labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

Uma viajante interna:

Josephina Alvares de Azevedo e suas impressões feministas, na segunda metade do século XIX

Bárbara Figueiredo Souto

 

 

Resumo: A historiografia tem se interessado pelos relatos de viagens enquanto fontes históricas, entretanto ainda temos poucos estudos sobre mulheres viajantes e, principalmente, sob a perspectiva brasileira. Este artigo almeja analisar viagens empreendidas no território brasileiro, com o intuito de divulgar o periódico feminista A Familia e de conhecer os métodos de ensino adotados nas escolas voltadas para o sexo feminino, na segunda metade do século XIX. Além de percorrermos país afora através da palavra escrita, conheceremos um pouco mais da mulher complexa que se constrói nas páginas do jornal: Josephina Alvares de Azevedo.

Palavras-chave: viagens. mulheres, século XIX

 

 

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

        Fernando Pessoa

Em fins do século XIX, uma mulher, residente na capital do Império, ousou viajar desacompanhada pelo território brasileiro com a meta de divulgar seu periódico A Familia e conhecer as instituições escolares voltadas para o ensino feminino. A mulher em questão é Josephina Alvares de Azevedo,[1] a qual gerou polêmica por suas ideias e também por sua biografia. O periódico A Familia: “Jornal Litterario – Dedicado á educação da mãe de familia” começou a circular em novembro de 1888, em São Paulo, mas logo passou a ser publicado na capital federal, até o ano de 1894.[2] Durante esses anos, a redatora e suas colaboradoras discutiram os lugares das mulheres na sociedade brasileira, reivindicando igualdade de direitos, acesso à ensino de qualidade, inserção no mercado de trabalho, voto feminino, entre outras propostas de caráter feminista (Souto, 2013).

Além da fundação do jornal A Família, Josephina Alvares de Azevedo também escreveu uma peça teatral (O voto feminino, 1890), publicou coletâneas de divulgação (Retalhos, 1890; A mulher moderna: trabalhos de propaganda, 1891) e produziu uma obra biográfica de mulheres (Galleria illustre de mulheres célebres, 1897).

Ainda hoje, a trajetória pessoal da escritora incita posicionamentos distintos entre os estudiosos. De acordo com o dicionário de Sacramento Blake, Josephina era filha do Dr. Ignacio Manoel Alvares de Azevedo e, portanto, irmã, pelo lado paterno, do poeta Manoel Antonio Alvares de Azevedo. Para Blake, a jornalista havia nascido em Itaborahy, Rio de Janeiro, em 05 de março de algum ano do século XIX (Blake, 1970: 237-8). Maria Thereza Caiuby Crescenti Bernardes corrobora Blake em relação aos dados sobre a filiação e o local de nascimento de Josephina e nos informa que seu ano de nascimento foi 1851 (Bernardes, 1988: 114).

O Dicionário Mulheres do Brasil confirma a filiação e a terra natal de Josephina de Azevedo informada por Blake e Bernardes, e também o ano de nascimento da jornalista, em 1851 (Schumaher; Brazil, 2000: 301). Por sua vez, Constância Lima Duarte afirma que o nascimento da jornalista ocorreu no ano de 1852 e a mesma “teria sido irmã (ou prima) do poeta romântico Álvares de Azevedo” e também escreve que “há dúvida se nasceu em Itaboraí (RJ) ou em Pernambuco, e quanto a data de seu falecimento.” (Duarte, 2016: 313)

A leitura do jornal A Familia nos levou a questionar parte das informações anteriores e corroborar a análise de Valéria Andrade Souto-Maior, a qual afirma que, provavelmente, Josephina de Azevedo tenha nascido em Recife, já que a própria jornalista forneceu essa informação em seu periódico (neste artigo, mencionaremos alguns trechos da fonte que confirmam essa afirmação). Souto-Maior baseia-se no Dicionário mundial de mulheres notáveis para sugerir que o ano de nascimento de Josephina seja 1851 (Souto-Maior, 2000: 484).

As páginas d’A Familia veicularam que o aniversário da redatora era comemorado aos 5 de maio (Valle, 1891: 2). Em relação aos vínculos parentais entre a jornalista e o poeta, Souto-Maior nos revela que o autor Vicente de Azevedo entrevistou uma irmã e um primo de Álvares de Azevedo, os quais negaram a paternidade ilegítima de Josephina. Além disso, em artigo que também analisaremos posteriormente, a própria jornalista escreveu que ela era prima do poeta. Pensando nisso, Valéria Souto-Maior nos traz uma importante interpretação:

Portanto, embora não se possa descartar de todo a possibilidade de que, para não expor-se publicamente na condição humilhante de irmã ilegítima, a conhecida jornalista tenha preferido assumir laços menos próximos com o renomado poeta, a informação de que eles eram primos deve ser considerada senão como incontestável, sem dúvida alguma, como a mais provável (Souto-Maior, 2000: 485).

         Valéria Souto-Maior sugere que Josephina partira do Recife e chegara a São Paulo no ano de 1878; também há indícios de que ela teria sido mãe (Souto-Maior, 2001:46-47). Embora não saibamos quem foram seus filhos, se ela foi casada e onde se formou, as reflexões e ações que essa jornalista/professora/feminista praticou foram bem mais relevantes do que simples dados de uma vida particular.

Assim, a biografia pouco esclarecida de Josephina Alvares de Azevedo se torna algo menor, se levarmos em consideração a ousadia de seus escritos e empreendimentos. É justamente sobre suas ideias e movimentos, os quais foram registrados no periódico A Familia, que almejamos analisar neste artigo que se abre. Focaremos o olhar num pretencioso projeto empreendido por Josephina, no ano de 1889: viajar pelo território brasileiro, pelas repúblicas da Prata, por Lisboa, Paris, Espanha e Estados Unidos, para observar o sistema educacional dedicado às mulheres e divulgar seu periódico.

Uma mulher viajante? Uma viajante brasileira? Uma viajante interna? Mais uma vez, Josephina de Azevedo não seguiu os padrões...

Segundo Stella Maris Scatena Franco, a área de Humanas tem se interessado cada dia mais pela temática das viagens. Entretanto, fica claro o maior interesse pelas narrativas produzidas por Europeus que vieram para a América em contraposição ao movimento de Latino-Americanos que partiram para observar a Europa. Além disso, os

“[...] relatos masculinos também são inegavelmente mais estudados que os escritos por mulheres.” (Franco, 2008: 21).

Seguindo contra a corrente, convidamos as leitoras e leitores a nos acompanhar pelas viajagens de Josephina pelo território brasileiro. Esses caminhos foram trilhados com base nas análises dos interessantes pensamentos de uma mulher que foi professora, artista, jornalista e, sobretudo, feminista.

 

Os primeiros passos...

As primeiras informações sobre as viagens de Josephina Alvares de Azevedo foram encontradas na publicação do jornal A Familia de 19 de janeiro de 1889. Logo na primera página, a redação informou que enquanto Josephina estivesse no Norte, a gerência do periódico ficaria sob a responsabilidade do Dr. Francisco Dias de Barros (A Familia, 19/01/1889: 1). Ela começou sua trajetória pelas províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Destas viagens sabemos que visitou alguns órgãos da imprensa, como O Século, que relatou:

"Aqui esteve nos dias  9 e 10  do corrente a Exma. Sra. D. Josephina Alvares de Azevedo, habil redactora e proprietária da Familia, interessante periodico consagrado ao lar, que se publica na capital de S. Paulo.Foi-nos agradabilissima a vizita com que honrou-nos aquella valente Senhora, que ha percorrido quasi toda a provincia de S. Paulo, Rio, e grande parte da de Minas na propaganda do seu utilissimo periodico. Desejamo-lhes toda sorte de venturas e farta collecta de assignaturas." (O Seculo in A Familia, 04/05/1889: 8)

Através deste trecho, podemos perceber que o esforço de Josephina foi importante para a divulgação do seu periódico, bem como para estabelecer boas relações com os parceiros de imprensa. Porém, nos chamou a atenção o fato d’O Século enfatizar que o jornal A Familia era “consagrado ao lar”, o que revela uma leitura desatenta dos escritos da redatora e de suas colaboradoras. Certamente o título do periódico gerou tal equívoco nos redatores do periódico mineiro.

No número-programa d’A Familia, a proprietária e redatora dissertou sobre o título atribuído à sua folha, além dos seus ideais, o que não corrobora o relatado pelo periódico O Seculo. Josephina de Azevedo esclareceu que o título A Familia poderia passar a impressão de que o periódico era dedicado, exclusivamente, à educação da mãe de família; entretanto, ela fez questão de ressaltar que suas motivações eram bem mais amplas.

Ela nos revelou que suas amigas a incentivaram a fazer conferências sobre a educação da mulher, mas, tendo percebido que o discurso em voz alta não era sua melhor habilidade, acabou se identificando com a palavra escrita. Josephina percebeu que a imprensa era um meio poderoso para despertar as “consciencias adormecidas”, por isso almejou utilizá-la para romper um sono secular: “a escravidão da mulher” (Azevedo, 18/11/1888: 1).

"  Josephina de Azevedo criticou duramente os homens que defendiam a inferioridade feminina. Para ela, homens e mulheres eram semelhantes, apenas com algumas funções especiais de acordo com sua natureza sexual. Por isso, a mulher devia competir com o homem em tudo: no governo da família ou na direção do Estado. Para a redatora, as mulheres eram vítimas de um erro e, por isso, a elas era legado “um plano inferior nos destinos das nações” (Azevedo, 18/11/1888: 1).

De acordo com os argumentos da redatora, a sociedade se estruturava em dois princípios: o da força, dominado pelo homem; e o da ordem, dominado pela mulher. Partindo desse raciocínio, ela defendeu que a mulher era mais habilitada em dirigir os governos, pois o homem sempre foi a negação da ordem, e sociedade alguma se sustentava sem esse princípio.

Entretanto, ela lamentou ao lembrar que, no Brasil, o sexo feminino estava longe de conquistar o direito de administrar um país. Ela se mostrou indignada com o fato das brasileiras não terem, nem ao menos, o direito de adquirir seu sustento sem ser criticada pela socieda’de. Assim, concluiu que a sociedade brasileira cultivava a mais bárbara de todas as escravidões: a escravidão da mulher. Nesse momento, se referindo aos homens, ela se exaltou:

“Pensam que seremos melhores na qualidade detestavel de cousas do que na excepção justa e logica de pessoas; peiores sendo companheiras do que sendo escravas!” (Azevedo, 18/11/1888: 2)

         Josephina de Azevedo se lançou na imprensa com o intuito de lutar pela emancipação das mulheres, tendo a igualdade e a liberdade como princípios. Para tanto, seria necessário o aprimoramento da educação feminina, pois, para ela, a educação em sua época se resumia a

“ [...] saber mal o portuguez, a arithmetica, o francez, o canto e o desenho, e muito mal arrumar a casa”. (Azevedo, 18/11/1888: 2).

Logo nesse primeiro número, Josephina lançou uma ousada ideia em seu periódico: a educação da mulher não devia ser destinada unicamente a educar seus filhos, pois a mulher não era mãe todos os dias e, às vezes, não era nunca. A ousadia desse pensamento está no fato de Josephina considerar que a mulher tinha escolha de não ser mãe e, nem por isso, ela deveria se afastar dos estudos (Azevedo, 18/11/1888: 2).

Em geral, as mulheres da época, mesmo aquelas de concepções emancipadoras, como Francisca Senhorinha da Motta Diniz, Analia Franco e Julia Lopes de Almeida, não pensavam na possibilidade da mulher não exercer a maternidade; na cabeça daquelas mulheres, algumas das funções sociais mais relevantes do sexo feminino eram ser mãe e educadora da humanidade.

Josephina de Azevedo fechou seu artigo de abertura enfatizando que as mulheres deviam “estudar muito, banhar o espirito na luz da sciencia; mergulhar o pensamento na historia; fazel-o ressurgir no direito”. A redatora acreditava que o futuro seria favorável à causa da emancipação feminina. Para isso, ela clamava que findassem os preconceitos dos homens, pois os mesmos interferiam nas bases dos direitos das mulheres. Josephina almejava que a mulher brasileira se tornasse instruída e livre, por isso ela esclareceu que, para seguir em frente com sua luta, nunca deixaria de falar francamente tudo o que pensava (Azevedo, 18/11/1888: 2).

  Depois de conhecermos um pouco dos ideais de Josephina de Azevedo, expressos em seu editorial de abertura, podemos perceber o quão equivocada estava a redação do jornal O Seculo, ao afirmar que o periódico A Familia era “consagrado ao lar”. Provavelmente, a escolha deste título por Josephina foi uma estratégia no sentido de evitar repulsa dos mais conservadores e facilitar o acesso das mulheres ao seu jornal, sem contestação dos pais e maridos. A estratégia parece ter funcionado!

 Retomando as viagens, Josephina se dirigiu a Santos: “Uff! que calor!! E’ completamente alagada em suor, que lanço mão da penna, afim de fazer a descripção da minha rapida viagem a esta cidade.” Lugar que lhe deixou boas e más impressões. Em Santos, Josephina hospedou-se no Grande Hotel de França, local cuja cozinha lhe agradou, mas a bandeira francesa hasteada no centro do estabelecimento lhe pareceu falta de respeito ao Brasil – questionamento que começa a revelar seu forte patriotismo. Aproveitou a viagem para visitar o correio, a alfândega, o comércio, os jardins, o teatro e algumas escolas – cujos métodos de ensino para meninas era semelhante ao da capital, ou seja, “defficiente e acanhado”. Ela não deixaria de visitar os três órgãos da imprensa local, os quais mereceram elogios e também sua gratidão:

O acolhimento que a minha revista encontrou nesta cidade, foi mais que lisonjeiro, e veio mais uma vez provar que a sociedade santista é uma sociedade escolhida, composta de cavalheiros distinctissimos e amantes do progresso da terra em que nasceram ou em que vivem.

[...] A maneira honrosa e brilhante por que fui recebida pelos collegas de imprensa, é um estimulo que mais me obriga a prosseguir na santa causa da educação da mulher (Azevedo, 23/02/1889: 2).

Ao sair de Santos, Josephina seguiu em direção ao Rio de Janeiro, passando pela região norte da província de São Paulo, e aproveitou para visitar a redação do jornal Norte de São Paulo. Assim que chegou ao seu destino, hospedou-se na casa de pensão dos Srs. Teixeira de Macedo & Comp., estabelecidos na Rua do Areal, nº 8. Segundo Josephina, era uma bela casa, com acomodações excelentes. Assistiu representação de várias revistas e uma excelente comédia intitulada “Minha mulher não tem chic”. Depois de três dias na Corte, partiu para Petrópolis (Azevedo, 23/02/1889: 2).

Já no dia de sua chegada, foi recebida pelo Imperador que, depois de conversar sobre o falecimento do seu primo, o poeta Alvares de Azevedo, declarou-se protetor da sua revista e louvou-a pela missão a que se propôs. Josephina dirigiu-se ao palácio da Princesa Imperial, que lhe afirmou que protegeria A Familia com determinado número de assinaturas. Sua passagem por Petrópolis foi rápida, devido à falta de acomodações – os hotéis estavam cheios.

Mesmo assim, listou o nome das pessoas que pôde ver: Viscondessa do Cruzeiro, Maria Viard, Carolina Land, Augusta das Chagas Justiniana, Baronesa de Muritiba, Maria Duque Estrada, Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, Ministro do Chile, Conselheiro Nogueira Soares, Padre José Benedicto Moreira, A. Azara de Oliveira, Comendador Carlos de Aguiar, Urbano de Faria, Tabelião Moret, Professor José Lopes de Castro, M. M. de Araujo Castro, Manoel Gomes Coelho e João Guilherme Pinto de Souza. A redatora partiu de Petrópolis muito satisfeita e agradecida pela cordialidade de todos, principalmente do Imperador (Azevedo, 23/02/1889: 2).

Nesses primeiros passos de viajante, Josephina Alvares de Azevedo deixou registrado, no calor da hora, a boa acolhida de seu periódico, as boas relações que tinha e/ou estabeleceu e suas impressões ruins sobre o método de ensino utilizado para as meninas. Ao que parece, suas andanças por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo lhe deram ainda mais fôlego para continuar a viajar pelo Brasil e pelo mundo, com a meta de divulgar suas ideias e conhecer o sistema educacional oferecido às mulheres.

“Navegar é preciso”...

Cerca de seis meses depois das pequenas viagens terrestres, Josephina ampliou os horizontes, iniciando excursões mais longas, por vias marítimas, conforme mapa apresentado:

           Imagem 1: Representação das viagens marítimas de Josephina Alvares de Azevedo[3]

Legenda do mapa:

    Primeira viagem de Josephina Azevedo. Origem: Rio de Janeiro/ Destino: Bahia

    Segunda viagem de Josephina. Origem: Bahia/ Destino: Recife (PE)  

  Terceira viagem. Origem: Recife (PE)/ Destino: Ceará

    Quarta viagem. Origem: Ceará/ Destino: Pará

  Retorno de Josephina Azevedo ao Rio de Janeiro[4]

 

 

Assim que a redatora regressou ao Rio de Janeiro, criou a seção “Carnet de voyage”, no periódico A Familia, para compartilhar com leitoras e leitores suas experiências pelo Brasil afora. Interessante observar que publicizar os relatos não era prática recorrente entre as mulheres viajantes. Segundo Miriam Lifchitz Moreira Leite, os relatos das viajantes geralmente eram escritos em forma de correspondência aos familiares e amigos ou em formato de diários. Portanto, grande parte deles “não tinha a intenção de ser publicado.” (Leite, 2000: 133)

Entretanto, no caso da redatora do jornal A Familia, seu objetivo era divulgar suas impressões e críticas de cada lugar que passou. Nas palavras da redatora:

"De volta de minha excursão pelas províncias do norte, começo hoje a dar, em breves traços, conta das impressões recebidas no periodo d’essa viagem, o que constitue para mim a maior satisfação, por poder dar um publico testemunho de quanto vi, de quanto entusiasmo minh’alma foi presa, diante do espectaculo da grandiosidade das regiões percorridas, do progresso e da actividade dos povos que visitei, da hospitalidade, lhaneza e sympathia das pessoas que tanto me obsequiaram." (Azevedo, 30/11/1889: 2)

Esse trecho de Josephina nos trouxe algumas reflexões importantes sobre o ato de relatar viagens. Segundo Stella Maris Scatena Franco, durante o século XIX, produzir relatos de viagens não era tarefa fácil, ia muito além de “simplesmente ‘ver’ e ‘narrar’ o observado”. A autora enfatiza que tal empreendimento

“[...]demandava um projeto, uma intenção e, além disso, um conhecimento mínimo das regras e padrões a serem seguidos, convenções já instituídas a serem respeitadas.” (Franco, 2008: 100).

Era preciso disponibilidade de tempo para se deslocar e também para se inteirar dos escritos de outros viajantes que porventura já haviam visitado o local a ser observado .

No caso da personagem em análise, pudemos perceber que a mesma, de fato, planejou seu trajeto, sua empreitada tinha objetivos bem específicos, porém, em seus relatos não se preocupou em seguir à risca os padrões convencionais dos viajantes oitocentistas. Será que Josephina não se considerava uma viajante, por isso ignorou as regras? Ou a questão ia além desta identificação?

Acreditamos que a questão era mais complexa e estava relacionada com o próprio modo de se compreender no mundo. A construção da escrita de Josephina era mais leve, independente, mais envolvida pela emoção do que pelos padrões. Não era a primeira atitude da jornalista que fugia às convenções: o próprio fato de criar um jornal – principalmente de caráter feminista – naquele contexto patriarcal; de viajar sozinha; de expor seu ponto de vista; de criticar o sistema vigente; tudo isto era fora do convencional, o que não foi diferente na construção dos seus relatos enquanto viajante pelo território brasileiro, fato que revela coerência entre seus escritos e suas ações.

Versando sobre esta questão, Miriam Moreira Leite afirma que Alexandre Humbold foi o grande inspirador dos padrões estabelecidos para os relatos de viagens do século XIX, elencando itens elementares de observação, os quais eram: as plantas, os animais, os minerais, os homens, os costumes e as línguas (Leite, 2000: 133).

Ao chegar à Bahia, primeira parada de Josephina, a jornalista exaltou a beleza natural daquela terra, descrevendo-a minuciosamente e concluindo:

“E’ indizível o que a perspectiva da natureza ahi accumula aos olhos observadores de quem tem a ventura de deslumbrar-se ante tão mágicos paineis. Dir-se-hia que é um Eden [...]” (Azevedo, 30/11/1889: 2).

 Ela ficou encantada com a vista do terraço do Passeio Público, que ficava ao lado do Forte de S. Pedro. Fez questão de explicar detalhadamente para suas leitoras e leitores, a divisão de Salvador em Cidade Alta e Cidade Baixa. Na Cidade Alta, ela observou os belos monumentos históricos, edifícios públicos e particulares, os importantes hotéis, casas nobres, igrejas e praças; já na Cidade Baixa, viu o mar, o comércio, o correio e parte da imprensa.

Esclareceu que o acesso entre as “Cidades” era feito por um elevador hidráulico, que tinha 100 metros de altura e era cavado em uma rocha enorme. A visitante hospedou-se na Cidade Alta, mais precisamente, no Hotel Pariz, um dos melhores que já tinha se hospedado. Ressaltou que aquela terra, em valor histórico, deveria ser

“[..]a cidade mais rica em documentos monumentaes de sua passada grandeza e do valor dos seus denodados povoadores” (Azevedo, 30/11/1889: 2).

Ainda em relação à Bahia, Josephina relatou que seu povo era muito afável e possuía instrução adiantada. Lembrou que aquela era a terra de grandes estadistas, como Zacarias, Cotegipe, Ruy Barboza e Saraiva. Ressaltou a existência da Academia de Medicina e do Lyceu de Artes e Officios. Josephina visitou o Collegio Nossa Senhora da Glória, dirigido por D. Maria Augusta de Azambuja, e o Collegio União, dirigido por D. Vitalina Alvares dos Santos.

Nas palavras da redatora:

“São dous dos melhores estabelecimentos de educação que conheço, guiado pelos melhores methodos de instrucção e servidos por professoras intelligentissimas” (Azevedo, 30/11/1889: 2).

Josephina também teve o privilégio de conhecer a Biblioteca Pública, que lhe pareceu muito organizada, e como não podia deixar de ser, visitou órgãos como Gazeta da Bahia, Jornal de Notícias, Diário da Bahia, Diário de Notícias e Jornal do Commercio. Josephina partiu da Bahia levando consigo ótimas impressões, tanto que afirmou que em breve retornaria àquele lugar.

Como podemos observar pela análise deste primeiro relato de viagem, Josephina de Azevedo descreve alguns itens que constam nos clássicos relatos de viajantes oitocentistas, como a natureza, os homens e costumes, porém amplia seu olhar, analisando detidamente as instituições políticas e educacionais, retomando sua história, além de se preocupar com o dia-a-dia das pessoas, analisando o funcionamento do comércio, correios, biblioteca, imprensa e a organização espacial do lugar.

Apesar do respeito ao padrão de escrita de relatos na época, Miriam Moreira Leite argumenta que os relatos de mulheres tinham suas peculiaridades, pois elas tinham muita habilidade para observar, indo além dos aspectos pessoais e políticos, dedicando bastante atenção ao cotidiano (Leite, 2000: 132), fator que aproxima Josephina de Azevedo das demais viajantes do gênero feminino.

Da Bahia, Josephina seguiu para o Recife, no paquete inglês Tamar (Diario de Noticias in A Familia, 14/11/1889: 8). Neste relato, a redatora nos revelou sua naturalidade: “Continuando minha excursão para o norte, coube-me a ventura de tocar em minha terra natal: Pernambuco!” (Azevedo, 7/12/1889: 1). Josephina transmitiu muito carinho ao escrever sobre sua terra, lembrou-se de sua meninice e ficou claramente emocionada:

"Para mim não é só Pernambuco a Veneza do Norte, é também o berço encantado em que embalaram-me os sonhos irisados da meninice [...] Oh! Minha terra adorada![...] Apertava-se-me o seio de saudade; a alma doudejava de alegria, d’essa agri-doce ventura, que se não sente muito tempo, que se não descreve nunca, por que essa inexplicável sensação que se experimenta, apóz longa ausência, ao voltar á terra natal, não se descreve, não se comprehende, não se define, porque não está ao alcance da linguagem humana, exprimir aquillo que tem a sua causa secreta nos mysterios impenetraveis da natureza, e que resume n’esse poema de praser, de tristeza, de ventura e de saudade, synthetisado n’esta expressão tão vaga – o sentimento! (Azevedo, 7/12/1889: 1-2)

 Como o paquete que Josephina viajou não chegava até a terra, foi preciso usar um bote para que ela colocasse os pés em sua terra natal. Parece que a aventura valeu a pena, afinal lemos muitos elogios ao Recife, aos seus monumentos, prédios, ruas, praças e jardins. A redatora relatou que foi muito bem recebida e pôde visitar muitos lugares, como a Assembleia Provincial, o Arsenal da Marinha, o Quartel do 14º Batalhão de Infantaria, o Esquadrão de Cavalaria, o Corpo de Bombeiros, o Quartel General, o Palácio da Presidência, o Consulado Português, a Alfândega e a Estrada de Ferro de Caruaru. Ela ficou muito satisfeita por ganhar de presente um retrato seu – feito por Libanio do Amaral –, o qual foi veiculado na capa do jornal A Família, número especial, publicado em Pernambuco. Tal edição contou com mais ilustrações de Libanio do Amaral, as quais representaram as pontes de Santa Izabel e a de D. Pedro II (Azevedo, 7/12/1889: 2).

Imagem 2: Capa no Número Especial do jornal A Familia, publicado em Pernambuco.

Josephina de Azevedo ficou vinte dias em terras pernambucanas e achou pouco, afinal, havia doze anos que a pernambucana não via sua terra natal (Diario de Pernambuco in A Familia, 1889: 7). Durante esta temporada, a jornalista visitou as redações do Jornal do Recife, Diário de Pernambuco, Gazeta da Tarde, Provincia, Norte e Diário de Noticias. Ao menos em algumas dessas visitas, ela estava acompanhada de Maria Amélia Queiroz, quem lhe hospedou em sua residência por alguns dias. A poetisa era conterrânea de Josephina de Azevedo e participante ativa do Clube do Cupim – associação abolicionista sediada em Recife. Maria Amélia, junto a outras companheiras, fundou, em 1884, a associação feminina Ave Libertas, a qual reivindicava a libertação dos escravos na província de Pernambuco. A abolicionista proferiu várias palestras sobre o tema, tornando-se “uma das mulheres-símbolo da participação feminina na campanha pelo fim da escravidão no Brasil.” (Schumaher e Brazil, 2000: 362-363)

Além de conhecer os colegas de imprensa, Josephina deixou nas redações uma coletânea com 25 números de seu periódico (Norte in Familia, 1889: 6-7). A jornalista ficou muito grata pelo acolhimento de seus conterrâneos, o que a entusiasmou a seguir navegando. Daquela vez, seguiu no vapor Pernambuco com destino ao Ceará (Azevedo, 1889: 2).    No dia 14 de dezembro de 1889, Josephina publicou no “Carnet de Voyage” suas impressões sobre o Ceará. Ela fez uma descrição poética do lugar, relatando as belezas naturais, a generosidade e simplicidade daquele povo. Ressaltou com orgulho que foi “nas suas selvas que primeiro o gemido doloroso do escravo transformou-se no hymno festivo do cidadão.” – revelando (ou construindo?) sua faceta abolicionista, a qual foi sendo fortalecida ao longo das páginas d’A Familia durante seu período de vigência.

  Este processo de subjetivação observado em Josephina de Azevedo nos levou a pensar sobre as experiências de outras mulheres viajantes, analisadas por Mary Louise Pratt, no Brasil e no Peru. Segundo a autora, eram marcantes nos relatos de mulheres a expressão do mundo feminino e das subjetividades:

"O fato previsível de que a ambientação doméstica tem uma presença muito mais proeminente nos relatos de viagens de mulheres do que nos de homens (onde é necessário procurar muito mais para se encontrar ao menos uma descrição do interior de uma casa) é uma questão não apenas de diferentes esferas de interesse ou especialização, mas de modos de constituir o conhecimento e a subjetividade. Se a tarefa dos homens era a de compor e possuir tudo o que os circundava, estas mulheres viajantes procuravam, antes de mais nada, compor e possuir a si mesmas. Sua reivindicação territorial recaía sobre um espaço privado, um império pessoal, do tamanho de um quarto" (Pratt in Franco, 2008: 25).

Comparando tais experiências com os relatos de Josephina, podemos perceber que a construção da subjetividade da jornalista estava muito mais atrelada ao espaço público do que ao espaço privado, sua percepção do “eu” rompeu as paredes dos quartos e atingiu as ruas. Josephina se construiu enquanto mulher emancipada, professora, jornalista, artista...cidadã! Portanto, seus relatos revelaram uma mulher que se preocupava com espaços externos, tais como: a natureza, os edifícios, as instituições políticas, a imprensa, as escolas e as condições civis do povo. No ato de relatar suas observações e críticas, Josephina refletia e se construía, colocando em pauta questões que fariam parte da sua vida e de seus ideais, tais como: a abolição, a emancipação feminina, o nacionalismo, a educação de qualidade, as boas condições de vida para o povo, a liberdade de se expressar, a inserção das mulheres no mercado de trabalho e nos debates nacionais.

As reflexões da filósofa contemporânea Rosi Braidotti são pertinentes para pensarmos o processo de construção da subjetividade de Josephina de Azevedo no campo da linguagem. A autora defende que a linguagem é o lugar da construção do sujeito, além de ser o capital simbólico de nossa cultura.

 Nas palavras de Braidotti:

[...] la constitución del sujeto no es uma cuestión de ‘internalización’ de códigos dados, sino más bien un processo de negociación entre estratos, sedimentaciones, registros del habla estructuras de enunciación. El deseo es productivo porque continúa fluyendo, se mantiene en movimento, pero su productividad también implica relaciones de poder, transiciones entre registros contradictorios, desplazamientos del énfasis. (Braidotti, 2000: 45-46)

Tendo isso em vista, um dos grandes questionamentos de Braidotti são as identidades estáveis.  A autora utiliza a concepção de Sujeito Nômade não para pensar numa mudança física ou no ato literal de viajar; o nomadismo, para Braidotti, é uma

“[..] conciencia crítica que se resiste a estabelecer en los modos socialmente codificados de pensamiento y conduta” (Braidotti, 2000).

  Tal concepção articula-se bem com os propósitos de Josephina de Azevedo, que em suas obras – seja nos artigos de jornal, nos relatos de viagem ou na peça teatral – recusou a se encaixar nas normas hegemônicas de poder, lançando mão do seu grande artifício de subversão da ordem: a palavra escrita! Para além do texto, Zefa – como a jornalista assinava algumas obras – rompeu com as imposições sociais também com suas atitudes: viajando, explorando novas regiões, estabelecendo contatos com parceiros de imprensa e de ensino.

Depois de tais reflexões, vale perguntar: o que seria um sujeito nômade – um poliglota, um migrante, um exilado...? Para Braidotti, o nômade não representa a falta de um lar, nem a necessidade de um deslocamento compulsivo. Para a autora, o sujeito nômade é caracterizado pela renúncia de “toda idea, deseo o nostalgia de lo estabelecido”.

Desta forma, o nômade almeja uma identidade repleta de transições, de deslocamentos e câmbios, rejeitando toda forma de unidade essencial. Diante desse panorama, a autora esclarece que ser nômade, viver em transição, não significa que o sujeito não tenha bases estáveis em sua identidade que permitam a identificação num determinado grupo.

Para Braidotti,

“ [..] la conciencia nómade es una forma de resistência política a las visiones hegemónicas y excluyentes de la subjetividad”.  Além de resistência política, Braidotti defende que a consciência nômade é também uma posição epistemológica, ou seja, uma maneira de compreender o mundo e construir conhecimento, de uma forma bem peculiar (Braidotti, 2000).

Ao aproximar o “Sujeito Nômade” teorizado/vivenciado por Braidotti da Josephina de Azevedo que se revelou nas páginas do jornal A Familia, podemos afirmar que a mesma apresentou sua faceta estável no elemento “mulheres”, ou seja, na identificação com tais grupos sociais, com o intuito de falar em nome delas e com elas, na defesa por melhoria de suas condições de vida. Já seus movimentos iam além do deslocamento físico, os mesmos se revelavam nas experiências vivenciadas dia-a-dia, nas elaborações de seus projetos de emancipação, nas suas estratégias de fuga do sistema patriarcal e na compreensão/construção constante do seu próprio “ser”, ou melhor, “sendo”.

         Recuperando os passos de Josephina de Azevedo, voltemos aos relatos referentes às terras cearenses. A redatora sentiu muito prazer ao percorrer aquele território e ficou encantada com a beleza da cidade. Destacou a modernidade dos edifícios e criticou a estrutura da alfândega, que não condizia com o porte da cidade. Josephina conheceu o Passeio Público, o edifício da Estrada de Ferro de Baturité, a Escola Superior de Estudos Militares e a Assembleia Provincial.

A redatora elogiou a dita escola que, segundo ela, era “estabelecimento de instrucção digno de todos os encomios”. Apesar de ressaltar os aspectos positivos do Ceará, a jornalista não fechou os olhos para as mazelas que afetavam a população, criticando a organização dos serviços de atendimento médico da rede pública (Azevedo, 14/12/1889: 2).

Zefa ficou honrada com a recepção que teve na Assembleia, acompanhada do colega de imprensa João Lopes. Teve a oportunidade de visitar as seguintes redações no Ceará: Fortaleza, D. Pedro II, Gazeta da Tarde e Libertador. Não sabemos ao certo quantos dias a redatora permaneceu no Ceará, mas ela afirmou que ficou pouco tempo por lá; mesmo assim, foi tempo suficiente para perceber a garra daquele povo que lutava contra a seca, contra a fome e a miséria, e que, apesar das dificuldades, não deixava de ser generoso com os visitantes. Tal panorama de dificuldades causou comoção e serviu de aprendizado para Josephina:

“Felizmente, o cearense è forte, resignado e heroico, o que lhe dá força para supportar crises que teriam aniquilado outro que não fosse esse povo. Por isso a impressão que nos deixam aquele povo e aquellas plagas nos edificam de modo que á legitima espansão de enthusiasmo de que se deixa dominar a alma do que alli chega succede a mais profunda expressão de saudade do que d’alli parte.” (Azevedo, 14/12/1889: 2)

Após as andanças pelo Ceará, Josephina se dirigiu para o último trecho onde navegar foi preciso: Belém (PA). A viajante chegou às terras do Norte no início do mês de julho de 1889, a bordo do Alagoas (Commercio do Pará in A Familia, 19/10/1889: 8). As primeiras impressões relatadas por Josephina foram a beleza do encontro do rio Amazonas com o mar, a riqueza natural daquelas terras e a prosperidade econômica advinda do comércio: “O Pará é um prodigio e uma riquesa.” (Azevedo, 21/12/1889: 6).

A redatora afirmou que, em geral, o povo paraense era hospitaleiro e que, por lá, a imprensa era desenvolvida. Na ocasião, visitou as redações dos jornais Commercio do Pará, Gram-Pará, Diario de Notícias, Diario de Belém, Provincia do Pará e Tribuna do Povo.

Apesar de todo o entusiasmo, Josephina de Azevedo não podia deixar de lembrar que o Sr. Paulino de Brito – jornalista que criticou duramente as propostas do A Familia[5] – era paraense, mas isso não impediu que a redatora tivesse uma boa imagem da imprensa e do povo do Pará, pois, segundo ela, as ideias de Brito foram contestadas na própria província e essa oposição deu mais relevo à propaganda de seu periódico. Apesar da curta estadia na região, Josephina visitou alguns estabelecimentos de educação, “nottando que alli não se descuidam da educação popular tão indispensavel ao progresso dos povos.” O Collegio Americano foi um dos que mais lhe chamou a atenção (Azevedo, 21/12/1889: 6). Ao conhecer esta região ao norte do país, Josephina concluiu: “Necessariamente em um lugar como esse não podia deixar de ser excellente a impressão que me ficou.”(idem) Josephina retornou ao Rio de Janeiro, no vapor nacional Pernambuco.

No dia 3 de outubro de 1889, Josephina de Azevedo já havia retornado à Corte e reassumido os trabalhos na redação do jornal A Familia. Apesar da seção “Carnet de Voyage” ter findado com o relato de sua última parada nas terras do Norte – Pará –, a redatora não parou de fazer viagens com o intuito de conhecer o sistema educacional brasileiro de perto e continuar divulgando seu trabalho.

Josephina relatou que fez uma curta excursão pelo estado de São Paulo e teve o prazer de visitar o colégio dirigido por D. Carolina Florense, em Jundiaí. Ela afirmou que o governo não era tão atencioso em relação às escolas, por isso não era fácil encontrar bons estabelecimentos de ensino, seja público ou particular. Entretanto, o colégio visitado mereceu todos os elogios da redatora. Para Josephina, o estabelecimento de Jundiaí era

“[...] sem dúvida uma formosa excepção do que geralmente se vê. D. Carolina é uma senhora de espirito forte, soberanamente preparado, e uma educadora, que honra ás mais distinctas que possuímos.” (Azevedo, 13/02/1890: 7)

Nessa viagem, Josephina de Azevedo se hospedou no Grande Hotel Paulista, no qual foi muito bem recebida e, por isso, mereceu seus sinceros elogios. Ela também visitou o Gymnasio Infantil, fundado em Jundiaí por Faria Tavares. Depois de conhecer o estabelecimento, Josephina registrou suas impressões:

“Na rapida visita que fiz ao estabelecimento, fiquei completamente maravilhada. As condições hygienicas do edifício, o local em que se acha collocado, a boa ordem administrativa, são excellentes; o methodo de ensino, a distribuição das materias, a boa escolha do pessoal docente, tudo inspira a mais profunda segurança de melhor exito para a educação dos matriculandos.” (Azevedo, 20/02/1890: 6-7)

Essa viagem por São Paulo inspirou a redatora a publicar um artigo criticando as “formalidades banaes” adotadas pelo governo paulista no exercício dos professores. Segundo Josephina de Azevedo, os professores faziam provas para serem admitidos; mesmo assim, o governo oferecia privilégios àqueles formados nas Escolas Normais.

A redatora criticou esse processo desigual, que pagava mais e oferecia melhores condições de trabalho aos profissionais que vinham de determinados estabelecimentos. Nas palavras de Josephina: “o que requer principalmente no magisterio é habilitação, indole e moralidade; e a preferencia neste caso deve provir dessas qualidades e nunca da escola ou do instituto de que o professorado provenha” (Azevedo, 16/03/1890: 1). Josephina esteve com várias professoras de São Paulo e todas fizeram as mesmas queixas ao formalismo. A redatora ficou espantada com o fato de um estado tão desenvolvido como São Paulo agir daquela forma para com o professorado. Ainda nessa viagem a São Paulo, Josephina visitou as redações dos jornais Diário de Campinas, Diário da Manhã (Santos) e Correio Amparense.

Mais de um ano depois da última viagem de divulgação, Josephina de Azevedo, acompanhada de José de Araujo Couto – diretor gerente do jornal A Familia –, seguiram com destino a São Paulo e Minas Gerais, para intensificar a propaganda do periódico (A Familia, 16/11/1891: 2). Aos 3 de fevereiro de 1892, Josephina anunciou seu regresso da viagem e agradeceu àqueles que a acolheram em seus lares e, de forma geral, aos estados de Minas Gerais e São Paulo pela receptividade (Azevedo, 03/02/1892: 1).

Por fim, Josephina de Azevedo fez a sua última viagem, que tivemos notícia, de divulgação do jornal A Familia. Dessa vez, ela percorreu o Oeste mineiro e ficou maravilhada com o acolhimento daquele povo. (A Familia, 06/01/1894: 6)

Até onde sabemos, a redatora não conseguiu fazer todas as excursões que almejava, mesmo assim sua experiência dentro do Brasil foi de grande valia. Com todas essas viagens e relatos, pudemos perceber o quão empenhada Josephina Alvares de Azevedo era com a causa que defendia. A redatora não poupou forças e recursos para fazer seu jornal circular com êxito entre os anos de 1888 e 1894.

 

Considerações finais

Percorrer as páginas do jornal A Familia é conhecer um pouco da complexa figura de Josephina Alvares de Azevedo, ou de Josephina de Azevedo, ou de Josephina, ou ainda de Zefa...elas são muitas! Essa mulher se autodenominou jornalista, professora, mulher emancipada, escritora, mas não viajante. Apesar da ausência do termo, criou uma seção para registrar parte dos seus relatos que intitulou “Carnet de Voyage”. Por que então a resistência em se identificar enquanto viajante? O que a inibiu seria o fato de não ter ultrapassado as fronteiras nacionais? Seria o desejo de criar sua própria forma de escrita, sem se enquadrar nos padrões dos clássicos relatos?

Não temos respostas para as questões acima, mas sabemos que seus relatos nos revelou uma instigante viajante interna. Josephina não tinha um método pronto para produzir seus relatos. Seus primeiros caminhos terrestres foram relatados no calor da hora; já os trajetos mais distantes, feitos por via marítima, foram escritos após seu retorno ao Rio de Janeiro – só não sabemos se ela fazia curtas anotações numa espécie de rascunho para “refrescar” a memória. Portanto, nos deparamos com tipos de relatos distintos, produzidos por Josephina: alguns mais minuciosos, feitos com a emoção do momento e sentindo o lugar explorado; já outros, através da resignificação da memória, com uma visão global da viagem, que havia sido concluída.

Essa figura interessante que foi Zefa nos fez refletir sobre a epígrafe utilizada neste artigo: “A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.” Inspirando-nos em Fernando Pessoa, consideramos que Josephina Alvares de Azevedo fez de sua vida uma aventura sem tamanho, se entregando de corpo e alma às causas que defendia, sem medir as consequências de seus atos.

Abriu precedentes para ser criticada pela sociedade, mas também para ser admirada, seguida e registrada na história. Seus relatos enquanto viajante, muito mais do que nos apresentar Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Ceará e Pará, nos mostrou um pouco mais da mulher que se apresentava impressa nas páginas d’A Familia. Seu olhar sobre os novos e/ou já conhecidos horizontes levou-a a se construir constantemente, se conhecendo mais e se reinventando a cada novo passo. Por tudo isso, argumentamos que Josephina foi uma viajante interna por dois motivos: primeiramente, pelo fato de ter percorrido apenas as veredas nacionais; mas, principalmente, pelo fato de, durante todo esse processo, ter viajado também no interior de si mesma, se fazendo e se revelando para nós todos, suas leitoras e leitores.

Referências

1889. A Familia, n. 8 (jan), pp. 1.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1888. “S. Paulo, 18 de Novembro de 1888”. A Familia, n. 1 (nov), pp. 1-2.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1889. “Bahia”. A Familia, n. 40 (nov), pp. 2.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1889. “Ceará”. A Familia, n. 42 (dez), pp. 2.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1889. “De S. Paulo a Santos”. A Familia, n. 13 (fev), pp. 2.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1889. “Pará”. A Familia, n. 43 (dez), pp. 6.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1889. “Pernambuco”. A Familia, n. 41 (dez), pp. 1-2.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1890. “D. Carolina Florence”. A Familia, n. 48 (fev), pp. 7.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1890. “Gymnasio Infantil”. A Familia, n. 49 (fev), pp. 6-7.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1890. “Professorado publico”. A Familia, n. 52 (mar), pp. 1.

Azevedo, Josephina Alvares de. 1892. “De regresso”. A Familia, n. 131 (fev), pp. 1.

Diario de Noticias. 1889. “Josephina de Azevedo”. A Familia, n. 38 (nov), pp. 8.

Diario de Pernambuco. 1889. “Josephina de Azevedo”. A Familia, nº Especial, pp. 7.

Commercio do Pará. 1889. “Josephina de Azevedo”. A Familia, nº 33, pp. 8.

Norte. 1889. “Josephina de Azevedo”. A Familia, n. Especial, pp. 6-7.

O Seculo. 1889. “Vizita”. A Familia, n. 23 (mai), pp. 8.

Sem autor. 1891. A Familia, n. 123 (nov), pp. 2.

Sem autor. 1894. “Josephina de Azevedo”. A Familia, n. 166 (jan), pp. 6.

Valle, Perpetua do. 1891. “Josephina Alvares de Azevedo”. A Familia, n. 103 (mai), pp. 2.

Bibliografia

Bernardes, Maria Thereza Caiuby Crescenti. 1988. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: T.A. Queiroz.

Black, Augusto Victorino Alves Sacramento. 1970. Diccionario Bibliographico Brasileiro. Vol. 5. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura.

Braidotti, Rosi. 2000. Sujeitos nômades: corporización y diferencia sexual en la teoría feminista contemporânea. Buenos Aires: Editorial Paidós SAICF.

Duarte, Constância Lima. 1999. Josefina Alvares de Azevedo: uma escritora militante. In: Auad, Sylvia Maria von Atzingen Venturoli (org.). Mulher: Cinco séculos de desenvolvimento na América. Belo Horizonte: Federação Internacional de Mulheres da Carreira Jurídica, CREZ/MG, Centro Universitário Newton Paiva, IA/MG.

Duarte, Constância Lima Duarte. 2016. Imprensa Feminina e feminista no Brasil: século XIX – Dicionário Ilustrado. Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Franco, Stella Maris Scatena. 2008. Peregrinas de Outrora: viajantes latino-americanas no século XIX. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC.

Leite, Miriam Lifchitz Moreira. 2000. “Mulheres viajantes do século XIX”. Cadernos Pagu, 15, pp. 129-143.

Pessoa, Fernando. 1986. Livro do desassossego por Bernardo Soares. 2ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, p. 286.

Schuma, Schumaher; Brazil, Érico Vital (Orgs.). 2000. Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Souto, Bárbara Figueiredo. 2013. “Senhoras do seu destino”: Francisca Senhorinha da Motta Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de emancipação feminista na imprensa brasileira (1873-1894). Dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo.

Souto-Maior, Valéria Andrade. 2000. Josefina Álvares de Azevedo. In: Muzart, Zahidé Lupinacci (Org.). 2000. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC.

Souto-Maior, Valéria Andrade. 2001. O florete e a máscara. Florianópolis: Ed. Mulheres.

Nota biográfica:

Bárbara Figueiredo Souto é doutoranda em História e Culturas Políticas, na Universidade Federal de Minas Gerais, na qual vem desenvolvendo pesquisa comparativa entre os projetos de emancipação feminina na imprensa feminista do século XIX, no Rio de Janeiro e Buenos Aires. Em 2013, defendeu a dissertação “Senhoras do seu destino”: Francisca Senhorinha da Motta Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de emancipação feminista na imprensa brasileira (1873-1894), na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora efetiva do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).


 

[1] Manteremos os nomes próprios e trechos de fontes na grafia original da época.

[2] Segundo Constância Lima Duarte e Valéria Andrade Souto-Maior, o jornal teria circulado até 1897, entretanto, não encontramos tais números para análise. (Duarte, 1999: 340); (Souto-Maior, 2000: 484)

[3] Montagem feita com base na leitura do jornal A Familia. Usamos recorte do mapa do Brasil produzido por Debret e publicado em 1834. O mapa original está disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/624510002. Acessado em 10 de abril de 2013.

[4] Representamos as trajetórias das viagens de Josephina Alvares de Azevedo por via marítima. Entretanto, devemos alertar ao leitor que a representação da partida da redatora até sua chegada à Bahia foi traçada por dedução, já que a fonte não nos revelou se Josephina fez sua viagem por terra ou por mar. Já os outros traçados, apesar de não serem fiéis em se tratando de escalas geográficas, simbolizam sua rota tal como a fonte nos revelou; ou seja, todas as outras foram por via marítima.

[5] Para se inteirar da polêmica, ver: (Souto, 2013: 126-127)

 

 

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janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016