labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier / juin 2015 -janeiro/juin 2015

 

Para além da universidade: expectativas e abordagens de gênero no ensino de história

Ana Carolina Eiras Coelho Soares

Danielle Silva Moreira Dos Santos

 

 Resumo:

A importância da categoria gênero para a análise histórica é amplamente discutida dentro da universidade, contudo ainda carecemos de alternativas e propostas que levem essas discussões até a comunidade, principalmente à escola, ambiente de convivência, descobertas e aprendizagens fundamentais na formação de cada indivíduo. Este artigo apresenta os resultados de um trabalho de aplicação de oficinas pedagógicas em um colégio de nível médio de Goiânia, com o objetivo de introduzir estudos de gênero no ensino de história, especialmente na abordagem da história das mulheres e das relações de gênero.

Palavras chaves: gênero, escola, mulheres, ensino de história, oficinas.

 

Nesse artigo apresentamos os resultados de um trabalho de pesquisa que envolveu a construção e aplicação de oficinas de ensino de história para turmas de nível médio em um colégio municipal de Goiânia. Nessa exposição desenvolvemos algumas propostas e reflexões sobre a introdução dos estudos de gênero no ambiente escolar. Este trabalho foi desenvolvido no Programa de Licenciaturas (PROLICEN)[1], sob a orientação da professora doutora Ana Carolina Eiras Coelho Soares na Universidade Federal de Goiás (UFG). São raros os programas que apresentam pesquisas na área de estudos de gênero na UFG. Estes estudos ainda são encarados de maneira refratária nos meios acadêmicos. No entanto, devemos ressaltar que tais estudos proporcionam conhecimentos, debates e, principalmente, materiais que podem subsidiar o trabalho de futuros/as professores/as em atividades de estágio supervisionado nas escolas e nas oficinas de projetos de extensão. 

Os estudos de gênero surgem nos anos 1970 em meio às lutas feministas e homossexuais por igualdade, respeito e cidadania plena. Estes estudos ganharam diferentes perspectivas na academia. Suas maiores contribuições vêm da vertente que busca romper com o binarismo (homem versus mulher), promovendo a “desnaturalização” das identidades e papéis sociais, evidenciando a multiplicidade identitária para além dos corpos. O número crescente de livros, publicações e eventos sobre o assunto evidenciam que as questões de gênero vêm sendo amplamente estudadas e discutidas nos meios acadêmicos, especialmente nas áreas de História, Geografia e Ciências Sociais. Contudo, existe uma pressão oriunda inclusive de algumas organizações sociais e grupos militantes para que todo esse avanço teórico e científico seja disponibilizado para a sociedade.  De acordo com Susane Oliveira (2014), os movimentos feministas enxergam na educação um caminho para o reconhecimento e legitimação das lutas pela cidadania das mulheres no Brasil, e assim colocam em questão os currículos, materiais didáticos, métodos de ensino, pensamento dos estudantes, saberes docentes, além das representações e concepções de sexo-gênero que circulam na cultura escolar.

Pensando nas demandas feministas no campo da educação, buscamos pensar a sala de aula e, especialmente, o ensino de história, enquanto ambiente de conhecimento e convívio social para inserção dos estudos de gênero na educação escolar. Reconhecemos que a educação brasileira enfrenta sérios problemas estruturais e didáticos, mas, mesmo assim, a escola ainda se constitui como um espaço educativo fundamental na orientação e formação das subjetividades e relações sociais, pois é nesse ambiente que os indivíduos são confrontados com a diversidade sexual, étnico-racial, religiosa, econômica, dentre outras. É nesse ambiente que os jovens têm suas primeiras experiências de convivência e sociabilidade fora de casa, sendo o local onde muitos vivenciam conflitos, descobertas e constroem suas subjetividades e maneiras particulares de entender, sentir e de se relacionar no mundo. Paradoxalmente, esse ambiente se constituíu, ao longo do tempo, como um meio de reprodução de normais sociais, de padronização e controle dos indivíduos, com a valorização e exaltação de determinados comportamentos e exclusão/inferiorização de outros, tornando-se um ambiente hostil às diferenças. Diva do Couto Muniz (2002) se dedicou a estudar os educandários femininos e os manuais de conduta em Minas Gerais no século XIX, revelando como esses instrumentos produziam socialmente boas moças “civilizadas”, aptas a constituir uma nação que buscava se civilizar e se igualar à Europa. Apesar de aulas de civilidade ou de manuais de conduta, como os difundidos no século XIX, não serem mais comuns nas escolas, ainda é possível verificar que códigos de conduta são reproduzidos no ambiente escolar de diferentes maneiras e por diferentes agentes como diretores/as, funcionários/as, professores/as e pelos/as próprios/as alunos/as.

"Todo código, define o permitido/proibido e as correspondentes inclusões/exclusões em termos de comportamento social, participando da produção/reprodução dos conceitos de gênero, de um modo de ordenar o mundo, de imprimir significação às relações sociais, cuja construção e estabelecimento são de natureza política, já que processadas conflitivamente por meio de um jogo de correlação de forças." (Muniz, 2002: 9).

Na escola onde desenvolvemos a pesquisa buscamos interagir com os jovens adolescentes e pré-adolescentes por meio de aulas oficinas. A escolha deste público alvo para participação em nossas oficinas se deve ao fato de que estão numa fase da vida em que se processam importantes transformações. Desta fase em diante eles passarão a ser cada vez mais exigidos e pressionados socialmente, portanto é importante que eles reconheçam e reflitam sobre o caráter histórico e social dos valores, normas, identidades, comportamentos e relacionamentos sociais que vivenciam ou que muitas vezes lhes são impostos na sociedade.

A partir de observações (não participativas) realizadas durante um semestre letivo em um colégio municipal de Goiânia, que se constitui em dos campos de estágio docente supervisionado para estudantes do curso de licenciatura em História da UFG, buscamos identificar algumas situações e comportamentos ligados à sexualidade e às concepções de gênero que poderiam ser problematizadas e discutidas nas aulas de história. Ainda no período dessa observação, percebemos também algumas dificuldades e barreiras para a abordagem de questões de gênero em sala de aula. A principal delas é provavelmente a resistência de alguns/as profissionais da área da educação, que consideram a temática de gênero um assunto “delicado” demais para o tratamento com crianças e jovens. Para a maioria deles, falar sobre gênero significa falar sobre papéis sociais que são naturalizados, e falar sobre sexualidade implica tratar de tabus. Dessa forma, as questões de gênero são vistas e tratadas como parte da responsabilidade das famílias na educação dos/as estudantes, e que assim não cabe aos/às professores/as adentrar em assuntos que envolvem gênero e sexualidade na escola. Apenas a disciplina de biologia tem autoridade para o tratamento dessas questões, especialmente na abordagem de temas como prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e gravidez na adolescência.

Diante dessas observações na escola, planejamos uma intervenção por meio de oficinas de ensino de história para turmas de nível médio, que permitissem um trabalho pedagógico de problematização e historicização de questões de gênero e sexualidade presentes no cotidiano dos/as alunos/as. Assim, selecionados quatro temas para abordagem nestas oficinas: a educação feminina no Brasil Colônia, a história do feminismo, a participação feminina na ditadura militar brasileira e, por último, a participação das mulheres na política. Estas oficinas duraram em médias 4 aulas de 50 minutos e foram dividas em dois momentos. Primeiro realizamos uma explanação teórica em uma aula expositiva convencional acompanhada de recursos midiáticos como data show, imagens, fotos, charges e etc. Nesse momento insistimos em dialogar com os/as alunos/as para se aproximar do seu cotidiano, para isso elaboramos algumas perguntas para cada tema.

Para introduzir a temática da educação feminina no Brasil colonial fizemos os seguintes questionamentos: como é a divisão das tarefas dentro de sua casa (casa do/a aluno/a)? Quem trabalha fora, quem cuida das atividades domésticas? Ambos os sexos (pai, mãe, filhos e filhas) devem ajudar nas tarefas? A respeito da história do feminismo perguntamos aos/às alunos/as: o que veem a mente quando vocês ouvem a palavra feminismo? Já na abordagem do tema – mulheres na ditadura militar – perguntamos: as lutas políticas que compõem a História (ditaduras, guerras) e as atuais manifestações são ações estritamente masculinas? Sobre o tema “mulheres na política” e a atuação de Olympe de Gouges, questionamos: o que vocês acham da participação das mulheres na política? Por que a participação feminina na política e o direito a voto foi concedido tardiamente às mulheres em relação aos homens? Essas perguntas foram pensadas em sua relação com os temas das oficinas, numa forma de aproximar o conhecimento do passado de assuntos da atualidade e cotidiano dos/as alunos/as. Essas questões nos ajudaram a identificar o conhecimento prévio dos/as alunos/as sobre os temas abordados. É interessante notar que a maioria dos jovens fica bem à vontade para falar de suas experiências e dar suas opiniões. A maioria deles vive com o pai e a mãe. Geralmente o pai é quem trabalha fora e a mãe é dona de casa. No geral são as meninas (filhas) que mais ajudam nas tarefas domésticas. Com isso observamos como as questões de gênero envolvem a vida destes/as estudantes.

Quando se trata do feminismo a maioria dos/as alunos/as tem uma visão superficial ou equivocada do feminismo, mas, de forma quase unanime, todos concordam que as mulheres têm um papel fundamental na política.

Além do planejamento das oficinas, elaboramos alguns materiais didáticos de apoio às oficinas. Tivemos muito cuidado de prepará-los, haja vista que grande parte dos livros didáticos pouco contribui com uma narrativa histórica que dê visibilidade às mulheres, já que a atuação feminina fica restrita a “boxes” ou textos em complementares que pouco contribuem para romper com uma perspectiva história androcêntrica. Segundo Susane Oliveira (2014) boa parte dos livros didáticos de história, produzidos na última década, quando não silenciam o protagonismo das mulheres na história, revelam ainda representações estereotipadas e essencialistas acerca das identidades e relações de gênero. Já Cristiani Silva observou que é possível “constatar avanços teóricos e metodológicos incorporados aos textos didáticos. Porém, não obstante estas constatações, essa mesma leitura pode revelar, também, algumas incômodas permanências, ainda presentes nos textos escolares”, haja vista que “as mulheres parecem permanecer como um grupo desviante entre os saberes históricos escolares, ao passo que os homens ainda ocupam a ‘base da elaboração da regra’” (2007: 228).

Circe Bittencourt define os materiais didáticos como “mediadores do processo de aquisição do conhecimento, bem como facilitadores da apreensão de conceitos, do domínio de informações e de uma linguagem específica da área de cada disciplina” (2011: 269). Assim, partindo da ideia de que o material didático não precisa ser apenas o livro didático, produzimos pequenos textos didáticos de até três laudas por meio de uma linguagem simplificada e dinâmica para a abordagem de cada um dos temas das oficinas.  Esses textos, foram lidos pelos/as estudantes em voz alta, trazendo uma série de novas informações, com as quais os/as alunos/as nunca tiveram contato, despertando ainda mais o interessa pelo assunto, e garantindo o envolvimento da turma na proposta da oficina.

O primeiro texto trata do cotidiano e educação feminina no Brasil colonial, estabelecendo  uma comparação com a educação que os meninos recebiam. O segundo trata da história do feminismo de 1930 até os dias atuais. O terceiro descreve a participação das mulheres na ditadura, tanto de esposas de militares, quanto de mulheres que apoiavam o regime, além disso trata de mulheres que compunham os movimentos de resistência que lutaram não só contra o regime, mas também contra o preconceito dentro dos partidos e grupos políticos de esquerda que reduzia essas mulheres apenas a coadjuvantes ou parceiras dos militantes. O quinto texto apresenta um texto de caráter biográfico sobre a vida de Olympe de Gouges, ressaltando sua crítica ao caráter essencialmente masculino da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no tempo da Revolução Francesa.

 Ainda nas oficinas propomos uma avaliação diferente dos convencionais exercícios e provas escritas que acabam desmotivando os/as alunos/as em sala de aula. No segundo momento das atividades os/as alunos/as desenvolveram materiais artísticos que sintetizavam suas ideias e conclusões. Trata-se de atividade que coloca o/a aluno/a como sujeito produtor de conhecimentos e não como mero receptor de conhecimentos. Essas atividades possibilitaram momentos cruciais onde os/as alunos/as puderam refletir sobre as informações e discussões com as quais tiveram contato durante a oficina.

O intuito dessa avaliação não era verificar se os jovens memorizaram ou decoraram os conteúdos abordados nas oficinas, mas sim compreender a opinião dos/as alunos/as sobre os temas tratados e o modo como percebem as relações entre presente e passado no entendimento da história das mulheres e das relações de gênero. Na oficina sobre a história da educação feminina no Brasil colônia os/as aluno/as foram convidados a imaginar como vivia uma mulher pobre ou abastada na sociedade colonial. A partir disso deveriam escrever uma página de diário contando sobre sua vida, seus pensamentos, planos e rotinas. Na oficina sobre a história do feminismo os/as alunos/as deveriam se imaginar como participantes de uma manifestação feminista atual e produzir cartazes, a partir de recortes de revistas, com imagens e frases de efeito, que pudessem ser usadas durante uma manifestação. Segue abaixo a imagem de um dos cartazes produzidos.

Cartaz produzido pelos/as alunos/as durante a oficina sobre história do feminismo.

 

Na oficina sobre a participação feminina na ditadura os/as alunos/as produziriam poemas com a tema da resistência e atuação política das mulheres durante a ditadura militar no Brasil. Já na oficina sobre a participação das mulheres na política, onde tratamos da atuação de Olympe de Gouges, solicitamos que escrevessem uma carta endereçada à revolucionária, criticando-o ou parabenizando-a pela atuação na política francesa.

Ao final das oficinas boa parte dos/as alunos/as demonstrou compreender, ainda que minimamente, que masculinidades e feminilidades são antes de tudo ideias, concepções e padrões construídos historicamente e socialmente. Por meio das oficinas foi possível discutir e problematizar concepções de gênero, sexo e sexualidade. Os/as alunos/as puderam perceber que os comportamentos e identidades de homens e mulheres não são definidos naturalmente pela biologia, e que assim “ser mulher” e “ser homem” vai além da genética, hormônios ou genitálias. Buscamos endossar a ideia de que as diferenças entre homens e mulheres não dependem exclusivamente do sexo ou de requisitos biológicos, mas sim das concepções de gênero construídas culturalmente[2] (Pedro, 2005: 78).

Segundo Joan Scott essa concepção de gênero rejeita explicações “naturais” e biológicas que legitimam as desigualdades entre os sexos, colocando em cheque o binarismo Homem versus Mulher, força/agressividade em oposição à delicadeza/sensibilidade, permitindo inclusive que os/as alunos/as se identifiquem dentro dessas concepções, sanando um pouco as angustias e sofrimentos daqueles que se sentem deslocados, por não se encaixarem nos padrões normativos de gênero. Como bem disse Ana Madureira, “poder, violência e sofrimento psíquico estão presentes no processo contínuo de produção e reprodução das masculinidades e feminilidades hegemônicas nas mais diversas instâncias sociais.” (Madureira, 2007: 76).

Nas oficinas buscamos demonstramos como as mulheres e minorias foram posicionadas socialmente em alguns períodos da história, e como isso influenciou e ainda influência as nossas vidas no presente. Para isso mostramos como os fatos se constituem e se articulam historicamente e como a história é escrita. Como bem esclarece Tania Navarro-Swain (2006: web) “As narrativas históricas, de fato, imprimem um sentido e uma coerência ao caótico movimento do real, escondendo, no mesmo movimento, a construção que a ordena”.

O silêncio sobre as mulheres na história se deu principalmente porque, por muito tempo, a história foi escrita majoritariamente por homens e para homens numa perspectiva androcêntrica que tendeu a associar as mulheres à família, ao ambiente doméstico, ao cuidado do lar e dos filhos. Assim, as mulheres estavam fora da história, porque as ações históricas valorizadas não se davam dentro das casas, ela devia se desenrolar nos espaços públicos, nas batalhas, nos governos e nos chamados grandes feitos, de grandes homens. Criou-se então uma história antagônica que colocava em lados oposto os homens e as mulheres. Junto com essa dicotomia (macho versus fêmea) surgiram outras oposições como “público e privado”, “dominante e dominado” e “razão e sentimento”. Como bem observou Guacira Louro,

"As sociedades constroem contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que representam a norma (que estão em consonância com seus padrões culturais) e aqueles que ficam fora dela, as suas margens. Em nossa sociedade, a norma que se estabelece historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe media urbana e cristã e essa passa a ser a referência que não precisa mais ser renomeada. Serão os “outros” sujeitos sociais que se tornarão “marcados”, que se definirão e serão denominados a partir dessa referência. Dessa forma, as mulheres são representada como o “segundo sexo”, gays e lésbicas são descritos como desviantes da norma heterossexual” (Louro, 2001: 16).

Por muito tempo fomos levados a acreditar que as mulheres sempre estiveram sob a tutela de seus pais, irmãos e maridos. Entretanto, um olhar mais atento e minucioso revela que as mulheres, longe de uma postura vitimizadora ou passiva, estiveram também fora dos lugares, ou seja, do lugar delimitado numa perspectiva patriarcal. Contudo as novas visões e versões acerca da escrita da história, bem como os próprios estudos feministas e de gênero, têm evidenciado a atuação feminina em diversos espaços sociais, na política, governo, guerras, comércios, ciência e etc. Desde a antiguidade temos indícios de mulheres que ocuparam, resistiram e reivindicaram diferentes lugares sociais. Com o desenvolvimento da Nova História, da história cultural, das críticas aos marxismo e positivismo, da incorporação de novas fontes como imagens, jornais, músicas e textos literários no ofício dos/das historiadores/as, além de um número cada vez maior de historiadoras feministas dentro das universidades, temos hoje outras visões sobre a vida e cotidiano das mulheres no passado.

 A história contribui imensamente com os debates de gênero, esclarecendo as diferentes concepções associadas ao gênero, assim como o gênero ajuda a pensarmos a história. “Na área de História, esses estudos [de gênero] vêm gerando produções historiográficas inovadoras que problematizam os conceitos naturalizados e universalizados a respeito das mulheres e das relações de gênero” (Oliveira, 2014: 279) Por meio dessas discussões os jovens também devem se sentir parte da história, desenvolvendo uma consciência por meio da qual ele pode compreender que a história não é imparcial e que a verdade sobre determinado fato é uma construção múltipla, que varia de acordo com o contexto. As representações do passado se constituem através de relações de poder, o que impede que a história seja vista como simples catalogação das transformações sociais ao longo do tempo, e passe a ser entendida como mecanismo capaz de veicular pré-conceitos por meio de suas representações (Idem). É preciso que os/as alunos/as entendam que a narrativa histórica também pode transmitir preconceitos e perpetuar padrões normativos de gênero e sexualidade. Concomitantemente as/os alunas/os serão capazes de entender que assuntos cotidianos como a beleza, o amor, os sentimentos e relacionamentos humanos são também dotados de historicidade, e que por isso são passíveis de mudança ao longo do tempo. Assim diz a feminista americana Joan Scott:

"Quando falo de gênero quero referir-me ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se refere apenas às ideias, mas também instituições, às estruturas, às práticas cotidianas, como também aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de ordenação do mundo e mesmo não sendo anterior a organização social, ele é inseparável desta. Por tanto gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentindo dessa realidade. A diferença sexual [...] é uma estrutura social movente, que deve ser analisada nos seus diferentes contextos Históricos." (Apud Madureira, 2007: 65)

Consideramos importante também que o conhecimento precisa partir do/a aluno/a, da sua rotina e experiências de vida, daquilo que ele/a traz de outros momentos fora da escola, fazendo com que ele/a pense nas relações que se dão dentro de sua casa e nos grupos de convívio. Assim, por meio das oficinas esperamos também fazer com que eles/as desenvolvam um “olhar de gênero”[3] por meio do qual possam reflitir sobre as diferenças e problematizar as identidades e relações de gênero que existem nas brincadeiras do intervalo, nas paqueras, nas formas de se vestir e falar de cada colega na escola e nas formas como são tratados pelos adultos dentro e fora da escola.

Ana Madureira afirma que os preconceitos “podem ser considerados como fenômenos historicamente constituídos, relativos à construção e manutenção de rígidas fronteiras simbólicas, com forte enraizamento afetivo, que acabam por se constituir em barreiras culturais entre indivíduos e grupos sociais” (Madureira, 2017: 47). É preciso demonstrar aos/as alunos/as os prejuízos que estamos assumindo quando reproduzimos o preconceito, ainda que “sutilmente”, como por meio de brincadeiras e piadas na escola. O preconceito além de evidenciar relações de poder e hierarquias, também garante a permanência das desigualdades (Idem: 35).

A ciência esteve imbuída de um caráter irrefutável, e sabemos que grande parte do conhecimento e das certezas desses/as alunos/as tem origem em pressupostos científicos, religiosos, tradicionais e do senso comum. A história também nos mostra que a ciência não está livre de preconceitos, em alguns momentos ela serviu para legitimar a homofobia, o racismo e a inferioridade de outros grupos, mas acredito que um dos nossos maiores desafios está nos discursos religiosos androcêntricos. Será necessário lidar com isso e conciliar o conhecimento construído com a religiosidade de cada um, frente, principalmente, ao avanço de grupos religiosos que ainda defendem a segregação e submissão das mulheres e a exclusão dos homossexuais.

Nas oficinas tivemos a intenção de problematizar os papeis sociais atribuídos historicamente aos homens e mulheres, de fazer com que os/as alunos/as duvidem da normalidade, daquilo que é tido como “natural” nas relações e identidades sociais. A ideia de questionar os estereótipos através de suas representações nos espaços midiáticos, como nas propagandas, filmes, revistas e jornais, é, por exemplo, o que permite posteriormente que os/as próprios/as alunos/as, após um debate, produzam suas próprias interpretações. Assim, defendemos tanto a flexibilização dos padrões de gênero e sexualidade socialmente impostos, como a aceitação e o convívio com as diferenças na escola e sociedade. O estabelecimento de um padrão como a norma tende a tornar essa norma algo sacralizado e incontestável, o que acaba favorecendo a segregação, preconceitos, boicotes e violências contra aqueles que por algum motivo se situam fora destes padrões.

Constamos que quando questionados os/as alunos/as sobre o que é feminismo, a imagem que persiste entre eles é a de que a feminista é feia, gorda, “sapatão” e agressiva. Por isso, outro ponto crucial do nosso trabalho desenvolvido nas oficinas pedagógicas foi busca por desmitificar o próprio feminismo, revelando a sua historicidade. Assim, buscamos combater, por meio do ensino de história, as concepções que impedem que o feminismo seja entendido como discurso e prática de luta e combate à violência, ao desrespeito e ao preconceito contra as mulheres, que ainda se faz necessário e urgente. Mesmo que não sejamos capazes de transformar essa visão equivocada que os jovens têm sobre o feminismo, somos capazes sim de estimulá-los a indagar e problematizar as imagens dos feminismos que circulam em nossa sociedade. A oficina sobre feminismos, onde apresentamos um panorama da história do movimento feminista, demonstrando e analisando as reivindicações de cada uma de suas “ondas”, foi uma excelente oportunidade para minimizar os equívocos a respeito do feminismo na história, esclarecendo inclusive que existem vários tipos de feminismos, dada a diversidade de interesses, identidades e experiências das mulheres.  

Os debates que circulam nos meio acadêmicos são de suma importância, pois formam a base para transformações sociais, mas precisam também ser socializados no cotidiano das pessoas. Contudo não foi nosso objetivo simplesmente transpor o conhecimento acadêmico, teórico e erudito sobre a história das mulheres e das relações de gênero para o ambiente escolar. Assim buscamos considerar a realidade social dos/as alunos/as e as especificidades da cultura escolar para introduzir os estudos de gênero no ensino de história. Acreditamos que uma educação voltada para o reconhecimento da historicidade das concepções de gênero e sexualidade é capaz de garantir a inclusão, diminuir a violência e o preconceito. Ainda persiste a perseguição aos homossexuais e inúmeros de casos de violência doméstica. Nesse sentido, precisamos com urgência de projetos que transformem esse tipo de percepção.

Nessa jornada por uma educação mais justa, que reconheça a historicidade das diferenças e desigualdades de gênero, é importante salientar a importância de políticas públicas para a formação de professores/as, para que esses não reproduzam estereótipos e preconceitos em sala de aula e ajudem a construir uma educação não sexista. Salientamos ainda que a introdução dos estudos de gênero não deve se restringir aos/às professores/as da área de Humanas, já que os/as professores/as de todas as disciplinas tem a responsabilidade de contribuir positivamente com essa proposta. Nesse sentido, existe, por exemplo, o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), uma iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR). Trata-se de um curso à distância que visa justamente à formação de professores/as da rede pública, capazes de lidar com temas de gênero e diversidade sexual na escola. Há também outros programas e incentivos como o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero que tem por objetivo fomentar a produção acadêmica e científica sobre as relações de gênero. Essas iniciativas, juntamente com a incorporação das questões de gêneros nos currículos escolares, caminham letamente, mas não deixam de ser uma esperança frente aos problemas enfrentados, mas é preciso que essas políticas estejam ligadas ou não ao ambiente escolar, que não fiquem apenas no papel, para isso os/as professores/as precisam estar preparados e cientes da importância dos estudos de gênero, e não relegar esses estudos a um nível inferior.

Em nossa proposta de introdução dos estudos de gênero no ensino de história concebemos a escola como um espaço de “mentes pensantes”, de formação de cidadãos com uma visão de mundo mais crítica e humana. Além disso, trata-se de uma proposta que busca estimular crianças e adolescentes no prazer de estar na escola e aprender. Devemos ressaltar que as atividades de elaboração e aplicação de oficinas e materiais didáticos na escola, bem como de análise de saberes discentes, contribuíram também na nossa formação enquanto futuros/as professores/as de história.

Longe de uma atitude ingênua, não acreditamos que devemos colocar na escola ou nos/as professores/as toda a responsabilidade de transformar a sociedade, até porque estamos cientes das dificuldades atuais que nossa educação enfrenta. Entretanto devemos aproveitar esses e outros espaços, adotando uma postura “vigilante e contínua no sentido de procurar desestabilizar as divisões e problematizar a conformidade com o ‘natural’” (Louro, 2011: 90). Conclui-se, portanto, que falar de gênero é falar sobre diferenças históricas e dar voz a grupos marginalizados historicamente. Apesar das dificuldades e desafios que envolvem esse trabalho nas escolas, acreditamos que possa de alguma forma contribuir no rompimento de uma história androcêntrica, binária e hierárquica acerca do gênero.  Esses debates, em longo prazo, podem ajudar a garantir uma educação que valorize a igualdade e proporcione uma visão crítica aos/às alunos/as, permitindo que estes sejam capazes de analisar e problematizar as diferenças de gênero (e outras diferenças sociais) construídas historicamente.

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Biografia das autoras

Ana Carolina Eiras Coelho Soares possui doutorado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009), mestrado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003), especialização em Psicopedagogia pela UCAM (2008) e graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2001). Atualmente é coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa de Gênero da Faculdade de História/UFG, coordenadora do GT regional de Gênero da ANPUH-Goiás, Professora do Programa de Pós-Graduação em História-UFG e Professora Adjunta da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás.

Danielle Silva Moreira Dos Santos é graduanda em História na Universidade Federal de Goiás, Bolsista PROLICEN e membro do Grupo de Estudos de História e Gênero FH/UFG/CNPq.


 

[1] “O PROLICEN vem sendo desenvolvido desde 1980, como um Programa SESU-MEC, visando a valorização de Licenciaturas e a interação da Universidade com a rede pública de ensino. Esse trabalho recebeu um novo impulso com a aprovação do Programa de Bolsas para os cursos de Licenciatura da UFG, em 4 de junho de 1996. Desde então, tem sido ampliado o número de bolsas disponibilizadas, passando de 29 em 1996, para 52 em 2006 e atualmente conta com 64 bolsas, o que demonstra sua consolidação no âmbito da UFG. O Programa de Bolsas de Licenciatura, conforme a resolução CCEP nº 400, tem por objetivos incentivar a participação de discentes, através de concessão de bolsas, em projetos de natureza institucional, que invistam tanto na qualidade dos cursos, quanto na necessidade de garantir o ingresso, a permanência e a conclusão do curso pelos alunos das diversas licenciaturas e/ou propiciar uma efetiva articulação dos cursos de Licenciatura com os ensinos fundamental e médio.” https://prograd.ufg.br/p/7195-prolicen Acesso dia 15/05/2015.

[2] Para facilitar o entendimento dos alunos do ensino fundamental, abordamos gênero como uma construção social de sujeitos masculinos e femininos, em oposição a um determinismo biológico, no entanto estudos mais recentes apontam para uma problematizarão do conceito de gênero que vai além de uma simples oposição ao biológico. Judith Butler em sua obra Problemas de gênero desconstrói o conceito de gênero no qual estava pautada grande parte da teoria feminista.

[3] Segundo Carla Bassanezi Pinsky um “olhar de gênero” refere-se à capacidade dos indivíduos de perceberem “como o masculino e o feminino têm sido e ainda são representados e, a partir disso como as sociedade se organizam com base nessas representações” (2009: 29)

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier / juin 2015 -janeiro/juin 2015