza que as paisagens que estão percorrendo são mais belas do que as daquela região. Ao cruzar o rio e chegar à Noruega, Mary se surpreende ao notar as diferenças nas condições naturais e nas pessoas das duas margens. Se o lado sueco é perigoso para os botes e canoas, o lado da costa norueguês é tranqüilo, não há ondas e os ventos estavam agradáveis. “Os noruegueses me parecem ser a comunidade mais livre que já observei (p.76)”. E Mary enumera outras diferenças importantes:

“Há apenas dois condes com propriedades [...] Todo o resto do país é dividido em  pequenas fazendas que pertencem ao cultivador. É verdade que restam ainda algumas pertencentes à Igreja [...] Cada fazendeiro é obrigado a fazer todo ano por dez ou doze dias exercícios militares, mas sempre a pouca distância de sua habitação, o que não o leva a novos hábitos de vida (74-75)”.

Como os fazendeiros não temem serem destituídos de suas fazendas se não agradarem aos que estão no poder, são diferentes, agem com independência de espírito, observa a viajante que continua, essa liberdade pode tornar as pessoas um tanto litigiosas e sujeita-las a imposições de espertalhões que lidam com leis. Por outro lado, as leis só atribuem pena capital para o crime de assassinato, a pena para qualquer outro delito é “meramente aprisionamento e trabalho”. Ao todo os noruegueses lhe parecem pessoas sensíveis, no campo e nas cidades, com pouco conhecimento científico e ainda menos gosto pela literatura, “mas estão chegando ao momento que precede a introdução das artes e ciências (p.78)”.

A maioria das cidades são portos marítimos e estes, pensa Mary, não são favoráveis a melhorias; os capitães só adquirem conhecimentos superficiais e necessários para ganharem dinheiro, e o que ganham gastam nas cidades. É preciso que a política se torne objeto de discussões para que se ampliem os horizontes, “a revolução francesa terá este efeito (79)”.

Tonsberg e Larsik

   “Tonsberg foi anteriormente a residência de um dos pequenos soberanos da Noruega; e nas montanhas adjacentes ainda existe vestígios de um forte que fora atacado pelos suecos; a entrada da baia ficando próxima a ele. Aqui eu frequentemente fiquei, soberana do ermo, e raramente encontrei qualquer criatura humana (p.93)”.

Ela fica três semanas em Tonsberg e durante os passeios solitários reflete sobre si mesma, sobre sua extrema afeição pela natureza e sobre seus próprios pendores e ações especialmente no último inverno, e contente constata que se renovou ali, e recuperou sua atividade e retoma o caminho.

A estrada para Larsik é muito boa e o campo é o melhor cultivado da Noruega. Ao chegar ela se vê meio a um grupo de advogados, de diferentes especialidades.

“Minha cabeça girou, meu coração ficou pesado, ao olhar as faces deformadas pelo vício; e escutar relatos de chicanas que continuamente confundem o ignorante. Esses gafanhotos irão diminuir conforme as pessoas se tornem mais esclarecidas. No atual período da vida social as pessoas da comunidade estão sempre espertamente atentas aos seus próprios interesses; mas suas faculdades, confinadas a poucos objetos, são tão estreitas, que eles não conseguem discernir o bem comum (120)”.

Há na cidade uma manufatura de ferro consideravelmente grande que pertence ao conde de Larsik, um lago próximo fornece água para o trabalho. Os habitantes da cidade encaram o tamanho da propriedade como um mal, pois lhes corta os caminhos e dificulta o transporte de seus produtos.

Mary não gosta tanto das pessoas dali quanto de outras que conhecera antes, cada cidade parecia a ela como uma grande família suspeitando de todas as outras e certas ou erradas apoiavam umas às outras face à justiça.   Prossegue a viagem somente à cavalo, pois não havia estradas para a carruagem.

E chega até o mar, consegue embarcar, pois o vento estava calmo e era uma bela noite. “Sentada ali, em um pequeno bote no oceano, meio a estranhos, com mágoas e cuidados pesando (p.125)”, ela divaga, recorda versos e aprecia a paisagem rochosa onde divisa grutas, retiro de raposas e lebres, e várias ilhas habitadas por pilotos que pagam pequena taxa pela habitação. Continuou subindo pelo litoral, visitou Helgeroa, Risor e chegou a Cristiania (atual Oslo), que no século XVIII, depois da Grande Guerra do Norte, viu sua economia florescer com a construção naval e o comércio.

“Aproximando-me, ou melhor descendo, para Cristiania, embora o tempo continuasse um tanto nublado, meus olhos ficaram encantados com a vista de um vale extenso e ondulado, que se estendia em baixo do abrigo de um nobre anfiteatro de pinheiros cobrindo as montanhas. Casas de fazenda espalhadas por ali animavam, não, eram um toque de graça a paisagem que ainda retinha tanto de sua natureza selvagem nativa (p.115)”.

Observa e constata que a localização de Cristiania é excepcionalmente notável; a baia lhe inspira segurança, e a oeste as montanhas cobertas de neve são de incrível beleza. Cristiania é uma cidade limpa, arrumada, anota, mas não possui nenhuma arquitetura. Há grandes casas de madeira que “ofendem os olhos”, tamanho sem grandeza ou elegância. Há pouco ocorrera um levante: havia acontecido na cidade por causa de escassez de alimentos e ela aproveita a menção do episódio para explanar contra a ganância dos comerciantes, um de seus temas diletos.

“A Inglaterra e a América devem sua liberdade ao comércio, que criou uma nova espécie de poder para minar o sistema feudal. Mas fiquem eles atentos sobre as consequências; a tirania da riqueza é ainda mais exasperante e desgastante do que a de status (p.170)”.

Mary gostaria de ter ido mais para o norte; ouvira descrições das paisagens e das grandes e prósperas fazendas. Mas junho e julho, diz, são os meses para se viajar por ali, agosto já ia avançado, era hora de partir. Retorna a Gotemburgo para buscar a filha e Margherite e seguiu para casa via Copenhague e Hamburgo. Chegou ao porto de Dover  em setembro de 1795, três meses depois de ter partido.

A ponte Putney

Fora em 1787 que Mary se instalara definitivamente em Londres indo morar próximo a St Paul’s Churchyard que então era um centro de comércio de livros. A esta altura ela já fizera muitas coisas, entre elas abrir uma escola, ser governanta por um ano e pouco na Irlanda, viajar sozinha para Lisboa para cuidar de uma amiga que morria.

Quando se estabelece na cidade não tinha nada de seu além de dívidas com várias pessoas. Contatou então um dos editores daquela vizinhança, Joseph Johnson, sobre quem um amigo lhe falara e este a contratou para escrever, revisar e traduzir textos para a Analitycal Review. Para esta revista ela fez também mais de vinte resenhas de livros de viagens o que lhe permitiu formar uma noção precisa sobre o que era um bom livro deste tema que poderia agradar aos leitores. 

Muitas vezes Mary almoçava na editora e assim foi conhecendo e travando amizade com outros freqüentadores amigos do prestigiado editor. A sua loja era um local para reuniões de radicais e pessoas não convencionais, da cidade ou do campo; liam e discutiam os autores franceses seus contemporâneos, e outros pertencentes a outras correntes filosóficas.

Formavam um grupo de pensadores radicais, entre eles Pristley, Christie, Tom Paine, William Godwin, Coleridge, Wordsworth, Fuzeli, entre os quais, “havia também uma mulher de olhos brilhantes e língua afiada (Woolf)”.  William Blake, jovem poeta pintor recém contratado pela editora de Johson, gravou as ilustrações de Original Stories de Wollstonescraft.

Ela desejava mostrar mulheres em diferentes papeis, solteira, casada, viúva, vivendo vidas úteis e dignas, capazes de se manterem sozinhas. Isto era um problema porque era preciso falsificar a realidade. Ela então escreve um prefácio tentando justificar o que faz.

“A independência é a primeira necessidade para uma mulher; não a graça ou o charme, mas a energia, a coragem e o poder de colocar sua vontade em ação, essas seriam as qualidades necessárias para elas (Woolf:2)”.

frontispício de Original Stories

Nesse livro ela esclarece que amadurecimento não é somente a aquisição de razão, mas também a compreensão de quando e como confiar nas emoções. E a autora faz uma ligação importante: razão, emoção e imaginação, pois é esta última que libera especialmente o eu familiar e indica novas situações.

 A imaginação pode também ser prejudicial aprisionando-nos em desejos burgueses individualizados que não abarcam a sociabilidade. No século XVIII operou-se na Europa a primeira alteração de costumes que não veio da aristocracia, mas das novas classes ascendentes. Em relação as mulheres, o direito ao amor abalou o autoritarismo a que as mantinham em submissão, o amor supunha liberdade recíproca entre cônjuges. E ao conceder-lhes este direito, houve reconhecimento social de necessidade de educação.

Johnson publicou todos os livros de Wollstonescraft, inclusive os dois volumes de Vindications, o dos direitos dos homens e o dos direitos das mulheres. Ela se pensava uma filósofa, em alguma medida uma teórica política e sempre uma defensora da igualdade das mulheres. O mesmo editor publicou anos mais tarde seu livro de viagem pela Escandinávia.

Agora, voltava à cidade, e não conseguia se encontrar com Imlay, tanto indagou e forçou a cozinheira que esta acabou contando por onde ele andava; foi como Mary descobriu que Imlay estava vivendo com uma atriz: “Fiel a si mesma”, comenta Woolf, “ao seu credo de ação decisiva”, Mary dirige-se ao Tâmisa; chovia muito e ela deixa que suas roupas fiquem ensopadas de água, para ter certeza de afundar, e se atira de Putney Bridge.

“Mas foi salva; depois de indizível agonia se recuperou e então sua ‘inconquistável’ grandeza mental’, seu credo de independência juvenil, se afirmaram novamente e ela decidiu fazer outra aposta na felicidade e ganhar sua vida sem receber um penny de Imlay para si ou para sua filha (Woolf:4)”.

Retorna a editora e seu trabalho e quando é publicado o seu Letters Written during a Short Residence in Denmark, Norway and Sweden (Cartas escritas durante breve residência na Dinamarca, Noruega e Suécia) ele faz grande sucesso; de todos os livros de Wollstonescraft foi o que mais vendeu e fez sucesso entre os críticos e o público leitor.

E logo o filósofo e anarquista Willian Godwin se reaproxima, renovam a amizade, se envolvem amorosamente, ela engravida e resolvem se casar, contra todos os princípios de um e de outro contra o matrimônio. Apesar da união, continuam morando em casas separadas, mas “um marido é uma conveniente peça de mobília em uma casa”, escreve Mary. Por que então não revisar também a teoria e partilhar o mesmo teto? e assim arranjam numa mesma casa cômodos separados, sala de refeições comum para se encontrarem, para conversar ou receber convidados. Mary se sente feliz, esta acabando de escrever Maria, or the wrongs of Women  e planejava uma reforma na educação.

Mary resolve ter a criança com uma parteira, profissional respeitável, ao invés de chamar um médico. Nasce uma menina que recebe seu nome, mas, poucas horas depois, surgem complicações, a placenta ficara retida, o que no século XVIII era tido quase como morte certa. Ela sofre de febre puerperal. A parteira solicita a visita de um médico, nos dias seguintes vários outros são chamados, e um deles, sem anestesia extrai a placenta que se esfacela no processo. Em decorrência dessas manobras ela morre por infecção generalizada em 10 de setembro de 1797.

“Ela morreu no parto. Ela cujo sentido da própria existência era tão intenso, que mesmo em seu tormento clamou, ‘não consigo pensar em não ser mais – em me perder – não, parece-me impossível que eu cesse de existir’, morreu aos trinta e seis anos. Porém, quando lemos suas cartas, escutamos seus argumentos e consideramos suas experiências [...] sem dúvida uma forma de imortalidade lhe pertence, ela está viva e ativa, ela argumenta e experimenta, nós escutamos sua voz e traçamos sua influência mesmo agora entre os vivos (Woolf:6)”.

O livro das Cartas

Mary foi durante toda sua vida uma ótima escritora de cartas. Para este livro de viagem escolheu a forma fragmentada da narrativa através de vinte e cinco cartas permeadas de assuntos polêmicos, como a reforma das prisões, o uso da terra, leis de divórcio, vida de mulheres diferente da vida dos homens, teoria política e tópicos mais amenos como o contato com as comunidades locais.

Na nota introdutória ela conta que ao escrever as cartas não conseguia evitar continuamente ser a primeira pessoa – “o pequeno herói de cada conto”. Tentou corrigir isso, mas descobriu que a escrita ficava   formal e afetada,

 “[...]por isso eu determinei deixar minha exposição e minhas reflexões fluírem sem restrições, pois percebi que não poderia fazer uma descrição adequada do que vi, a não ser relatando o efeito que os diferentes objetos  produziram em minha mente e sentimentos, enquanto a expressão ainda estava fresca (p.A) “.

Nessa narrativa híbrida – livro de viagens, cartas, mémoirs – a revolucionaria autora volta sua atenção para a história natural explicando que

“[...] a Suécia lhe parecia o pais do mundo mais adequado para a formação do botânico e do historiador natural: cada objeto parecia me fazer lembrar da criação das coisas, dos primeiros esforços da natureza esportiva (p.47)”,

Wollstonescraft, pensa Ryall, nesse trecho está fazendo, principalmente, uma declaração de identidade textual. Como os homens viajantes seus contemporâneos, ela emprega o termo historia natural para que sua visão de paisagens específicas adquiram autoridade e incorporá-las a uma visão europeia global. Porém, para a escritora, a história natural é também um recurso mais imaginativo e pessoal através do qual “[...] dota os organismos e as paisagens nórdicas com um potencial quase emancipatório análogo a sua visão feminista da mudança social e do empoderamento pessoa (Ryall:2000:12)l”.

 Essas noções a envolvem em diálogo críticos com ‘sistemas’ e ‘economias’ da natureza, oficiais do século dezoito.  Ryall sugere então que Wollstonescraft se alinha com alguns historiadores da natureza metropolitanos tanto para rebater afirmações corriqueiras quanto para cooptá-las para seus propósitos (Ryall:2000:2)”.

As Cartas não são definidas pela autora como investigações cientificas sistemáticas, ao contrário, ela afirma que são notas de observações e vivências em forma incoerente, confusa. A história natural é o caminho para criar um sentido de lugar que se mistura e é tecida em outros discursos de estética, auto-indagação e política como Ryall mostra em seu cuidadoso estudo.

 “Ela situa sua alegação de conhecimento enfatizando não só sua própria posição de sujeito mas também a contingência dessa posição e como identifica a escrita de viagem como uma forma de ação pessoal e temporal, como está implícito na epígrafe deste texto, seu sentido de lugar não pode ser separado das circunstâncias de sua viagem (Ryall:2000:1)”.

As cartas que escreve para o amante Gilbert Imlay não são iguais em tom e temas àquelas que formam o livro e que obliquamente a ele também são dirigidas. A maioria da crítica tem lido o livro como tentativa de reconciliação do caso amoroso, mas Ryall tem opinião diversa com a qual depois de ler e reler esse livro delicioso e interessante, concordo plenamente: pensa que o  livro traça o  desenredar final da relação deles. E sugere ainda que Mary acatou a sugestão da viagem de negócios visando obter material para escrever um livro de viagem, tipo de literatura muito em moda então, que lhe pudesse fornecer subsídios para sua vida com a filha Fanny, o que de fato aconteceu.

O livro foi escrito em forma epistolar depois de seu retorno à Inglaterra e

“[...]mostra a transmutação de uma obsessão quase incoerente em um formato intelectualmente manejável, uma versão feminilizada [...] do viajante solitário que usa um afastamento temporário de sua sociedade para explorar o que Wollstonescraft denomina “história de meu próprio coração” (Ryall:2000:3)”.

 A viajante solitária Mary pensa, é um ser de um “novo gênero”. Nessa escrita de si o ponto de vista de Woolstonescraft emerge gradualmente da narrativa, e é baseado na relação de razão e sentimento, seus e de outras pessoas destituídas, principalmente as mulheres e ela se preocupa com o futuro da filha pequena. Então o que

“[...] denomina ‘meu assunto predileto de meditação, a futura melhoria do mundo”, é não só uma posição filosófica, mas uma agenda pessoal urgente e quando ela insiste que “essa agenda não deprecia, ao contrário fortalece o valor-verdade de seu trabalho, ela está estabelecendo um ponto de vista feminista, isto é, um ponto de observação engajado na localização social, condição que confere a seus ocupantes uma vantagem epistêmica (Ryall:2000:4)”.

Mary & Mary

                      e                    

    Wollstonecraft                             Shelley 

Meses após a morte da esposa, Godwin publicou uma biografia dela, e ingenuamente não mediu as consequências de discutir livremente os amores e dissabores dela, seus casos amorosos, a filha natural, sua rejeição do cristianismo e outras indiscrições. A reação do público foi de fascínio e rejeição. Provocou muito escândalo e destruiu o bom renome da escritora. Outras peças maledicentes logo surgiram, nos jornais e nos teatros Mary se tornou personagem de sátiras; também em livros de moral foram criadas personagens que referiam a ela. Mulheres escritoras ou que se aventuravam na política se afastaram de qualquer possível contaminação com sua pessoa.

“Ela apresentara um ideal, mas este quase imediatamente se tornara espectro ameaçador, ladeado por fantasmas da revolução, irreligião, anarquia sexual (Tomalin:1985:312)”.

É certo que sempre uma ou outra autora a admirou, como Elizabeth Barret Browining, George Eliot e Amelia Mott, até ser recuperada pelos movimentos feministas do final do século dezenove e se tornar referência para escritoras de diversas correntes de pensamento como Virginia Woolf ou Emma Goldman no século XX.

Em especial, Mary teve uma grande admiradora e seguidora, a filha à qual dera à luz pouco antes de morrer, a jovem Mary que  também foi escritora e pensadora radical e se tornou imortal com o livro Frankenstein, que  inaugurou a ficção científica moderna, propôs renovação de perspectiva e paradigma. O livro da jovem Mary começa em regiões geladas da Rússia, paisagens que se assemelham a do último livro de sua mãe, e regiões árticas se tornaram uma metáfora familiar para a busca de liberdade.

A jovem Mary cresceu lendo os livros de sua família, os de seu pai e os de sua mãe que ia ler no túmulo dela, sozinha ou acompanhada pelo namorado, o poeta Percy Bysshe Shelley com quem fugiu aos dezesseis anos, casou-se e teve um filho. Entre os vários livros que escreveu, a jovem Mary tem também um relato de viagem na apresentação do qual faz um tributo à mãe:

            “Este eu, este pronome sensível, imaginativo, sofredor e entusiasta, espalha um charme inexprimível em palavras sobre as Letters de Mary Wollstonescraft (apud Orr:1998:1)”.

Ao que uma autora contemporânea complementa,

            “Wollstonescraft é importante por causa de sua vida apaixonada e luta constante na confrontação com suas próprias inconsistências. Suas confusões e fracassos inevitáveis – e seus esforços para articulá-los – são tão esclarecedores quanto suas realizações (Walters apud Showalter:2002:22)”.

Uma mulher paradigmática, filósofa, escritora, política, acrescenta Showalter,

“que do começo ao fim de sua vida antecipou argutamente e foi pioneira de virtualmente todas as contradições entre teoria e prática que desafiariam as mulheres que vieram depois dela, até nossa época "(Showalter:2002:22)

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Referências

Brockman, John. , 2001 . .Einstein, Gertrude Stein, Wittgenstein e Frankestein. São    Paulo: Companhia das letras, 1988, trad. Valter Ponte.

Showalter, Elaine. Inventing herself. New York: Picador

Tomalin, Claire. 1985.The Life and Death of Mary Wollstonecraft. USA: Pinguin,

Wollstonecraft, Mary. 2010. Letters Written During a Short Residence in Sweden,   Norway, and Denmark (1796). New York: Cambridge University   Press

URL   

Campbell Orr, Clarissa. “Mary Shelley’s Rambles in Germany and Italy” in http://users.ox.ac.uk/~scat0385/rambles.html.

RYALL, Anka. “A Vindication of Struggling Nature: Mary Wollstonecraft's   Scandinavia” in http://www.hum.uit.no/nordlit/1/ryall.html

Woolf, Virginia. “Mary Wollstonecraft” in The Common Reader, Second Series. In http://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/virginia/w91c2/chapter13.html

 

Nota biográfica:

Norma Telles, bacharel em História pela USP, Mestre em Antropologia e Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP onde foi professora entre 1978-2006. Pesquisadora independente trabalha a obra da escritora Maria Benedita Bormann que pode ser encontrada no site www.normatelles.com.br. Publicou Ronda das feiticeiras (2007), “Bestiários” (2008), “Escritoras, escritas, escrituras (2009)”, “A escrita como prática de si” (2009), “Retratos de mulher” (2010), “Memórias do fundo do poço” (2011)..


 

[1] Mary Wollstonecraft, Letters written during a Short Residence in Sweden, Norway, and Denmark. Cambroidge University Press, 2010.  Os numerous de página entre parentheses  em citações desse livro são sempre dessa edição. A referência no corpo do livro ao título está abreviada para Letters.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012