labrys,
études féministes/ estudos feministas
Perturbar o desejo materno. Ficção e realidade da figura materna na série “Trailer”, de Nicola Costantino. Maria Laura Rosa
Resumo No presente trabalho, proponho-me a analisar obras fotográficas de Constantino que refletem sobre a presença/ausência da figura materna, bem como sobre os desejos e medos em relação à maternidade, aos quais a artista se refere em sua série Trailer. Seus trabalhos exibem um tipo de maternidade que se distancia do estereótipo da mãe acompanhada e feliz. Pelo contrário, o estranhamento e a solidão formam parte de uma outra maternidade que desestabiliza o modelo social e visibiliza outras formas do materno. Dessa maneira, encontramos nestes trabalhos intervenções feministas[1] que subvertem os clichês ao mesmo tempo em que visibilizam outra realidade. Trailer propõe um jogo de espelhos que quebra o modelo hegemônico e unidirecional do desejo materno, concebendo outros imaginários constituídos pelos vínculos contraditórios e ambíguos. Palabras-clave: Arte Contemporânea - Arte Argentina - Teoria de Arte Feminista - Nicola Costantino Perturbar o desejo materno. Ficção e realidade da figura materna na série “Trailer”, de Nicola Costantino. Característica de uma obra controversa, a artista argentina Nicola Costantino (Rosário, 1964) aborda temáticas difíceis e polêmicas ligadas ao consumo desenfreado em nosso tempo, à ambiguidade ética que pode chegar a afetar o que consumimos e a como consumimos, e a problemáticas referidas à manipulação humana e animal. Ainda que sua formação como escultora tenha se destacado, seus primeiros trabalhos foram performances –Il Baccanale (O Bacanal, 1989) y Cochon sur canapé (Leitão sobre divã, 1993) – nas quais o escultórico se integrava a um evento em que o ato de comer e devorar não se diferenciavam. Repulsiva e refinada ao mesmo tempo, em 2004 Constantino começou a ser protagonista de sua própria obra ao apresentar no Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires (MALBA) Savon de corps: um pequeno e simples sabonete com forma de silhueta feminina que dizia conter três por cento de gordura liposuccionada da artista. Este trabalho foi acompanhado por um pequeno curta-metragem que abria o debate sobre o estético e o ético. Sobre as obras comentadas, a artista disse: “No meu trabalho, o elemento político tem muita importância porque sempre está presente algo que tem a ver com este comportamento social conflituoso. Eu não emito juízos de valor sobre as contradições que mostro porque geralmente eu mesma protagonizo o comportamento que poderia ser criticável. Sou eu a pessoa que come carne, sou eu que me submeto a uma cirurgia” (Costantino, 2012)[2]. A partir do encontro entre Nicola Constantino e o fotógrafo Gabriel Valansi, em 2006, a artista deu início a uma produção fotográfica que não careceu do tom misterioso e crítico de seus trabalhos anteriores. Suas fotografias mantiveram o encontro entre o belo e o horroroso, o extremamente lindo e o sinistro. No entanto, estas imagens ecoaram momentos de sua vida pessoal contados por meio do relato da história da fotografia e da história da arte, situação que termina sendo eloquente, já que a arte da câmera escura se revelou como um fator fundamental nas representações autobiográficas ao permitir às e aos artistas contemporâneos refletir sobre as representações do eu. Costantino se transformou em modelo de seus próprios trabalhos e passou de ser a mulher que lê uma carta de Vermeer àquela que ocupa o lugar do próprio Velázquez em Las Meninas, às gêmeas de Diane Arbus ou Maria do filme Metrópolis, de Fritz Lang. Multifacetada, a artista foi se narrando entre aquelas e aqueles que admira, efetuando um jogo de ida e volta: ainda que tenha selecionado sua própria história da História –o Grande Relato da História da Arte, da História da Fotografia– depois ela se introduziu nessas narrativas como protagonista. Jogos de espelhos e de reflexos são característicos destas obras. Nesse sentido, Estrella de Diego cita Estelle Jelinek, especialista em autobiografia, que indica: “Mais do que a ordem, a irregularidade conforma os autorretratos das mulheres. Suas narrativas de vida são, com frequência, não cronológicas e progressivas, mas descontínuas, fragmentárias e organizadas em unidades autônomas mais do que em capítulos conectados.” (de Diego, 2011: 107) A respeito, acrescenta de Diego: “Porque apesar de reenviar a autobiografia a uma omissão e apelar, o autorretrato é um deslocamento, os limites entre ambos provavelmente jamais foram simples e não o são agora que o sujeito unifocal e unitário se viu sacudido pelo discurso dos ’70 e, sobretudo, pela irrupção dos discursos das chamadas minorias –de gênero, raça ou opção sexual-. Poder-se-ia dizer inclusive que o auge da autobiografia –visual- e dos estudos autobiográficos se deve em boa medida ao interesse em que tais minorias foram desenvolvendo na hora de tratar de escrever sua história negada. Se todo sujeito é, sem remédio, uma construção cultural, como escrever a história de vida daqueles que não tiveram uma história própria separada da imposta?”(de Diego, 2011: 107-108) No entanto, dentro desses relatos autobiográficos que a artista foi narrando a partir da reinterpretação de trabalhos de “grandes” mestres canônicos, a questão da maternidade como ausência, desejo e medo aparece em reiteradas oportunidades até que finalmente a artista se dedicou exclusivamente a ela em sua série Trailer. Desta maneira, Nicola foi se apropriando de obras sobre as quais se baseava o discurso canônico da história da arte para visibilizar espaços de silêncio onde se localizam as mulheres, os interstícios –do visual e da linguagem- de onde historicamente falamos. (de Lauretis, 2000: 24) Nesse sentido, uma das primeiras obras é Nicola costurera (Nicola costureira, 2008), inspirada no quadro de Antonio Berni Primeros pasos (Primeiros passos, 1936). Ainda que a referência ao rosarino pudesse ser vinculada com uma lembrança da infância de Constantino -o encontro com um livro de Berni despertou-lhe o interesse pelo estudo das artes plásticas e o desejo de ser artista-, também pode ser uma referência à sua mãe, que lhe ensinou a costurar e para quem a artista trabalhou durante vários anos na butique que esta tinha em Rosário. A mãe é uma presença/ausência, aparece no pensamento ensimesmado da artista ou no vestido do manequim? A ordem pulcra dos objetos que estão na cena e a luz fria e melancólica da escuridão noturna acentuam a solidão de uma Nicola que está distante. A costura é a grande protagonista da obra. A artista se localiza em uma zona lateral, destacada pela luz que se dirige à sua figura. A força do tecido vermelho que cai dobrado da máquina de costura, bem como o vestido de cor natural que se apresenta no manequim, falam do ofício da alta costura que sua mãe lhe ensinou. A mesma mãe que não compreendeu que Costantino abandonou essa tarefa para seguir seu desejo de ser artista[3]. Essa luta entre o desejo da mãe e seu próprio desejo não desapareceu já que, como um legado materno, a questão da roupa e da costura atravessa todos os trabalhos de Costantino. Em Nicola y su hijo Aquiles según Richard Avedon (Nicola e seu filho Aquiles segundo Richard Avedon, 2009), a artista reinterpretou uma fotografia da série In the American West 1979-1984 do reconhecido fotógrafo nova-iorquino. É eloquente que tal série de Avedon, que documentava os esquecidos do American way of life -camponeses, mineiros, vagabundos, prostitutas, donas de casas, presos, vaqueiros ou empregados de pequenos escritórios, etc.-, fosse escolhida por Costantino para falar do materno.
Nicola Costantino, Nicola e seu filho Aquiles segundo Richard Avedon, 2009 A obra que a artista escolheu foi a de um homem forte que segurava um bebê pelos pés, o que gera certa inquietude ao nos mostrar o bebê de cabeça para baixo, ressaltando sua fragilidade frente à força do adulto. No entanto, ao se colocar no lugar do homem forte, Nicola subverte as imagens estereotipadas da maternidade: essas mulheres que envolvem e seguram a criança em seu colo, a Virgem Maria, a mãe protetora. Ao nos dirigir diretamente seu olhar, Costantino abre um jogo de reconhecimentos. Mas, nesse jogo visual observadora/observada, a visão se torna política, entendendo este conceito segundo a definição de Griselda Pollock, vale dizer, como um conjunto de práticas que não só conformam o campo perceptivo, mas que também estabelecem vínculos diretos entre a visão, a formação da subjetividade e a produção cultural de significados (Pollock, 1996:16-22). É assim como a artista, ao mesmo tempo em que questiona o estereótipo do cuidado materno, constitui outra ordem de possibilidades para aquelas e aqueles espectadores que se reconhecem e são reconhecidos, fazendo uma intervenção feminista dentro do relato canônico. En Nicola Artefacta y Aquiles como Venus y Cupido según Velázquez (Nicola Artefacta e Aquiles como Vênus e Cupido segundo Velázquez, 2010), a objetividade de Artefacta remete diretamente ao tratamento que as mulheres tiveram ao longo da história da arte, tornando-o evidente: é um óbvio objeto de representação. Enquanto o braço em primeiro plano acentua a artificialidade da figura, o reflexo do rosto da boneca dispara imediatamente a ambiguidade, que se aprofunda com a vivaz presença do menino Aquiles que, como Cupido, segura um espelho. No entanto, o lugar da mãe do menino –a artista na realidade e Vênus na mitologia - está ocupado por uma escultura de gesso e cabelo artificial, isto é, que a mãe real é uma ficção atravessada por um tempo que vai deteriorando-a, esquartejando-a, como podemos ver na zona de seu braço.
Nicola Costantino, Nicola Artefacta e Aquiles como Vênus e Cupido segundo Velázquez, 2010,136 x 190 cm.
Se a representação artística insiste em um nu feminino atemporal, em palavras de Griselda Pollock “um corpo sem tempo” (Pollock, 2003:115), e em esquecer que se trata de uma ficção, baseado nos ideias de beleza predominantes de cada momento histórico, Costantino acentua todas aquelas frequentes omissões. O filho de Vênus será aquele que segura o espelho que devolve à mãe seu rosto de gesso e pintura. Se tudo é uma construção dos tempos vividos e dos em que se vive, então o desejo materno e a maternidade como tal também são construções míticas tão atualizadas como esta Vênus e Cupido de Artefacta e Aquiles. Príncipe Aquiles según Velázquez (Príncipe Aquiles segundo Velázquez, 2010) apresenta a obra Las meninas atualizada, vale dizer, é uma reformulação da clássica obra espanhola por meio do olhar de uma artista contemporânea. Ainda que o trabalho de Costantino seja de uma grande complexidade e exceda o espaço deste artigo, vale destacar que a artista colocou seu filho no centro de uma cena. A criança como um astro solar observa um mundo de adultos ao seu redor: meninas atuais, Artefacta encostada na porta do fundo, o fotógrafo e artista Gabriel Valansi refletido no espelho e a artista/mãe com o fotômetro na mão, regulando a pequena/potente fonte de luz. As obras de arte do espaço convivem com os brinquedos da criança.
Nicola Costantino, Príncipe Aquiles segundo Velázquez, 2010, 180x140 cm
Costantino não se colocou no quarto do filho, mas foi o filho que se colocou no centro de seu ateliê, inter-relacionando a função materna com a criativa. Se Velázquez em Las Meninas fez toda uma apologia da atividade artística como um ofício nobre e, portanto, liberal para a Espanha do Século XVII, podemos pensar que Costantino reivindicou nessa obra o valor das artistas mulheres a partir da diferença sexual, de seus desejos criativos e gestantes que não se enfrentam nem se negam para muitas mulheres do Século XXI. A questão da possibilidade feminina de criação artística associada com a gestação e a criação dos filhos serão temas trabalhados na série Trailer, como veremos mais adiante. Tanto a produção fotográfica de Costantino como a sua experiência com a câmera - estamos nos referindo a Trailer (2010), curta-metragem que tomou o formato de uma série de cenas de um filme prestes a estrear, mas que Costantino nunca realizou - transitam entre a realidade e a ficção, entre o autobiográfico e a invenção, pondo em cheque o que estamos experimentando como autêntico na criação de um relato. Com relação à arte fotográfica e ao relato autobiográfico, Nicola Costantino assinala que: “A combinação de fotografia e autobiografia é algo que escolhi. Não imagino uma fotografia na qual minha presença como modelo não apareça. A fotografia tem também um caráter de documento, de algo real. Isso me parece muito bom porque em arte você pode trabalhar com algo que existe, mas que pode ser transformado em ficção”.[4] Isto se reflete em uma obra fotográfica em que podemos perceber um alto grau de autenticidade questionada: a ambiguidade entre o que é realidade e o que é ficção e como elas se conjugam na construção da subjetividade. Na série Trailer (2010), a artista faz referência a uma situação pessoal: a gestação e o nascimento de seu filho Aquiles. A obra está composta por um filme que tem a organização de um trailer cinematográfico, uma série fotográfica e uma instalação. Se começamos pelo filme, o argumento do mesmo se insinua: após um lapso em que intuímos que é a artista quem aparece remexendo no porta-malas de um carro, a história continua com Nicola lendo seu teste de gravidez. Em seu rosto se reflete o desejo de ter esse filho. Enquanto sua barriga cresce, ela cria uma dublê de si mesma, que a acompanha durante o parto e os primeiros meses do bebê. Finalmente, diante da iminência de um fato desconhecido para as espectadoras e os espectadores, Artefacta –a dublê- termina sendo jogada de uma escada, ação que a própria Costantino comete e que se encadeia com o início do filme. Embora o argumento seja aparentemente simples -apresentação, nó e desenlace da ação- o clima do curta-metragem, inspirado no cinema noir, é sumamente misterioso. Desconhecemos os motivos pelos quais uma maternidade desejada, que parecia iniciar se de um modo feliz e ansiado, vai se ensombrecendo. O subtítulo da primeira parte – Lo soñado (O sonhado)- fala do desejo de ser mãe, da busca ansiosa e da alegria ao concretizar esse desejo. Imediatamente depois desse momento, inicia-se a criação de Artefacta. A cena na qual Costantino grávida aparece criando-a poderia nos remeter à dupla fertilidade das mulheres, que contam com a possibilidade de criar dentro e fora de seu ventre, deixando por terra aqueles preconceitos que pesavam sobre a validez criativa das artistas frente à sua natural capacidade de gestação. O jogo constante entre a realidade e a ficção é inquietante. Ainda que a maternidade de Costantino tenha sido real, a dublê é um ser fantástico que porta mimeticamente suas características físicas. Esta gêmea de gesso introduz um elemento perturbador a Trailer, deslocando as típicas situações pelas quais todas as parturientes atravessam, mulheres estas que, por outro lado, são tomadas como referentes por Nicola Costantino com o objetivo de subvertê-las. A respeito desse assunto, a artista indicou: “São uma espécie de coisa quase tradicional sobre a maternidade e isso lhe dá uma certa estranheza. A dublê te perturba. São imagens que se constroem desapegando-se, em certa forma, do real. Ao mesmo tempo, toda a história em Trailer tem a ver com a situação da minha gravidez solteira, tendo um filho sozinha, sem pai, e enfrentando tanto a minha carreira quanto as responsabilidades de ser mãe. Para enfrentar tudo isso e, como um paliativo diante da minha solidão, construo esta dublê. Ela é uma metáfora da mulher mãe e profissional: a mulher deve fazer frente à dupla jornada de trabalho, seu esforço se duplica. Toda essa história reflete grande parte de minha história pessoal, de como tive meu filho, Aquiles. Mas, ao mesmo tempo, desliga-se dessa realidade com esta escultura que tem um caráter de personagem vivente, isso é o que lhe dá certa perversidade.”[5] Uma das fotografias que mostram a origem de Artefacta –Nicola y su doble. Taller (Nicola e sua dublê. Ateliê, 2010)- é aquela em que a boneca aparece nua, sentada em uma cadeira de médico. Costantino segura uma pinça, como se tivesse estado colocando as pestanas e ajustando os detalhes de Artefacta, nada parece indicar que é o ateliê de uma artista, pois o espaço mais se parece a uma sala de cirurgia, lugar de profissão que, não casualmente, era a do pai de Costantino. O ateliê/sala de cirurgia mostra vários tipos de pernas e membros de gesso policromado com que a artista vai montando a Artefacta segundo os requerimentos das fotografias. Assim explica a artista: “A Nicola Artefacta existe por obra da minha criação. Sua alteridade reforça minha identidade. Dois corpos, uma só alma. O melhor encontro é com a gente a mesmo. Minha dublê é um antídoto contra a solidão. (...) Minha ‘doppelgänger’, idêntica a mim, mas sem estar grávida, interage comigo grávida (...).”(Costantino, 2013: 194) Ao desejo de gestação de Costantino, soma-se o de criação artística. Ambos são invisibilizados pelo cânon da escritura e pelos relatos da história da arte, conformando se uma linhagem paterna que sistematicamente vem excluindo as artistas mulheres, seus trabalhos e as suas faculdades para ensinar e ter discípulas/os (Schor, 2007:111-129). Esta imagem da artista gestante criando estabelece uma inserção feminista na política visual, ao mesmo tempo em que amplia o imaginário fictício/real de ordem representativa. Com fictício/real, refiro-me a que se consideramos que a realidade está constituída por diversas normativas de gênero, sexo, etnia, classe, beleza, idade, etc., em constante transformação e que seus limites sofrem deslocamentos e rearticulações segundo o imaginário visual e/ou narrativo, são nossas ficções imaginárias as que transpassam o campo da representação, oferecendo outros cenários à realidade. Se como indica Félix Vogel: “(…) a realidade é um sistema complexo, pois deve sua existência a uma série de entrelaçamentos e feedbacks inter-relacionados entre realidades reais e realidades ficcionais” (Vogel, 2011:24). Costantino intervém no campo visual produzindo um relato a partir da diferença sexual do desejo.
Nicola Costantino: Nicola e sua dublê, Ateliê, 2010, 140 x 211,5 cm
Em Vestidor (Provador, 2010), a artista volta a rememorar o trabalho de sua mãe e o próprio. O reflexo do espelho nos indica a estrutura metálica que mantém o corpo de Artefacta, apagando toda possível confusão. A multiplicação dos reflexos acentua certo clima sinistro. Enquanto a gravidez avança, Artefacta vai assumindo maior presença no cotidiano de Costantino. O corpo fictício vai se multiplicando nos espelhos, no entanto, se omitíssemos esses reflexos, nada nos faria deixar de pensar que a artista está vestindo uma mulher. A vestimenta opera como um mascaramento do fictício[6], trazendo a presença da mãe de Nicola da ausência. A gravidez avançada da artista, simbolicamente destacada pelo metro de modista que cai sobre seu ventre, precipita a necessidade de uma companhia e, portanto, dos diferentes papéis que a boneca ocupará.
Nicola Costantino: Nicola e sua dublê. Provador, 2010, 180 x 130 cm
Costantino questiona os estereótipos da maternidade arraigados socialmente. Tanto a figura ideal da mãe quanto suas transformações físicas aparecem interpeladas. Suas fotografias mostram a fragilidade, a solidão e os medos que as grávidas enfrentam como elementos desestabilizadores da figura materna usuais, ou seja, aquela que se constrói com base na serenidade, segurança e na omissão das ambivalências e dos sentimentos encontrados. A artista disse que as fotografias de Trailer eram como histórias pessoais e únicas daquelas mulheres que tinham passado por esta experiência (Rosa, 2012:17). Em Maternidad (Maternidade, 2010), o nascimento deixa à vista um clima marcadamente hospitalar e até de sala de cirurgia fria e distante. A luz prioriza o bebê e a mãe: a criança aparece em um bercinho de acrílico e metal, a mãe com uma camisola de hospital. O olhar da mãe é sumamente melancólico e concentrado em si mesmo. Nada indica o clima festivo, tradicional das boas vindas a um filho. A única figura cromática desta cena cética é Artefacta que, por seu caráter de boneca, ressalta ainda mais a atmosfera de solidão do lugar.
Nicola Costantino: Nicola e sua dublê. Maternidade, 2010, 94 x 150 cm
Em Moisés (2010), duas figuras similares compartilham a atenção de um bebê. Supomos que a mãe é quem aparece amamentando-o, mas nada nos faz pensar que a outra figura seja Artefacta: o modelo de gesso da artista, que tem cabelo humano e roupa que não indica estar fora do nosso tempo. A luz acompanha esta cuidada composição criando um clima entre o melancólico e o solitário, o qual enfrenta as espectadoras e os espectadores com um aspecto da maternidade que questiona o clichê da mãe feliz. Se a isso somamos o título da obra, a criança será desprendida de sua mãe para poder salvar sua vida. Nesse sentido, poderia ser válido pensar nos medos de morte prematura que as mães têm e até na renúncia da própria vida pela salvação do filho. Estes e outros temores e/ou fantasmas nos permitem dar conta das dificuldades assumidas na hora de representar a maternidade, dado que as experiências vividas são diferentes e únicas assim como as mudanças físicas e os processos de transformação do eu nesta etapa da vida das mulheres.
Nicola Costantino. Nicola e sua dublê. Moisés, 2010, 173 x 130 cm
Quanto a pôr em palavras os desejos e medos das mães, a escritora e pensadora feminista Adrianne Rich expressou: “Com a gravidez e a criação dos filhos, induz-se as mulheres a imitar a serenidade das madonas. Ninguém menciona a crise física que surge com a concepção do primeiro filho, a excitação dos sentimentos antigamente enterrados sobre a própria mãe, a sensação confusa de poder e de impotência, de ser possuída, por um lado, e de ter nas mãos umas forças físicas e psíquicas, por outro, e uma sensibilidade aumentada que pode ser excitante, que pode provocar aturdimento e extenuação. Ninguém fala sobre o estranhamento da atração - que pode ser tão ingênua e obsessiva quanto nos primeiros dias do primeiro amor - por um ser tão pequeno, tão dependente, tão recolhido em si mesmo, que é e não é parte de si mesma.”(Rich, 1986: 75) No filme Trailer (2010), Costantino mostra o final de Artefacta, esta ‘doppelgänger’ que ajudou a artista a transitar por uma etapa desconhecida, mas que concluída sua missão, transforma-se em uma pesada carga. Com os restos da boneca, Costantino realizou uma instalação. Nela o acidente, que escondia um assassinato, é exibido como uma experiência particular: uma charrete mostra os membros desarticulados de uma Nicola de gesso e carne pintada. Suas partes não estão jogadas sobre o chão, mas precisamente colocadas, tão calculadas quanto o seu final. As e os assistentes só podem ver a cena a partir de uma janela, o que torna mais ambíguo o desenlace: a violência de um sacrifício observada por uma/um voyeur. A artista nos obriga a tomar o lugar de observador/a comumente adotado pelos espectadores masculinos frente às obras de arte históricas de conteúdo erótico. No entanto, aqui o corpo/objeto feminino desejado por aquele olhar é substituído por um corpo desmembrado, quebrado, cuja cabeça cortada aparece descartada no centro da cena.
Nicola Costantino: Trailer, restos da dublê, 2010, 220 x 200 x 300 cm
Com respeito ao final de Artefacta, a artista comentou: “Quando dois elementos chegam a tal nível de semelhança, a relação se torna emotiva, a afinidade e a familiaridade liberam uma energia positiva e empática que crescerá até um ponto em que a resposta emocional se transforma em forte recusa e negatividade: a Nicola artefacta é um estranho cadáver vivo”. (Costantino, 2013: 194) Cadáver vivo que poderia ser parte da própria Costantino, já que aquela vida que ela tinha mudou radicalmente com a maternidade. A etapa da autossuficiência e da absoluta liberdade terminou. A artista Joan Snyder escreveu: “Ser mãe e artista: difícil. Ser mãe solteira e artista: mais difícil ainda. Ser mãe é ser mãe é ser mãe. Ser artista significa fazer seu trabalho. Precisa-se de tempo e de ajuda, anos e anos de ajuda. A tarefa criativa é dura e consome muito tempo. Afortunada, muito afortunada se seu filho for saudável.” (apud Davey, 2007: 220) Para concluir, na série Trailer Nicola Costantino reflete sobre os medos e as ambivalências do desejo feminino durante a gravidez e os primeiros meses do nascimento do filho. Artefacta é o outro eu da artista que reflete, como se fosse um espelho, seus temores. A boneca exerce o papel de a companhante contrafóbico, tornando-se, em um determinado momento, ameaçadora. Esta série de obras, ao meu entender, visibiliza a complexidade dos processos psíquicos que impactam sobre as mulheres por causa da maternidade. Por outro lado, a decisão, a liberdade e as possibilidades com que algumas mulheres contam na hora de concretizar o desejo de ser mãe também implicam enfrentar a solidão do processo. No entanto, do campo da teoria da arte feminista, esta série de trabalhos nos permite observar como operaram - e continuam operando - as tecnologias de gênero, produzindo mulheres como sujeitos-da-visão[7] que, em um ato de identificação visual, constroem a subjetividade por meio de imagens pensadas para o desejo masculino, branco e burguês. Nesse sentido, Costantino polemiza contra os modelos da história da arte sobre a representação da mãe, abrindo outras realidades possíveis para a subjetividade feminina. Os trabalhos analisados exibem um tipo de maternidade que se distancia do estereótipo da mãe acompanhada e feliz. Pelo contrário, a estranheza e a solidão são parte de uma outra forma de maternidade que desestabiliza o modelo social comumente imposto para as mulheres. Dessa maneira, encontramos nestes trabalhos intervenções feministas que subvertem os clichês ao mesmo tempo em que visibilizam outra realidade. Trailer propõe um jogo de espelhos que rompe com o modelo hegemônico e unidirecional do desejo materno, concebendo outros imaginários constituídos por vínculos contraditórios e ambíguos.
Biografía Maria Laura Rosa ,Bacharel em História da Arte pela Universidade Complutense de Madrid. Doutora em Arte Contemporânea pela UNED, Madrid. Pesquisadora do CONICET pelo Instituto Interdisciplinário de Estudos de Gênero da Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires. Autora do livro: Legados de libertad. El arte feminista en la efervescencia democrática, (Legados de liberdade. A arte feminista na efervescência democrática - texto ainda inédito em português -), Buenos Aires, Biblos, 2014. Especialista em arte feminista argentina e latinoamericana.
Bibliografia empregada Costantino, Nicola. 2013. Nicola Costantino. Ostfildern: Hatje Cantz Verlag. Davey, Moyra (ed.). 2007. Maternidad y creación. Barcelona: Alba editorial. de Diego, Estrella. 2011. No soy yo: Autobiografía, performances y los nuevos espectadores. Madrid: Siruela. de Lauretis, Teresa. 2000. Diferencias. Etapas de un camino a través del feminismo. Madrid: Horas y horas. Jelinek, Estelle. 1980. “Introducing Women’s Autobiography and the Male Tradition” em E. Jelinek (ed.): Women’s Autobiography: Essays in Criticism. Indiana: University Press. Pollock, Griselda. 1990. “Beholding Art History: Vision, Place and Power” em N. Bryson; M. A. Holly; Key Moxey (eds.). Visual Theory. Painting and Interpretation. Massachusetts y Oxford: Backwell Publishers. Pollock, Griselda. 2003. “The Grace of Time: narrativity, sexuality and visual encounter in the Virtual Feminist Museum”, Art History, vol. 26, n°2. Pollock, Griselda. 2008. “Desde las intervenciones feministas hasta los efectos feministas en las historias del arte. Análisis de la virtualidad feminista y de las transformaciones estéticas del trauma” em Arakistain, Xavier; Méndez, Lourdes: Producción artística y teoría del arte. Nuevos debates I, Vitoria: Centro Cultural Montehermoso Kulturunea. Rich, Adrianne. 1986. Nacida de mujer. La maternidad como experiencia e institución. Valencia: Cátedra. Rosa, María Laura. 2012. “Juegos de espejos. Realidad y ficción en la obra fotográfica de Nicola Costantino”. Em Nicola Costantino. Alteridad (cat. expo), Mendoza: UNCUYO. Rosa, María Laura. 2015. “Reflejos fugaces o de cómo construir un relato autobiográfico con la biografía ajena” em Rapsodia inconclusa. Nicola Costantino (cat. expo). Buenos Aires: Colección de Arte Amalia Lacroze de Fortabat. Schor, Mira. 2007. “Linaje paterno” em Cordero Reiman, Karen; Sáenz, Inda: Crítica feminista en la teoría e historia del arte. México: Universidad Iberoamericana. Trafí Prats, Laura. 2012. “Perturbar la Historia del Arte desde el lugar de la espectadora. Las aportaciones de Pollock y Bal a los estudios visuales” em Anna Ma. Guasch y Miguel A. Hernández (coord). Actas del I Congreso Internacional de Estudios Visuales, Barcelona. Universidad. Vogel, Félix. 2011. “El rostro de Antu. O de Agata, Cole, Desislava, Dina, Emily, Joanna, Katia, Mihaela, Lisa, Sam o Toni. Acerca de Archivo: Drag Modelos de Cabello/Carceller” em AA.VV.: Cabello/Carceller, Archivo: Drag Modelos. Las Palmas: CAAM. Entrevistas Entrevista a Nicola Costantino, Buenos Aires, fevereiro de 2012. Entrevista a Nicola Costantino, Buenos Aires, março de 2014. Notas [1] Griselda Pollock: “Beholding Art History: Vision, Place and Power” en N Bryson; M. A. Holly; Key Moxey (eds.): Visual Theory. Painting and Interpretation , Massachusetts y Oxford, Backwell Publishers, 1990, pp. 39-43. [2] Entrevista a Nicola Costantino, Buenos Aires, fevereiro de 2012. [3] Entrevista a Nicola Costantino, Buenos Aires, março de 2014. [4] Entrevista a Nicola Costantino, Buenos Aires, fevereiro de 2012 [5] Entrevista a Nicola Costantino, Buenos Aires, março de 2014. [6] Para a questão do mascaramento na obra de Costantino, ver: María Laura Rosa: “Reflejos fugaces o de cómo construir un relato autobiográfico con la biografía ajena” em Rapsodia inconclusa. Nicola Costantino (catálogo da exposição), Buenos Aires, Colección de Arte Amalia Lacroze de Fortabat, 2015. [7] O conceito de sujeito-da-visão foi definido por Laura Trafí como: “(…) o sujeito, produto da ideologia do ocularcentrismo renascentista, que supostamente exerce uma prática de uma visão invisível, descorporeizada, que pode ter acesso a todo conhecimento e que controla todo o campo visual”. Citado em Laura Trafí Prats: “Perturbar la Historia del Arte desde el lugar de la espectadora. Las aportaciones de Pollock y Bal a los estudios visuales” em Anna Ma. Guasch y Miguel A. Hernández (coord). Actas del I Congreso Internacional de Estudios Visuales, Barcelona. Universidad, 2012, s.p. labrys,
études féministes/ estudos feministas
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