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janeiro/junho / 2015  - janeiro/junho 2015

Ana Alice, mestra inspiradora!

Salete Maria da Silva

 

Reservar, na dinâmica da vida acadêmica, um momento específico para render homenagens a nossa inesquecível Ana Alice significa, para mim, que fui sua aluna e orientanda no doutorado em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, fortalecer um sonho e um projeto social e político em prol do qual ela sempre lutou, trabalhou e entusiasticamente viveu. Significa, também, promover reconhecimento e externar gratidão por tudo o que ela plantou e legou para esta Universidade, para esta cidade, para este estado e para este país, como mulher, mãe, amiga, educadora, pesquisadora, militante feminista e, sobretudo, como cidadã absolutamente comprometida com as lutas e as questões sociais mais importantes e candentes da vida nacional, ao longo dos seus sessenta e três anos de existência.  

Por esta razão, considero que dedicar duas noites e, no âmbito destas, quatro mesas temáticas para que suas amigas, suas colegas de trabalho, suas companheiras de luta e suas alunas e alunos, de graduação e pós-graduação, possam registrar e compartilhar momentos vivenciados com esta mulher incrível e extraordinária  professora significa reconhecer e afirmar que Ana Alice não viveu em vão e que suas paixões, emoções, sonhos e projetos, que sempre foram coletivos e radicalmente transformadores, seguem vivos e pulsantes dentro e no entorno de cada uma e de cada um de nós.

De minha parte, gostaria de dizer que muito do que vou falar sobre Ana Alice, neste momento, destacando, principalmente, a sua condição de mestra inspiradora, tive a oportunidade de dizer para ela, em prosa e em verso, em diversas ocasiões, sobretudo no dia 26 de maio de 2014, quando ela me comunicou que iria enfrentar uma nova batalha contra a doença e que gostaria de contar meu apoio para manter alguns de seus compromissos acadêmicos em dia. Imediatamente eu lhe disse sim e, ao desligar o telefone, fiz e enviei para ela um cordel intitulado “Aquele abraço da sorte”, cuja primeira e última estrofes dizem o seguinte:

De Ana Alice se diz

É luta, é dor, é amor

Feminista de raiz

Precursora de valor

Testada a ferro e fogo

Entre vitória e malogro

Jamais se acovardou

(...)

Avante mulher de fibra

De alma e matéria forte

Tua energia vibra

E segue te dando o norte

Essa é só uma batalha

Faça com que ela valha

Aquele abraço da sorte!

Ana me respondeu, emocionadíssima, com as seguintes palavras: “pelo menos em duas coisas você se parece comigo: é boa de briga e de camaradagem.” Rimos e choramos, ao mesmo tempo. Nesta noite eu senti tristeza, mas também fiquei feliz por ter animado Ana Alice numa ocasião em que ela demonstrava fragilidade, afinal essa também foi uma das importantes lições que eu aprendi com ela: lembrar às pessoas o que elas têm de melhor. E Ana Alice sempre foi assim, sempre soube explorar o melhor das pessoas e jogá-las para cima, para frente, para o futuro. Ela era uma mola propulsora, uma instigadora nata. Sempre apostou no potencial das pessoas, sobretudo das mulheres com quem convivia. Sempre se importou com o bem estar de quem passava por sua vida. E sobre isto todo mundo tem uma história para contar. Comigo não foi diferente. Num dos momentos mais difíceis de minha vida, quando entrei numa aterradora depressão, em plena elaboração da tese, Ana Alice não somente soube me animar para concluir o trabalho, como me ajudou a me levantar e olhar a para frente como uma mulher que pode se reinventar diante de cada novo desafio.

Como professora, Ana Alice fazia com que as teorias sobre poder, democracia, participação política, igualdade, cidadania e empoderamento fossem testadas a todo instante e tomava como exemplo o nosso próprio cotidiano, a nossa vida pessoal e social. Ela era uma educadora envolvente e às vezes nos metia medo, porque gostava de colocar em questão as nossas crenças mais profundas. Apesar disto, ela se importava com as pessoas. Ela sabia que cada uma tem o seu próprio tempo e momento no processo de autotransformação pessoal e coletiva. Ela costumava usar palavras carinhosas, assim como palavras terríveis, caso julgasse necessário. Nesse tocante, éramos muito parecidas e, ao longo da convivência, dissemo-nos coisas bonitas e alentadoras, mas também trocamos palavras duras em algumas ocasiões. Mesmo assim, ela nunca deixou de falar comigo e eu com ela. Eu a admirava profundamente, sobretudo porque ela era ética, justa, honesta e leal.  Além disto, era um ser transparente, previsível até. Nunca jogou baixo com pessoa alguma nem nunca guardou uma carta na manga. Era franca, verdadeira e sincera. E esta sua postura era tão inspiradora quanto sua desenvoltura acadêmica, teórica e política, dentro e fora da sala de aula. Ana Alice era sinônimo de práxis. E foi por isso que ela recebeu, merecidamente, o prêmio Berta Lutz, em 2012, juntamente com a presidenta Dilma e outras mulheres ilustres. Nesta oportunidade, nós, suas alunas e alunos, vibramos ao vê-la pela televisão, sendo agraciada com tão destacada comenda.   

Nas aulas, Ana Alice era simples, porém assertiva, e cotidianamente nos estimulava a admitir nossos ranços patriarcais e sexistas, nos convidando a adotar posturas mais emancipatórias e feministas. Os programas de suas disciplinas nos possibilitavam leituras de teóricas clássicas e contemporâneas, enfatizando as contribuições de pensadoras de diversos continentes, mas destacando, com orgulho, as latino-americanas, dentre as quais nós a identificávamos, afinal, seu livro “As Donas no poder: mulher e política na Bahia”, assim como seus diversos artigos científicos, formam parte do arcabouço teórico obrigatório para quem deseja se iniciar ou mesmo se aprofundar nas questões relacionadas à temática gênero e poder, gênero e cidadania, gênero e políticas públicas no Brasil.

Como orientadora, Ana Alice foi muito importante para o meu aprimoramento acadêmico-científico. Pois além de ter me ensinado muito, teórica e metodologicamente, ela me dava bastante liberdade para que eu caminhasse com minhas próprias pernas. Ela me testava e me ajudava a crescer de todas as formas, o tempo todo. Algumas vezes, pediu-me para substituí-la em eventos, seminários, debates, aulas e até mesmo em programas de rádio e televisão locais, sobre cidadania feminina, processos eleitorais, questões de gênero, reforma política, dentre outros temas que ela achava que eu teria como encarar. Eu, obviamente, me sentia muito lisonjeada e desafiada, afinal, não é todo dia que uma professora com a estatura intelectual de Ana Alice delega a uma humilde orientanda tarefas que esta, embora sendo docente, ainda não se considera apta ou pronta a assumir. Mas eu, como tantas outras estudantes e professoras, não conseguia dizer um não para Ana Alice, pois ela praticamente nos intimava, de maneira carinhosa, para que nos lançássemos ao mundo e fizéssemos as coisas acontecerem.

Lembro-me de uma ocasião em que ela me telefonou pedindo para eu ministrar aulas no Curso Regional Poder y Participación Política de las Mujeres, na FLACSO-Equador, para mulheres líderes, populares e diversas, de quatro países latino-americanos, pois ela não poderia comparecer em face do nascimento de seu netinho, Felipe, em abril de 2012. Ela tinha assumido o compromisso, mas não poderia deixar de testemunhar o nascimento do primeiro filho de sua filha Clarice. Eu entendi a situação e percebi que esta era mais uma lição que Ana estava me ensinando, pois ao mesmo tempo em que era sumamente responsável com tudo o que fazia, não se furtava de se dedicar e vivenciar plenamente o amor que nutria pela família. Acabei indo para Salvador na mesma semana para atender ao chamado da “comandante,” pois na ocasião eu estava no Ceará, para onde voltei após ter defendido, com distinção, a tese de doutorado que ela tão amorosa e criteriosamente orientou.

Uma das últimas tarefas de Ana Alice para mim foi durante o pleito eleitoral de 2014. Ela pediu que eu participasse, em seu lugar, de dois programas de rádio e um de tevê em Salvador, falando sobre a participação das mulheres na política e sobre as atribuições dos e das parlamentares na Câmara e no Senado. Eu quis resistir, alegando minha irritação com algumas ambiguidades presentes nas coligações e candidaturas do seu partido político, o PT. Ela foi enfática ao dizer: “faça seu o papel como cientista feminista e, se comprar alguma bronca, assuma-a, como você sempre fez”. Eu obedeci às instruções da mestra que, posteriormente, me surpreendeu dizendo: “se eu tivesse no seu lugar teria batido bem mais forte nestas coligações ridículas, mas também teria feito o candidato tucano perder mais mil votos só em abrir minha boca”. Rimos longamente.

Quero dizer que, ainda que eu tenha aprendido muitíssimo em todas as ocasiões em que Ana Alice me delegou tarefas, o que eu gostava mesmo era de trabalhar em sua companhia, pois uma das razões que me fez deixar uma experiência profissional de quase quinze anos para me submeter a um concurso para docente da UFBA, e começar tudo de novo, foi a possibilidade de, em sendo aprovada, vir trabalhar com ela e as demais companheiras do NEIM. Eu sentia que na companhia de Ana e das demais feministas deste núcleo, minhas potencialidades seriam melhor aproveitadas e eu teria a vida inteira para aprender mais com minha orientadora e com as demais pesquisadoras que compõem este núcleo de estudos interdisciplinares. Que pena que ela se foi tão cedo...

Gostaria de destacar dois momentos em que foi muito bom trabalhar com Ana Alice, pois foi quando mais desfrutei de sua companhia, fora das atividades de orientação de tese. No primeiro, eu ainda era sua orientanda, e nós organizamos, inspiradas no meu objeto de tese, o Colóquio Nacional sobre as Mulheres e a Constituição: reflexões feministas sobre o legado do lobby do batom, em 2008. Para construir a programação deste evento, ficamos dias matutando e trocando ideias e, quando ele finalmente aconteceu, com a presença de feministas do Brasil inteiro, celebramos etilicamente o sucesso desta atividade. A outra experiência foi o Curso Gênero e Poder Legislativo, realizado pelo NEIM e pelo Centro de Formação e Aperfeiçoamento (CEFOR) da Câmara dos Deputados. Trata-se de uma atividade de formação destinada a profissionais em exercício na referia casa parlamentar.  Ana Alice, que já lutava contra a doença, a coordenou, de maneira firme e competente, juntamente com Cecília Sardenberg, sua amiga inseparável. Foi a única ocasião em que tive o prazer de viajar ao lado de Ana Alice e provar da sua “lancheira,” refletindo, alegremente, sobre a vida, sobre a política e sobre nossas(os) filhas(os) e netas(os).

Eu teria dezenas de outros momentos e experiências a destacar, mas dada exiguidade do tempo, gostaria apenas de dizer para minha eterna e inspiradora mestra Ana Alice, o seguinte:

Em cada ensinamento

Em cada orientação

Em cada novo rebento

Fruto de tua lição

Dentro e fora do Neim

Tua vida segue assim

Eterna e em ascensão

Salete Maria é graduada em Direito, mestra em direito e Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo. É professora do bacharelado em Gênero e Diversidade do departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia.

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