labrys,
études féministes/ estudos feministas Memórias para Dona Ana Clarice Costa Pinheiro
Conheci Ana Alice três meses após o seu divórcio em 1983, no fim do mês de novembro, para ser mais exata. Ela já tinha um filho (nascido em 1981) e era professora da Universidade Federal da Bahia onde, em maio daquele mesmo ano, havia fundado com outras companheiras o NEIM. Ana Alice teve uma relação de 12 anos entre namoro e casamento, uma relação baseada na moral comunista, no respeito e na igualdade. Mas a relação terminou quando seu filho mais velho nasceu e o gênero se tornou mais forte dentro de casa: “filho é obrigação da mulher”; a igualdade desceu pelo ralo junto com a moral comunista e o casamento. Não voltou a se casar e passou a vida dizendo que não queria ninguém para perguntar para onde ela ia ou de onde ela vinha, acredito que não tenha se arrependido. Ana Alice não acreditava que existia uma teoria afastada da prática, ser feminista para ela não era só fazer discurso, era se meter em briga de marido e mulher, como fez muitas vezes e muitas vezes quase apanhando na rua, e era também criar os filhos de forma diferente das convenções de gênero. Seu filho foi criado para ser sensível, adotou um bebezão, que a irmã ganhou como filho e teve todo o ensinamento do que é ser um pai na primeira infância, quando as meninas aprendem a serem mães; ele podia chorar por horas pela morte das formigas, lagartixas ou o braço quebrado de um boneco. Já a filha foi criada para ser forte, racional, dura, sem lágrimas e sem direito a bonecas, panelas e fogões. As que apareceram em sua casa desapareceram misteriosamente, junto com as roupas com enfeites dourados ou estampas de onça ou princesa. Filha de uma mãe dona de casa e de um pai fiscal portuário da marinha, ambos com poucos anos de estudo, Ana Alice tinha uma origem humilde, vinha da classe trabalhadora, mas de uma família que se sacrificava para que ela e os dois irmãos mais novos estudassem, como a única maneira possível de mudar de vida. Como exemplos desses sacrifícios ela dizia da mãe costurar as roupas da casa para economizar, ou do pai que atravessava a lama do Largo do Tanque com ela nas costas para que a filha não estragasse o sapato da escola. Seus pais não queriam que ela fosse dona de casa e dependesse de um marido, mas a mãe não entendeu quando ela fez vestibular para o curso de Ciências Sociais e não para o de Pedagogia, como faziam todas as moças de família humilde da época. E entendeu menos ainda quando a filha disse que ia morar com o namorado e não ia casar nem na igreja e nem em lugar algum. Orgulhoso da filha que estudava, estava formada, com mestrado e professora da universidade, o pai a apoiava em tudo, mas não entendeu quando a filha, com um filho pequeno e a filha na barriga, comunicou que tinha se separado. “−Ele lhe bateu? Ele tem uma amante?” Como as respostas eram negativas, o pai não entendeu porque ela tinha se separado, mas apoiou sua decisão, apoiou como sempre fez. Ana Alice aprendeu em casa valores que fez questão de passar para seus filhos: honestidade e respeito com as pessoas e com a coisa pública. Ela tinha um tremendo respeito pelo nome da universidade que carregava, jamais entregou um único certificado dos muitos cursos de extensão e especialização que realizou sem que fosse por mérito do cursista. Seus filhos cresceram dentro da universidade, frequentando as intermináveis assembleias de professores na faculdade de Arquitetura, ajudando a distribuir panfletos grevistas na Escola Politécnica, andando de bicicleta no PAF e carregando livros e mais livros nos muitos simpósios do NEIM. Os ensinamentos feministas de igualdade sempre estiveram em sua casa, seus filhos aprenderam logo cedo a respeitar as pessoas sempre, por elas serem mais velhas ou pelo simples fato de que mereciam serem tratadas com respeito, independente da cara que tinham, da classe da qual provinham ou do que faziam. Quando seu pai faleceu, Ana Alice assumiu em definitivo o lugar de matriarca da família cuidando, apoiando e ajudando a todos. Assim como fazia com as amigas que jamais deixou de ajudar quando precisaram, seja essa ajuda financeira, no cuidado com a saúde e até em articulações políticas do que ela achava justo. Ana Alice era extremamente justa e também bastante autoritária, principalmente com as pessoas que ela amava, era sua forma de cuidar. Dez anos após a morte do pai, trouxe a mãe para morar em sua casa quando viu que esta já não tinha condições de estar só, mesmo que isso significasse a mudança de sua casa e de sua rotina, como foi. Ela trabalhava incansavelmente nos sábados, domingos e feriados, sua presença em casa era perdida entre pilhas de livros e papéis de sua mesa ou na frente do computador, sempre ligado nas madrugadas. Que, aliás, era o seu horário de ir para o supermercado fazer as compras do mês. Sua administração do lar era pífia, a ponto da filha com dezesseis anos assumir a organização das contas e da casa. E quando esta completou dezoito anos, foi obrigada pela mãe a entrar numa autoescola para que aprendesse a dirigir, dizia que era para que adquirisse autonomia; mentira, era para que fosse ao mercado sozinha. Ana Alice costumava dizer que sonhava em arrumar uma esposa dona de casa, mas sabia ser impossível, pois, caso achasse a tal esposa, rapidamente a convenceria a lutar pela própria autonomia e sustento, afinal, antes de tudo ela era uma feminista. E foi através do feminismo que ela se fez conhecida e reconhecida como acadêmica e militante a ponto de em 2012 receber, junto com a presidenta Dilma, o diploma de cidadã Bertha Lutz e logo em seguida a comenda Maria Quitéria. Ela foi muito longe sim, mas jamais esqueceu sua origem ou mudou sua forma de tratar as pessoas, continuava sem gostar que a chamassem de doutora e sempre dizia que não receitava nem remédio de verme. Ela era uma excelente estrategista, percebia o rumo que as coisas iam tomar e se antecipava. Essa sua capacidade ela mesma chamava de “oportunismo estratégico”; onde houve brecha na universidade ela colocou gênero e feminismo, onde houve edital e possibilidade de ampliar as fronteiras da universidade ela levou a bandeira feminista para cidades tão distantes que nem sabíamos que existiam antes do NEIM chegar nelas. Do ponto de vista pessoal, trabalhar tanto significava também melhorar um pouco a renda familiar de quem criava os filhos sozinha, num tempo em que a pensão do ex-marido mal pagava a escola e o salário de professora universitária não valia de muita coisa, mas isso eu só fui entender muito tempo depois. Quando fiz vestibular para o curso de Letras e não para o de Ciências Sociais como ela queria, ela entendeu o meu desejo de me afastar de sua área de influência, trilhando meu próprio caminho em outro curso, em outro campus da universidade, em outra área. Ela me deixou ir para a literatura, mas me trouxe de volta pelo feminismo e pelas questões que eu mesma sem saber já acreditava e lutava. Mas foi quando fui fazer mestrado em Santa Catarina que começamos a ficar mais próximas. Ana Alice sempre foi minha primeira leitora, seja das histórias escritas na infância, seja nos trabalhos das disciplinas da graduação ou da pós, seja na dolorosa escrita da dissertação, seja do projeto de doutorado que ela me obrigou a escrever. Me pergunto quem será a primeira pessoa a ler esse texto agora que seus olhos atentos não estão mais aqui? Durante o mestrado, quando disse que ia morar com alguém, ela não disse nada além da sua conhecida frase: “−Casamento acaba.” Era seu modo de dizer que se preocupava comigo, que estaria sempre ali para quando eu quisesse voltar. Mas era, principalmente, a sua forma feminista de dizer que a minha vida não devia estar ancorada num casamento. Não está, não esteve e não estará. Ana Alice era assim, transparente e íntegra, não escondia o que pensava, não media o alcance das palavras que dizia. E foi assim quando depois de muito estudar e me esforçar eu fiquei em segundo lugar no concurso da área de gênero, cultura e linguagem do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade. Curso que ela havia lutado para criar, em um de seus arroubos de oportunismo estratégico, aproveitando as possibilidades de criação de novos cursos com o Reuni. Curso do qual sou hoje professora efetiva, mas que naquele momento, após o segundo lugar no concurso, ouvi de Ana Alice um sonoro “−que bom”. E completou dizendo que assim ninguém poderia falar que ela havia influenciado a banca. No momento eu não sabia o que mais doía, se o resultado ou o comentário. Mas ela era assim, jamais em sua trajetória fez qualquer arranjo que pudesse beneficiar a si ou aos seus filhos e criou a ambos para enfrentar o mundo com os próprios braços e as próprias forças. Quando passei a ser professora da universidade e partilhar com ela as mesmas reuniões e objetivos, pude entender sua ausência durante tantos momentos de minha vida. Pude partilhar de seu oportunismo estratégico e me ver também entre pilhas de livros e papéis, ou mesmo com a cara enfiada no computador, como agora. Seu prazer de viajar para o interior do estado, desbravando estradas e levando para longe o nome da universidade. Pude estar com ela em reuniões como sua colega de trabalho e parceira e pude também levar bronca por ter ficado calada em algumas delas. Como poucas pessoas eu pude ter o prazer de ter Ana Alice como companheira de jornada e andar a seu lado partilhando de seu mundo e de seus ideais. Como companheira de Ana Alice eu pude conhecer minha mãe de perto, a mulher que ela era, a guerreira que diante do maior medo, calou, para que eu e meu irmão não fraquejássemos. Quando vi minha filha, com seus poucos meses de vida, dormindo na reunião do NEIM, eu percebi o quanto eu havia aprendido, desde muito cedo, com minha mãe, a querer e lutar por um mundo mais justo para as mulheres, mesmo envolvendo sacrifícios. Clarice Costa Pinheiro Filha de Ana Alice Alcantara Costa e professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade na área de gênero, cultura e linguagem, lotada no departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia. Formada em Letras Vernáculas pela UFBA, mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo também da UFBA.
labrys,
études féministes/ estudos feministas
|