labrys,
études féministes/ estudos feministas
A fragilidade feminina nos quadrinhos de superaventura na década de 1960 Natania A. S. Nogueira Resumo: Inicialmente, tratados apenas como uma forma de lazer, hoje, as histórias em quadrinhos inspiram uma gama variada de pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Um dos gêneros mais populares dos quadrinhos, a superaventura, tem ganhado especial destaque. Todo o discurso e toda a mitologia criada em torno dos super-heróis tornaram os comics uma fonte particularmente rica para os estudos de gênero. Entre os ícones mais cultuados dos quadrinhos está o Superman. No entanto, pouco ou quase nada se fala de sua contraparte feminina, a Supergirl. Nossa proposta, então, é trazer à luz este personagem e analisar o conteúdo de algumas de suas aventuras, publicadas entre 1959 e 1965. A partir da análise deste material, estabelecer relações entre as representações femininas nos quadrinhos da Supergirl e a dominação masculina estabelecida por meio da violência simbólica. Palavras-chave: Família. Gênero. Quadrinhos. Violência simbólica.
Introdução A história das histórias em quadrinhos começou a ser escrita a partir do final do século XIX, quando esta forma de arte sequencial passou a ser reconhecida e nominada como tal. Esta história está permeada não apenas de personagens fictícios, mas, principalmente, envolta nas mais diversas tramas, mudanças e crises que marcaram a sociedade ocidental durante todo o século XX. Os quadrinhos foram campo fértil para a representação de anseios, valores, paradigmas e estigmas das sociedades em que foram produzidos. Os quadrinhos podem ser instrumentos axiológicos e políticos. Eles alternaram visões de mundo que, em muitos momentos, podem ser conflitantes. Nos quadrinhos, em especial nos comics norte-americanos, podemos identificar as mudanças pelas quais passaram as relações humanas e políticas. Partindo desse pressuposto, é possível afirmar que as histórias em quadrinhos são documentos importantes para se entender as ideias e os valores dominantes de uma época. No caso específico desta pesquisa, interessam-nos as representações femininas e as relações de gênero que se desenvolveram nas páginas dos quadrinhos de superaventura nos primeiros anos da década de 1960. No início dos anos de 1940, as jovens heroínas eram decididas, tinham planos, buscavam sua realização principalmente por meio de uma profissão. Eram independentes e pensavam no futuro como um campo inexplorado de possibilidades. Essas heroínas, que estavam no cinema, nos romances, nas revistas e, claro, nos quadrinhos, possuíam as qualidades e os valores que estavam presentes, em menor ou em maior escala, nas mulheres comuns. “A maioria das heroínas das principais revistas femininas — Ladies Home Journal, McCall's, Good Housekeeping, Woman's Home Companion — eram mulheres atraentes, que tinham sua carreira e viviam felizes, orgulhosas, amando e sendo amadas pelos homens. E a energia, a coragem, a independência, a determinação, a força de vontade que manifestavam no trabalho de enfermeira, professora, artista, atriz, escritora, comerciária, faziam parte dos seus atrativos. Davam a nítida impressão de que sua individualidade era algo a ser admirado, e que os homens se sentiam atraídos tanto por sua energia e caráter, como por sua aparência.” (FRIEDAM, 1971: 36) Após a Segunda Guerra Mundial, as “mulheres de papel”, termo usado com muita propriedade por Selma Regina Nunes Oliveira (2007), sofrem os efeitos do backlash. Elas não deixam de ter seus poderes ou habilidades, mas passam a depender cada vez mais dos personagens masculinos. As heroínas - como A Mulher Maravilha, Sheena e Miss Fury que passavam para as leitoras e os leitores uma imagem de independência a autonomia - ou sofrem uma releitura (são reinventadas) ou desaparecem. Segundo Oliveira, “durante a década de 1950, o antifeminismo chegou ao auge nos Estados Unidos e foi negada a participação da mulher na política, ao mesmo tempo em que aumentaram as pressões moralistas sobre a mulher” (OLIVEIRA, 2007:34). Novas super-heroínas surgem, nas décadas de 1950 e 1960, influenciadas por esta onda de conservadorismo. Elas voltam a ser representadas como as mocinhas ingênuas que povoaram o universo dos quadrinhos até a década de 1930. Mesmo a mais poderosa das super-heroínas se vê sob a tutela de um homem ou, de certa forma rebaixada, em relação a ele. É o caso da Supergirl, objeto do nosso estudo. Criada dentro deste contexto, esta personagem é muitas vezes apresentada como a mulher mais poderosa da terra. Mas, ao mesmo tempo em que aparece como a heroína audaciosa, é, também, a adolescente frágil, com conflitos internos, dependente e insegura. Gênero, preconceito e superaventura É necessário pensar o conceito de gênero nas relações sociais e institucionais sejam elas fenômeno do universo real ou fictício. As relações de gênero se expressam, também, nas páginas das histórias em quadrinhos, da mesma forma como se fazem presentes nas práticas sociais cotidianas. Assim, quando analisamos a presença feminina e as relações de gênero presentes nas histórias em quadrinhos, com foco em determinado personagem e contexto, estamos na verdade buscando identificar os mecanismos de dominação de uma determinada configuração (SAMARA, 1997). Levando em conta a dialética que norteia essas relações, um(a) autor(a) de histórias em quadrinhos pode reproduzir uma modelo masculino de dominação ondem, de uma perspectiva simbólica, o conflito estará constantemente presente. A dominação masculina seria, assim, uma forma particular de violência simbólica que, por meio de significações, impõe-se como legítima. Mas, onde há dominação há, também, formas de resistência a ela, que se fazem presentes em toda relação de gênero e que acabam surgindo nas histórias em quadrinhos, pois elas, mesmo as de superaventura são, ao mesmo tempo, construções e leituras da realidade (REBLIN, 2012). “Personagens de histórias em quadrinhos são como pequenos franksteins: construídos por partes. Eles são idealizados com base em certos atributos físicos ou psicológicos como cabelo, altura, ou temperamento, que não são simples características, mas sentidos que se integram às redes de significações (...). Assim, o processo de produção de um personagem de histórias em quadrinhos é, na verdade, o processo de produção de uma representação, enquadrado coletivamente na prática social.” (OLIVEIRA, 2007: 141) O ano de 1936 – com o surgimento de Sheena, a rainha da selva, por Will Eisner e Jerry Iger - acena para o surgimento de uma nova mulher de papel: aventureira, independente e sensual. Na década de 1940, as heroínas ganham superpoderes e a superaventura passa a ser o gênero onde as mulheres conquistam um espaço cada vez maior. Mas, em 1954, quando é publicado o livro de Fredric Wertham, A sedução do Inocente, acirra-se a perseguição contra os quadrinhos e contra as super-heroínas. “Wertham questiona ainda o papel das histórias em quadrinhos na representação do masculino e do feminino. Ele contra-argumenta a afirmação de que as histórias em quadrinhos expressam uma equidade entre o papel social de homens e mulheres. Para o psiquiatra, não existe nenhuma compreensão avançada do masculino e do feminino, mas um retrocesso perverso. Mais ainda, as histórias em quadrinhos estimulam (e aqui o tom é de acusação) as relações homoafetivas masculina e feminina, representado na relação entre Batman e Robin e nas histórias da Mulher Maravilha.” (REBLIN, 2012: 37-38) Para Wertham, as representações das mulheres nas histórias em quadrinhos significam uma deturpação masculinizada do desenvolvimento humano e moral e um péssimo exemplo para meninos e meninas, em especial, os quadrinhos da Mulher Maravilha, que ele considera uma afronta à família, à moral e aos bons costumes (REBLIN, 2012: 40). A resposta a este discurso, que encontra eco em vários setores da sociedade civil, é uma mudança radical em muitos personagens assim como o desaparecimento de outros. Para se protegerem, as editoras criaram o Comic Code Authority (CCA), em 1954; uma forma de autocensura, a fim de salvaguardar títulos e personagens. Como consequência, os quadrinhos mudaram, os roteiros ficaram mais superficiais, muitos personagens, em especial personagens femininas, como a Mulher Maravilha, sofreram mudanças visíveis em seu comportamento. Se por um lado o selo de aprovação do Comic Code Authority tranquilizava os pais quanto ao seu conteúdo, por outro representou um retrocesso para os quadrinhos, enquanto expressão artística e das relações de gênero neles representadas. “Para a MM (Mulher Maravilha), o CCA representou o final de sua postura como símbolo feminista. Tornando-a uma personagem quase anódina. Esta combinação permaneceu (...) até os anos 70, quando as coisas começaram a mudar. Não apenas para ela, mas nos quadrinhos em geral.” (CHACON, 2010: 31) E são essas relações de gênero que nos interessam. Os quadrinhos de superaventura dos anos de 1950 e 1960 podem nos dizer muito acerca de como a sociedade desejava representar a relação feminino/masculino para a juventude norte-americana, consumidora deste produto, que, também era publicado em grande escala no Brasil. Essas narrativas do gênero superaventura podem ajudar a entender a influência da mídia no comportamento dos jovens leitores a partir das representações que elas apresentam e do discurso nelas contido. Para tanto, escolhemos como objeto de estudo a Supergirl, personagem criada para agir em parceria com o Superman e para ser um modelo de boa moça, de jovem comprometida com a família e, claro, com os bons costumes. Supergirl, a pequena órfã busca uma família A ideia de se criar uma personagem derivada do Superman ganhou força em 1958, quando uma personagem feminina apareceu na revista Superman #123. Seus criadores foram Otto Binder e Curt Swan. Mais velha e sabendo usar muito bem seus poderes, ela foi fruto do desejo de Jimmy Olsen, que, ao se apossar de um totem mágico, imaginou uma versão feminina do Superman. Nessa primeira versão, temos uma mulher determinada com autoestima invejável. Uma cópia feminina perfeita do Superman. Mas não poderia ser o contrário, pois ela foi assim desejada. A parceira perfeita para o super-herói mais famoso dos quadrinhos. No entanto, esta parceria dura pouco; uma única aventura com um desfecho heroico/trágico: a primeira Supergirl morreu protegendo o Superman de um meteoro de kryptonita. Ele é importante demais para morrer, por isso ela precisa se sacrificar em seu lugar. O fim trágico conquista a simpatia do leitor. Afinal, a boa mulher não é a aquela que se sacrifica? No ano seguinte, no entanto, a Supergirl chegaria para ficar, na forma da prima adolescente do Superman. A história foi publicada na Action Comics #252. O uniforme é praticamente o mesmo, mas a heroína sofre uma mudança radical em sua personalidade. Ela não é mais uma mulher formada e, sim, uma menina; uma adolescente confusa, insegura e que cultiva um profundo sentimento de abandono. Uma pobre órfã sem família. Ela é Kara, a última sobrevivente de um grupo de kryptonianos que ainda resistia após o fim trágico do planeta. Da mesma forma que o Superman, ela foi enviada a Terra pelos pais, para que o legado da família pudesse sobreviver. O encontro entre os primos dá início a uma nova fase das aventuras do Superman, que passa agora a dividir espaço com a Supergirl. No entanto, num primeiro momento, a relação entre eles é marcada pela desconfiança e pelo medo. Desconfiança do Superman com a chegada de um membro da sua família do qual não sabia a existência. O medo e a insegurança de Kara que não quer decepcionar o primo, por quem passa a nutrir, quase de imediato, uma grande admiração. Neste momento e em muitos outros, a Supergirl representa, o ideal de mulher que a sociedade dirigida pelos homens espera ver representada: obediente e devotada. Figura 01
Supergirl. Action Comics, n° 252, Maio de 1959, p. 06. Ao contrário da primeira Supergirl, criada à imagem do Superman e, portanto, portadora de todas as suas qualidades, a jovem Kara é apenas uma menina insegura, sozinha em um mundo desconhecido e que possui como única referência uma figura masculina, o Superman. Ela é a pobre órfã que havia perdido toda a família e busca no primo que não conhecia alguém que possa preencher o vazio deixado pelos pais. No entanto, o Superman, para a surpresa de quem lê a história, não acolhe a prima. O mais gentil e altruísta dos heróis toma, então, uma atitude egoísta. Ele a leva para viver em um orfanato em Midvale, onde ela é apresentada com o nome Linda Lee. Para justificar esta atitude, ele alega que ela ainda não está preparada para ser apresentada ao povo do planeta e que o fato de serem primos poderia comprometer sua identidade secreta. Assim, a Supergirl é levada a viver ao lado de estranhos, sempre se lamentado do fato de não ter uma família e, ao mesmo tempo, impedida de um dia vir a ter, pois não deseja colocar em perigo o segredo do primo. A história inicial da Supergirl se assemelha, em alguns momentos, à da personagem Little Orphan Annie (Aninha, a pequena órfã), personagem criada por Harald Gray, em 1924 (MOYA, 1996: 55). Aninha era, usando as palavras de Oliveira (2007), a personificação da inocência da América. Tal impressão é passada, também, pela Supergirl, sempre disposta ao sacrifício, nunca perdendo a esperança de felicidade. Tal como Aninha, a Supergirl passaria por uma série de desventuras até conseguir aquilo que parece ser seu maior desejo desde a primeira história: uma família. A adoção representaria a criação de raízes, como ocorrera com o Superman. Por meio da adoção, Kara poderia ser integrada à sociedade, mas sua origem Kryptoniana surge como um problema, um obstáculo apontado pelo Superman logo que a conhece: ela não está pronta para ser apresentada ao mundo. Ele sabe disso, ele viveu quase toda a sua vida na terra. Como seu primo, como homem, ele sabe o que é melhor para ela. Kara então se oferece ao sacrifício de viver entre estranhos e de não poder ter uma família. Segundo a moral cristã é pelo sacrifício que a mulher se redime, uma vez que ela é a única responsável pela perda do paraíso. Assim, dar-se de sacrifício pelo outro é o mínimo que se espera das mulheres (OLIVEIRA, 2007: 194). A supermulher e a violência simbólica Como já vimos, Kara será colocada em um orfanato pelo Superman, que delega ao Estado a obrigação de cuidar da prima. No entanto, mesmo distante, ele exercerá um grande controle sobre a jovem, presa à promessa de guardar seu segredo escondendo sua origem extraterrestre e vivendo uma vida que não é a sua. Como pater, Superman tem autoridade para decidir o que é melhor para a jovem. Ela se consola com o fato de se considerar a arma secreta do Superman. Assim, o período em que vive como Linda Lee no orfanato é marcado pela solidão e o medo de, de alguma forma, desagradar o primo. O peso da responsabilidade, do segredo, o sacrifício da felicidade e a solidão são os preços que ela acredita ter que pagar para que seu grupo familiar não seja ameaçado. Afinal, ela é uma estrangeira, em um mundo hostil e desconhecido. Logo que chega é obrigada a se esconder sob uma falsa identidade, ou seja, mentir para todos com quem irá conviver. Por viver uma vida que não é sua, Kara não se sente membro de uma comunidade, de um grupo. Kara deseja uma amiga com quem possa ser ela mesma, possa fazer confidências, enfim, possa partilhar suas aventuras. Meninas precisam se relacionar com meninas. As desejadas amigas surgem na Action Comics #276. Em uma aventura, a personagem, encontra três super-heroínas, membros da Legião dos Super-Heróis, equipe do futuro. Surge, então, a possibilidade de estabelecer amizade com outras heroínas sem desta forma quebrar a promessa feita ao primo. Ela não precisaria mentir e não colocaria em risco seu grupo familiar. O grupo de amizades da Supergirl durante muito tempo se limitou aos amigos e parceiros do Superman. Dentre eles podemos citar a Legião dos Super-heróis e Lori, a sereia da Atlântida. Em suas aventuras também participam os animais superpoderosos, como Beppo (Super-Macaco), Cometa (Super-Cavalo), Krypto (Super-Cão) e Raiado (Super-Gato). Mas o que se torna determinante para que ela possa estabelecer relações de amizade e convivência com suas novas amigas e com o grupo ao qual elas pertencem (A Legião dos Super Heróis) é o consentimento do Superman. Ela aceita a amizade porque sabe que terá aprovação do Superman. Mesmo sua entrada no grupo está subordinada a isso. Mesmo se interceder diretamente o Superman está presente nas decisões que sua prima toma. Ele é seu modelo. A atitude certa é aquela que ele aprovaria. As amigas do futuro, com as quais vive algumas aventuras, não podem suprir aquilo que ela mais precisa e mais deseja: ser adotada e ter um lar. Kara está presa ao grupo familiar atípico formado pelo primo, Superman, que insiste manter a sua existência em segredo e faz com que a prima, por essa razão, deixe de desenvolver relações afetivas saudáveis com outras pessoas. Kara é levada a acreditar que que ser adotada ou estabelecer relações de amizade com indivíduos fora do circulo de amizades do Superman colocaria em risco a promessa feita ao primo quando chegou à Terra: manter segredo sobre sua identidade para não comprometer o segredo do próprio Superman. A busca pela aprovação do primo é uma constante em suas histórias, principalmente as primeiras. Apesar de ter chegado a Terra no ano de 1959 (ano da sua criação como personagem), sua apresentação ao mundo só aconteceria em 1962, quando o Superman revelaria sua existência. Sua devoção e o bom trabalho que realizou durante o período em que esteve em “treinamento” é recompensado com a declaração pública do Superman que a assume publicamente como parte do seu clã e a acolhe em sua casa. Neste momento, Linda Lee já havia sido adotada por um simpático casal, Fred e Edna Danvers, que lembra muito os Kents, pais adotivos do Superman. A forma como o enredo se desenvolve, iniciando com a tragédia da morte dos pais da super-heroína, com sua chegada a Terra, sua vida solitária no orfanato, a adoção e depois o reconhecimento oficial da sua existência coloca Kara como uma personagem de romance que precisa passar por sofrimento e privação até atingir a felicidade. Por ser virtuosa, ela é recompensada. Aí podemos encontrar, novamente, o discurso paternalista do Superman. Ele está dando a ela aquilo que ela deseja. Kara não conquista seu espaço ela o ganha, pois foi uma “boa menina”, cumpriu bem sua obrigação. Figura 02
O mostro Infinito. Supermoça. Star Álbum. Rio de Janeiro, EBAL, 1969, n. 13 p. 14. O discurso presente nos quadrinhos de superaventura neste recorte coloca a supermulher sempre em condição de inferioridade diante da sua contraparte masculina. A condição feminina da Supergirl é o que lhe faz inferior biologicamente ao primo. Ela é forte, ela tem todos os seus superpoderes, mas ela é mulher. Na já citada aventura que protagoniza com a legião dos Super-heróis, a Supergirl consegue romper este equilíbrio. Ela se torna mais poderosa que o Superman porque recebe de Brainiac 5 um cinto que lhe protege da radiação venenosa da kryptonita. Ela mesma reconhece o fato: é agora mais poderosa que o primo. No entanto, ao se livrar de um meteoro de kryptonita verde, que representava uma ameaça ao Superman, o cinto é danificado. Ela é reconduzida à sua situação de inferioridade. É interessante perceber que a suposta condição de inferioridade é tida pela heroína como um fato. O Superman é superior por ser homem, mais velho e, portanto, mais experiente. Ela é inferior por ser mulher, por se mais jovem e, portanto, não ter experiência de vida. O que muda, mesmo que temporariamente, esta condição é o fato da Supergirl não possuir a mesma fraqueza que o Superman. Em outros momentos a Supergirl voltará a ser imune à radiação da kryptonita e o próprio Superman chega a colocar em questão sua condição de auxiliar, de arma secreta em dúvida. Ele chega a admitir que ela é superior. A noção de hierarquia parece estar condicionada à força física, ao número de poderes que se possui, pelo menos esta é a lógica contida no raciocínio do Superman, que chega a admitir sua condição de inferioridade frente à prima com aparente tristeza e, por que não, uma pequena dose de inveja. Kara também enfrenta a situação de uma forma curiosa. Ela se sente feliz em ser mais poderosa, mas não se coloca numa posição hierarquicamente superior. Figura 03
Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 11, 1969, p. 14. Aventura originalmente publicada em Action Comics #282, em novembro de 1961. Este novo episódio, no entanto, não dura muito, pois na verdade se trata de uma brincadeira arquitetada pelo vilão Mr. MXYZTLK. Ele interfere nos planos da vilã e arqui-inimiga da Supergirl, Lesla-Lar. Lesla Lar é uma cientista que vive na cidade engarrafada de Kandor. Ela é uma gêmea exata da Supergirl, deseja dominar a Terra e derrotar o Superman com a ajuda de Lex Luthor, trocando de lugar com a Supergirl e roubando seus poderes. Mas, a Supergirl recupera seus poderes e continua imune à kryptonita verde, sofrendo apenas os efeitos da kryptonita vermelha. No fim, o Superman retorna à posição de maior super-herói da terra e ela retoma seu papel de ajudante. Mas o que é ser ajudante do Superman? Como sua arma secreta, a Supergirl está sempre pronta a auxiliar o primo quando ele precisa e a se sacrificar por ele se for necessário. Mas se a mensagem que nos passa o enredo das aventuras que envolvem a dupla neste período é de que a Supergirl é inferior por ser mulher e por ser pouco mais do que uma menina, mesmo tendo todos os poderes do Superman, por outro lado fica clara a necessidade que o Superman tem de eventualmente contar com a sua “arma secreta”. Como parceira do Superman, ela o auxilia nos momentos difíceis e é salva pelo primo quando se vê em dificuldades. Ela é levada a acreditar na sua situação de subordinação, de inferioridade. Reproduz uma imagem de obediência, recato, de devoção, de aceitação do seu destino, seja ele bom ou ruim. Se por um lado os quadrinhos da Supergirl nos mostram a submissão feminina e a dominação masculina, de outro temos uma inversão de papéis quando, no caso estudado, é a mulher que em alguns momentos salva o homem. Apesar de acreditar na sua condição de inferioridade e de submissão a Supergirl irá proteger o Superman. Ela é um escudo que ele usa em momentos de dificuldade. Assim, quem é fraco e quem é forte? Quem domina e é dominado? Apesar de a narrativa nos conduzir a entender que a Supergirl é quem precisa do Superman, ela vai salvá-lo nos momentos mais difíceis e será ela quem se sacrifica para que ele não seja prejudicado. Apesar da Supergirl, enquanto personagem, incorporar o discurso de dominação, ou seja, aceitar sua condição inferior, é possível perceber que esta condição não é absoluta e que a dominação possui seus limites. É bem provável que, ao ler os quadrinhos da super-heroína, as meninas se identifiquem com ela não em sua condição subalterna, mas em sua condição de superioridade, de força, de coragem, valorando o papel feminino dentro do universo dos quadrinhos.
A representação da Super Família e o silêncio das mulheres
Qual o conceito de família que poder ser empregado na mitologia do Superman? Esta é uma questão instigante. A ideia de família para muitos super-heróis dos quadrinhos envolve uma série agregados. No caso da representação da Super Família (figura 04), até vilões e animais de estimação foram a ela relacionados. O elo de união da Super Família que estamos analisando, nos recorte que envolve a década de 1960, é o Superman. A Supergirl aparece ao seu lado como parente de sangue. Temos os pais adotivos, os pais naturais, tios, animais, amigos e vilões. Trata-se de uma família estendida, onde é possível identificar parentes consanguíneos e agregados. Figura 04
La Doce Vita. Disponível em http://cidadaoquem.blogspot.com.br/2010/12/super-familia.html, acesso em 20/10/2012. A família, enquanto instituição social possui várias funções e sofreu diversas mudanças na sua configuração durante a história. De fato, não existe uma família, mas várias famílias que, no tempo e no espaço, se apresentaram como formas de socialização e organização social. No seu significado mais básico dá-se o nome de família a um grupo caracterizado pela residência em comum e pelo convívio de pais e filhos (NETTO, 1978: 457). A tendência moderna é considerá-la como um sistema de papéis - um processo histórico sujeito a múltiplas mudanças - que se adapta de acordo com as transformações operadas na própria sociedade (NETTO, 1987: 458). No caso da Super Família talvez seja mais prudente classifica-la como grupo familiar, uma vez que não são os critérios biológicos que a definem. Nessa família a liderança fica a cargo do Superman, elo unificador, que assume o papel de pai social (pater). “A tendência da família humana sempre foi romper os limites biológicos criados, por exemplo, pelo relacionamento sexual e pela reprodução, rompidos através de relacionamentos sociais como adoção ou o parentesco fictício.” (NETTO, 1987: 457) Nesse grupo familiar específico, o Superman (pater) assume o papel de patriarca e nele predomina uma relação patrilateral ou patrilinear uma vez que a descendência é traçada pelo lado masculino (NETTO, 1978: 874). Os homens são o foco das ações e estão no centro do grupo. O pai do Superman tem papel de destaque, o pai adotivo é responsável pela sua formação moral, o pai da Supergirl é seu tio. Prevalece a descendência masculina em detrimento da feminina. Tanto a mãe biológica quanto a mãe adotiva do Superman são personagens pouco explorados e que pouco se manifestam dentro da sua mitologia. “Martha (...), foi mostrada apenas como a mulher de Jonathan Kent e a cozinheira da família. Coube apenas a Jonathan Kent a tarefa de ensinar o herói a usar seus dons e a ter seus valores e ética, o confidente e a autoridade estavam concentrados nele. O papel de mãe foi normalmene destinado, e referendado, papel de mãe, isto é, alimentar, vestir etc.” (CHACON, 2010: 49) De fato, o papel maternal dentro da mitologia do Superman, pelo menos no recorte que estamos analisando é quase que nulo. A mãe de Kara, em Action Comics, # 252, possui apenas três falas e, curiosamente, duas delas ocorrem quando ela está executando seu papel de mãe, alimentando a filha e costurando seu uniforme. Coincidentemente o mesmo papel que Martha Kent desempenhou na vida do Superman. Na mitologia do Superman as mães não têm voz. Elas estão submetidas a um universo patriarcal. A referência central é sempre o homem: o pai biológico, o pai adotivo, o primo mais velho. As personagens femininas se espelham nestes referenciais. O silêncio das mulheres nas histórias em quadrinhos não é diferente do silêncio das mulheres na História. Michelle Perrot (2005) chama a atenção para o reforço do papel das mulheres do lar, aquela que aquela que educa, limpa, costura e alimenta. A mulher, mesmo que tenha que trabalhar, não pertence a si mesma, mas aos filhos e marido. A esposa, a mãe, é toda doação. Não tem identidade própria fora da família, pois é a família que define seu papel na sociedade. “[...] as mulheres são vistas como ligadas ao mundo da casa, ao doméstico e ao cuidado dos filhos. A capacidade corporal feminina relacionada à reprodução da espécie humana delimita o espaço da mulher na vida em sociedade; seu papel social de “cuidadora” confere-lhe uma posição hierárquica inferior em relação aos homens publicamente ativos e provedores.” (SAYÃO, 2003: 123) Esse modelo, presente na sociedade norte americana nas primeiras décadas do século XX, sofreu abalos com a crise de 1929 e com as duas guerras mundiais, mas, mesmo assim, permaneceu sendo a célula mater da sociedade, conservando sua configuração, e os papeis que, por um curto espaço de tempo tiveram que ser trocados, foram facilmente restabelecidos (OLIVEIRA, 2007. p.84). Se por um lado as guerras ofereceram espaço para que as mulheres assumissem outros papéis na sociedade ocidental, ocupando novos postos de trabalho, tornando-se peça importante para o desenvolvimento social e econômico, por outro lado, o retorno dos homens ao lar traria consigo a perda de muitas conquistas. “A guerra é, em suma, geradora de frustações, na medida em que ela fecha as saídas que se entreabriam ou que ela mesma abrira. Assim, ela contribui para aumentar a tensão entre os sexos, a consciência que cada um deles tem de si mesmo.” (PERROT, 2005: 446) Nas décadas de 1950 e 1960 essa tensão pode ser percebida nos quadrinhos. A independência feminina é questionada e o papel das mulheres dentro e fora da família é cerceado. A fragilidade feminina é reforçada por discursos que maximizam o papel dos homens em detrimento ao das mulheres. Eventualmente Kara consegue ser adotada, e passa a compor um núcleo familiar tipicamente americano. Seu nome civil passa a ser Linda Lee Danvers. A adoção é representada como uma dádiva que ela recebe, agradece e estimula. Kara agradece sendo a filha perfeita, sempre prestativa, obediente, motivo de orgulho da família. O caráter positivo da adoção é apresentado em algumas sequências, em histórias publicadas nos Estados Unidos no início da década de 1960. Kara lembra emocionada que já havia sido órfã e, em outros momentos, levanta a bandeira da adoção. A relação de Kara com os pais adotivos lembra muito a relação que estabelece com o primo, de subserviência. Ela é uma filha perfeita, sempre prestativa, orgulho de sua família. Sua mãe é uma dona de casa eficiente, o modelo da mãe zelosa. Eles aparecem muitas vezes em situações cotidianas, típicas da classe média americana dos anos 1960. A mãe na cozinha, o pai vendo televisão ou lendo jornal. Conhecem a identidade secreta da filha e apoiam sua luta contra o mal, afinal, o Superman precisa de uma ajudante. As representações do amor e do casamento nas aventuras da Supergirl
Representações do amor e do casamento nas histórias em quadrinhos da Supergirl podem ser encontradas com alguma frequência nas aventuras publicadas no recorte estudado. Estas representações estão relacionadas ao papel das mulheres na sociedade da época, seja ela uma jovem colegial ou uma dona de casa. As heroínas dos romances publicados em livros, revistas e jornais ou as super-heroínas nos quadrinhos, representavam o ideal feminino, que vinha sendo reproduzido desde o final da década de 1940. “A figura de mulher que emerge dessas bonitas revistas é frívola, jovem, quase infantil; fofa e feminina; passiva, satisfeita num universo constituído de quarto, cozinha, sexo e bebês. A revista não deixaria, com certeza, de falar em sexo, a única paixão, o único objetivo que se permite à mulher em busca do homem. Está atulhada de receitas culinárias, modas, cosméticos, móveis e corpos de mulheres jovens, mas onde estaria o mundo do pensamento e das ideias, a vida da mente e do espírito? Na imagem da revista as mulheres só trabalham em casa e no sentido de manter o corpo belo para conquistar e conservar o homem.” (FRIEDAM, 1971: 34) A Supergirl é uma super-heroína adolescente que se enquadra em muitos dos estereótipos femininos da época. Ela ainda não é uma mulher em formação. Existe a preocupação em reproduzir em suas aventuras um comportamento que se espera de uma jovem em seus quinze ou dezesseis anos, principalmente um comportamento sexual que se enquadre dentro dos padrões moralmente aceitos. Assim, suas relações afetivo/amorosas com rapazes da sua idade ou mais velhos são representadas de forma inocente, platônica e superficial. Está constantemente presente a preocupação em afirmar e confirmar a heterossexualidade da personagem, possivelmente um efeito das duras críticas sofridas pelos quadrinhos durante aquele período. Retornando a Wertham, um dos pontos que ele levanta em seu livro é a questão da sexualidade dos super-heróis. O psicólogo acusava os quadrinhos de estimularem as relações homoafetivas, pois era comum que os super-heróis tivessem um parceiro adolescente (sidekick), em geral do mesmo sexo. Wertham via, nesta parceria, indicativos de homoafetividade, forçando muitos dos super-heróis a comprovarem sua orientação sexual assumindo relacionamentos nos quais provavam seu interesse pelo sexo oposto. Kara, demostra, em muitos momentos, interesse por rapazes, embora, no período estudado, este interesse se resumisse muitas vezes em pensamentos tímidos ou na afirmação de que este ou aquele personagem lhe despertava uma simpatia especial. Ela não discute sua vida afetivo/amorosa. Como boa moça, ela gostava de rapazes, mas os mantinha a certa distância cumprindo as regras morais exigidas pela sociedade. No entanto, sua proximidade com o Superman levantava a questão sobre a extensão do relacionamento afetivo desenvolvido por ambos. Uma aventura, em particular, tem como centro da trama a opção do Superman pelo celibato. Publicada nos Estados Unidos no ano de 1964 e no Brasil em 1970, na trama, Kara, convencida de que o Superman não se casará nem com Mirian (Lois) Lane ou Lana Lang, pretende encontrar uma namorada para o primo. Para a romântica Supergirl, um homem precisa de uma mulher para casar e, assim, encontrar a felicidade. Era o ideal do amor romântico, entendido como a origem da verdadeira felicidade, que só poderia ser alcançada por meio do casamento, que era o lugar de realização do amor. Filmes, jornais, folhetins e até histórias em quadrinhos foram formas de divulgação deste ideal, que valorizava o casamento, como sendo o lugar onde tanto homens quanto mulheres encontrariam a total realização. Figura 05
Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 15, 1970, p. 04 Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 15, 1970, p. 05. A felicidade estaria condicionada ao matrimônio. Por ser solteiro e sem perspectiva de casamento, o Superman, segundo a ideia desenvolvida por Kara, estaria destinado a ser infeliz. Sua missão, neste caso, era garantir a felicidade do Superman, encontrando-lhe uma esposa. Para tanto, ela cria uma série de situações que fazem com que ela e o Superman viagem para o passado e para o futuro, a fim de conseguir para ele uma esposa A narrativa, como é característico do período, é superficial, mas carregada de simbolismo. Quando a Supergirl revela a ele seu plano, Superman argumenta que seu trabalho como protetor da Terra não lhe permite se envolver em relacionamentos afetivos e que o próprio fato de ser Kryptoniano reduz a possibilidade de poder um dia se casar. Ele precisa de uma mulher que seja como ele, mas este tipo de mulher não existe. Na verdade, existe, pois a própria Kara se enquadra neste perfil. Como é de origem Kryptoniana, ela seria a parceira perfeita para o Superman. É o herói que levanta a hipótese da união, como se o casamento fosse um jogo de conveniências. A esposa perfeita para um casamento feliz. Mas é também diante desta constatação que o super-herói coloca a impossibilidade desta união, uma vez que não pode se casar ou se envolver romanticamente com a prima uma vez que em Krypton, seu planeta natal, o casamento entre parentes é ilegal. O Superman deve cumprir as regras impostas não apenas pela sociedade em que foi criado, mas também pela sociedade que representa. Ao mesmo tempo ele reafirma e justifica sua virilidade. Este parece ser o ponto em questão de toda a narrativa. O Superman não se casa ou não assume um relacionamento afetivo não porque não se sente atraído pelas mulheres, mas porque ele não pode ou ainda não encontrou uma mulher que possa se enquadrar no padrão que ele estabelece para si mesmo. É curioso notar a facilidade com que o Superman se deixa conduzir pela jovem e acaba se envolvendo romanticamente com algumas mulheres ao decorrer da narrativa. Ele aceita o fato de que o casamento é importante e não se opõe aos planos da Supergirl. Ele chega a encontrar a parceira ideal, uma versão mais velha da Supergirl que mora em outro planeta. Mas a realização deste amor encontra obstáculos. A amada prefere sacrificar sua felicidade a ter que privar a Terra do seu protetor. Mais uma vez o sacrifício feminino está presente nas mulheres que povoam a mitologia do Superman. O Superman é um dos poucos super-heróis que possuem uma parceira de ação do sexo feminino. Ela é sua prima, uma parente de sangue. Ele, pelo menos na época, não assume compromisso amoroso com uma mulher, mas reafirma sua virilidade ao declarar seu interesse pelo sexo oposto e chega até galantear com a prima. A Supergirl, por sua vez, é a representação da moça virtuosa, que recebe a atenção de rapazes, que declara sua predileção pelo sexo oposto, mas não ultrapassa os limites de um relacionamento platônico. Seus namorados nada mais são do que os rapazes que por ela se interessam, que a cortejam e deixam claro seu interesse em compartilhar de um relacionamento afetivo mais intenso. Ela tem consciência deste interesse, ele lhe agrada, mas não evolui para um relacionamento concreto. Mas ela valoriza o casamento como um ideal feminino, sua natureza sobre-humana seu dever para com os mais fracos muitas vezes são utilizados como justificativa para não se envolver romanticamente, assim como acontece com o Superman. Para além do universo dos quadrinhos, nos Estados Unidos da década de 1960 o casamento revelava-se incapaz de satisfazer completamente todos os cônjuges. Segundo Betty Friedan, se por um lado havia entre as mulheres solteiras a convicção de que o casamento lhes traria se não a felicidade, mas pelo menos a estabilidade, aumentava o número de mulheres casadas que buscavam tratamento psiquiátrico insatisfeitas no casamento. “Alguns psiquiatras declararam que, estranhamente, segundo suas observações, as solteiras eram mais felizes que as casadas. E foi assim que a porta de todas aquelas bonitas casas de subúrbio entreabriu-se, revelando milhares de donas de casa sofrendo de uma crise sobre a qual, de repente, todo mundo se pôs a falar, encarando-a como um desses insolúveis problemas da vida americana, tais como a bomba de hidrogênio. Em 1962, a condição da dona de casa americana tornou- se um jogo de salão para todo o país. Números de revistas, colunas de jornais, livros sérios e frívolos, conferências educativas e programas de televisão eram dedicados ao assunto.” (FRIEDAM, 1971, p. 26) O ideal da felicidade conjugal começava a ruir. Talvez, por essa razão, tanto os quadrinhos quanto outras mídias reforçassem a necessidade de se preservar a célula familiar. As moças eram levadas a crer que um marido poderia substituir uma profissão, que a realização pessoal estava na maternidade. Não apenas as moças, mas os rapazes também eram bombardeados por um ideal de romantismo que resumia a felicidade à união matrimonial e onde o relacionamento entre os cônjuges acabava resumindo-se em um pragmatismo raso. Considerações finais Atualmente, encarar as histórias em quadrinhos apenas como uma forma de arte ou uma mídia é praticamente impossível. Com mais de um século de existência, representando em suas páginas valores, anseios e ideias do contexto em que foram produzidos, os quadrinhos podem ser considerados uma espécie de termômetro social. Assim, eles assimilam discursos, crenças, representações e paradigmas de quem os produziu. Os quadrinhos, como fonte de estudo e pesquisa na área de ciências humanas, dialogam com o pesquisador. Eles têm um potencial pedagógico (e aqui não me refiro à pedagogia como ensino formal, mas como capacidade de repassar informação, difundir ideias) que em determinados momentos tiveram um alcance muito maior do que o jornal e o cinema. Quadrinhos foram feitos para meninos e meninas. Durante a década de 1950, as superaventuras passaram a ser direcionadas para os meninos, enquanto que para as meninas eram indicadas personagens mais infantilizadas. Mas, onde há regra há transgressão. As meninas também acabavam de uma forma ou outra consumindo os quadrinhos de superaventura. Nesses quadrinhos, elas passaram a encontrar o modelo feminino perfeito: a Supergirl. Uma heroína adolescente, com dramas da juventude, com sensibilidade aflorada e muitos poderes. Uma jovem que reconhece a autoridade patriarcal, que cumpre seus deveres e que é submissa. A jovem de classe média dedicada à família e que aceita sem questionar seu papel na sociedade. As histórias da Supergirl, por mais inocentes que pareçam, serviram para a difusão do modelo patriarcal, centrado na autoridade masculina e para definir o papel feminino na sociedade dominada pelos homens. Ela está carregada de violência simbólica e da inevitável aceitação de que a felicidade está atrelada à subordinação do feminino ao masculino. Nos anos de 1970 esta situação de subordinação feminina foi aos poucos sendo rompida. A mulher de papel, em especial a supermulher, começa a recuperar sua independência a exemplo do que começa a acontecer com a mulher real. As heroínas mudam, são reescritas e reinventadas. Alguns pontos icônicos, no entanto, permanecem. Certos mitos são reproduzidos. O século XXI tem novas personagens e novos modelos de comportamento. Mas são personagens como a Supergirl que nos fazem refletir acerca das mudanças e permanências, da reinvenção e reordenação dos papeis e relações de gênero. De como a conquista de espaço pelas mulheres na sociedade ainda é um grande desafio. Referências CHACON, Beatriz da Costa Pan. A mulher e a Mulher Maravilha: uma questão de história, discurso e poder (1941-2002). Dissertação de Mestrado no Programa de Pós Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Petrópolis: Vozes, 1971. MOYA, Alvaro de. História da História em Quadrinhos. 2º ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. NETTO, Antônio Garcia de Miranda (et all). Dicionário de Ciências Sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1987. OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado - as representações femininas nos quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). – Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Baurú, SP: EDUSC, 2005. REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua potencialidade teológica. – São Leopoldo: EST/PPG, 2012. SAMARA, Eni de Mesquita (org). Gênero em debate: trajetória e perspectivas da historiografia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997. SAYÃO, Deborah Thomé Corpo, poder e dominação: um diálogo com Michelle Perrot e Pierre Bourdieu. Perspectiva. Florianópolis, v.21, n.01, p. 121-149, jan./jun.2003 Quadrinhos Action Comics, n° 252, Maio de 1959. Action Comics, nº 276, 1961. Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 8, junho/1969. Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 10, 1969. Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 11, 1969. Supermoça. 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labrys,
études féministes/ estudos feministas |