labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

Contracosturas I.

Carla Cristina Garcia

 

Resumo:

Inspirado pelas zonas de experimentação da arte feminista dos anos 70, este artigo busca refletir sobre a obra de algumas artistas à luz de questionamentos levantados por Virginia Woolf sobre a imaginação criadora da mulher. Para tanto, nosso percurso cumpre três paragens que também são três respostas provisórias. Em um primeiro momento, analisamos as implicações do assassinato da figuração do anjo do lar, para quem as linhas de costura mais representavam forcas, quanto ao advento de novas imagens para pensar a criatividade da mulher. Em um segundo momento, trazemos os sentidos de Woolf de “um teto todo seu” para a fundamentação de outras possibilidades de vida e subjetividade da mulher. Por fim, no terceiro momento, falamos das possibilidades de experimentação de novos nós e fios para uma ressignificação da trama privada e cotidiana a partir das obras de Judy Chicago e Miriam Schapiro.

Palavras-chave: experimentação, arte feminista, imaginação criadora

 

 

Questão:

            O que é uma mulher? Eu lhes asseguro, eu não sei. Não acredito que vocês saibam. Não acredito que alguém possa saber até que ela tenha se expressado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana. (Woolf, 1985:120) 

Quando convidaram Virginia Woolf a proferir uma palestra na Women’s Service League[1] lhe sugeriram que falasse sobre sua própria experiência como escritora e as dificuldades que as mulheres enfrentam nessa profissão. Como era de se esperar, ela fez muito mais do que um catálogo de problemas sociológicos. Nesta pequena conferencia, Woolf fala sobre as condições e obstáculos que uma mulher enfrenta quando elege a escrita como profissão e, como criadora, como deixar correr a mão sobre o papel: o que dizer, como dizer e como dizer com liberdade.  Em menos de cinco páginas, resume a atitude diante da criação e coloca as questões acima, em primeiro lugar, o que é uma mulher? Como saber o que é? Como ela pode conseguir se expressar?

 

Resposta 1: Matar o anjo

A escrita como profissão, ou vocação, a criação em qualquer âmbito exige que as mulheres se expressem. Não é pouco, bem ao contrário, e não só para as mulheres daquela época, do início do século XX. No entanto, Woolf acrescenta que para começar a escrever, ou a se expressar em qualquer arte ou profissão, além de todas estas condições é preciso matar o Anjo do Lar. Ou seja, a criação e expressão como escolha de vida para as mulheres, sublinha com serena e complexa precisão, é um ato de morte da ordem estabelecida seguido de um ato de liberdade extrema no curso da consciência.  Matar o Anjo do Lar.

Woolf se refere ao Anjo do poema de Coventry Patmore, muito popular então, no qual o poeta faz o elogio da perfeita esposa vitoriana.[2] (Springer, 1978:130-131). A esposa perfeita era uma espécie de lubrificante da realidade, uma mescla de anjo e duende, malicioso, se fosse o caso, que se encarregava de limar arestas, engraxar engrenagens para que não chiassem, moderar as desavenças, apaziguar desencontros e facilitar o curso dos acontecimentos previstos. O Anjo do Lar custodiava uma ordem não elegida e inquestionável, e o fazia guiado por uma bússola de renúncia e abnegação.

Nesta pequena conferência, Woolf confessou que, se bem acreditava ter resolvido o problema do anjo do lar matando-o, não havia conseguido resolver o conflito da liberdade de escrever sobre suas experiências, ou seja, não se sentia livre como os homens para se entregar ao ato da criação em termos de imaginação e transe. As mulheres podiam sim reclamar seu quarto, sua remuneração pelo trabalho, reclamar seu desejo de não serem conciliadoras perpétuas do irreconciliável, mas o exercício da imaginação para criar a obra de arte ainda estava longe.

A descrição é simples e transparente: a mulher que não sabe no que consiste ser uma mulher, e que não acredita que alguém saiba, escreveu um texto, enviou para um editor em um lindo envelope, recebeu por seu trabalho e com o dinheiro comprou um gato persa: algo tão inútil quanto belo e necessário. Este foi seu primeiro ato como escritora profissional: comprar um gato persa. Escrevendo em um quarto seu e comprando um gato persa, Woolf matou o anjo do lar. Além disso, incluiu a firme decisão de não contentar a todo mundo, e a necessidade de comer bem como itens indispensáveis ao ato de matar o Anjo do Lar.

Ambiciosa, a escritora quer algo mais do que ser uma profissional da escrita, ela quer ser livre para criar, quer levantar a mão, apertá-la contra a pena e, uma vez atirado o tinteiro no anjo como quem lança uma pedra em um rio, quer algo mais. O ato de assassinar o anjo é uma experiência laboral, social e agora ela quer a experiência de criação, de imaginação. Mas isto não é possível porque quando imagina uma mulher escrevendo, horas a fio, percebe que ela acabaria encontrando empecilhos, um fundo rochoso, ao querer falar do corpo e das paixões, pois se dava conta que não seria apropriado a uma mulher falar sobre esses temas. A sociedade ficaria chocada, os homens fariam comentários desrespeitosos, atingiria então uma barreira intransponível. Woolf acreditava que serem inibidas pelo extremo convencionalismo do outro sexo era uma experiência comum para as escritoras, sempre condenadas quando avançavam nesse campo ((Woolf, 1985:120).     

Para Woolf o ato de criação implica conseguir entrar no desconhecido de si mesma e do mundo. Sabe que deve deixar ir as preocupações que possam suscitar as exigências sociais do ser mulher para poder mergulhar no desconhecido. E, adverte, é mais fácil matar o anjo do que não ser afetada pelo olhar do outro. E a questão que fica é: como enfrentar a criação sem confundir asas com pedras? Nem a profissão com a criação?

Woolf não oferece soluções, coloca o dedo na ferida, nomeia com lucidez – não isenta de consternação – as dificuldades a enfrentar. Ela expôs na breve conferência suas conquistas, derrotas, fantasmas, os anzóis necessários para a criação e os que precisam ser descartados como a sedução da complacência por exemplo. Woolf se movia entre as bibliotecas conquistadas, as por conquistar e os gatos persas.

 

Resposta 2: O quarto próprio e a própria renda

A questão de um espaço próprio é central para que as mulheres possam se expressar, é um requisito que não pode ser contornado. Procurou maneiras de narrar não um mundo feminino, mas o espaço para a criação artística das mulheres. E sobre esse tema escreveu um livro, Um Teto Todo Seu (1929), hoje um texto clássico, best seller quando de seu lançamento, vendeu mais de vinte e duas mil cópias nos primeiros seis meses e até hoje nunca deixou de estar presente nas livrarias da Grã-Bretanha e Estados Unidos (Gubar:2005: xlvii). Além das circunstâncias da composição que molda o e Woolf como prosadora de estilo, a singularidade do livro está relacionada com o momento histórico em que é finalizado, um pouco antes da grande depressão mundial.

“Escrito uma década depois das mulheres terem ganhado direito ao voto em 1918, A Room of One’s Own contepla o backlash que essa vitória política deslanchou, especificamente a reação defensiva que escalou em ‘guerras sexuais’ [...] durante os anos que se seguiram a Grande Guerra. Com o direito ao voto ganho, e as mulheres tendo ganhos em direitos de propriedade, educacionais, profissionais e de divórcio também, muitas pessoas reagiram com medo e raiva a erosão do monopólio masculino da esfera pública. Ao mesmo tempo feministas sabiam que o direito de voto não era tudo. A contribuição de Woolf para o movimento foi restabelecer a complexidade das questões depois da simplificação dos radicais necessária por razões políticas.” (Gubar,2005:l)

Um quarto, uma desobediência, a liberdade para mergulhar no inconsciente, diálogo com o outro. Woolf nomeou sem beligerância o conflito permanente que se enfrenta na criação. Conciliar o irreconciliável, assumir as dificuldades as que cada época estão expostas as criadoras, descobrir o que paralisa a mão, buscar com obstinação a liberdade. Suas perguntas lúcidas e desassossegadas, inclusive em seus textos mais breves e aparentemente circunstanciais é uma permanente chamada que pergunta:   

“Vocês ganharam seu próprio espaço na casa até agora possuída exclusivamente por homens. Vocês são capazes, embora não sem grande trabalho e esforço, de pagar o aluguel. Vocês estão ganhando suas quinhentas libras ao ano. Mas esta liberdade é apenas um começo; o cômodo é de vocês, mas ainda está vazio. Ele tem que ser mobiliado; tem que ser decorado, tem que ser repartido. Como vocês vão mobiliá-lo, como vocês vão decorá-lo? Com quem vão dividi-lo, e em que termos? “(Woolf, 1985:123).

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Resposta 3: experimental

Na década de 1970, houve uma explosão de trabalhos que reintroduziram as experiências pessoais das mulheres nas práticas artística e entre eles destacamos, nos Estados Unidos, um grupo de artistas que “preenchem cômodos e os decoram”. Animadas pelas ideias do feminismo radical as artistas formularam sua resposta em um projeto que intitularam Womenhouse, parte do programa de educação de arte feminista a cargo de Judy Chicago e Mirian Schapiro na Universidade da Califórnia. O projeto consistiu em intervenção em uma casa condenada a demolição, cedida pela prefeitura de Los Angeles. Por que uma casa? Judy Chicago resume assim:

“Era necessário um espaço que albergasse o trabalho das mulheres artistas que criavam a partir de sua experiência cotidiana, uma casa formada por vários quartos, uma ampliação de dimensões. O espaço, explica Chicago, devia ser uma casa, a casa da realidade feminina na qual se entraria para experimentar os fatos reais da vida, sentimentos e inquietudes das mulheres” (Chicago, 1993:12)

Entre 31 de janeiro e 28 de fevereiro de 1972, as alunas do programa converteram cada cômodo da casa em um espaço artístico público que revelavam a vida das mulheres no espaço privado da casa. A casa estava em um estado tamanho de abandono que necessitou de reformas básicas que foram feitas pelas 21 estudantes que participaram do programa: “Antes de pagar em um pincel, uma ferramenta para esculpir, cada uma já havia utilizado serras elétricas, lixas, realizadas tarefas de carpintaria, e encanamento, de vidraceira” (Raven, 1994: 49).

À medida que cada artista reformava um cômodo, escolhia um dos espaços da casa (17 cômodos) para convertê-lo em seu próprio quarto e criar ali sua obra.  Se a Woolf surpreendia o fato de Jane Austen ter produzido toda sua obra tendo somente uma pequena mesa para si, sem contar com nem mesmo um quarto que fosse só seu, as artistas reunidas se organizaram para dispor desse quarto próprio reivindicado por ela e conseguem se apoderar da totalidade da casa como espaço artístico. Womanhouse, além de ser uma homenagem ao espaço de criação das mulheres, se converteu em uma eficaz crítica aos valores tradicionais da arte e uma amostra prática do slogan do feminismo radical: o pessoal é político.

É importante lembrar que a influência do feminismo radical não traduz apenas nas críticas ao âmbito do privado, mas também na conquista do espaço público. Os grupos de autoconsciência ao redor dos quais se organizam as associações radicais são os primeiros espaços experimentais à disposição das mulheres, o que acabou por animar a conquista de espaços maiores e mais notórios. Multiplicam-se os grupos, as associações políticas, sociedades culturais, fóruns, congressos ao mesmo tempo em que tomam as ruas, o espaço público por excelência. As artistas feministas constituem uma manifestação particularmente evidente deste período: primeiro se multiplicaram suas associações e os espaços destinados à arte feita por mulheres depois passaram a reivindicar como próprios os lugares tradicionalmente destinados as artes masculinas.

Durante a Conferência de Mulheres Artistas da Costa Oeste, celebrada na Womanhouse em janeiro de 1972, Schapiro animou as artistas a “saírem de suas oficinas-salas de jantar, de seus estúdios-cozinhas” para buscarem seu lugar no mundo mais amplo da arte. (Wilding apud Broude y Garrad, 1994: 35). O teto todo seu, reivindicado por Woolf permanecia, meio século depois como premissa indispensável para a conquista de liberdade e dos espaços públicos.     

O estatismo exagerado das figuras femininas ( muitas delas manequins) o caráter artificial das salas e quartos, a desproporcional limpeza dos banheiros e cozinha, a reprodução de órgãos sexuais desmedidos, o excessivo uso do vermelho, os milhares de batons, sapatos, lençóis e louça  não evocavam uma casa real, mas um simulacro, uma interpretação mordaz da casa como o espaço onde uma mulher “torna-se mulher”, para lembrarmos outro pensamento influente para as feministas deste período, o de Simone de Beauvoir. 

Durante esse período Chicago e Schapiro passaram de formas geométricas em esculturas e pinturas para trabalhos mais focados em seus corpos e em suas experiências, nos quais formas centrais são predominantes. Imagens centrais “eram parte de uma tentativa de celebrar a diferença sexual e afirmar a outridade da mulher substituindo conotações da inferioridade por conotações de orgulho no corpo e espírito das mulheres” (Chadwick: 1994:321)

Womanhouse, não inova apenas em relação ao conteúdo da reflexão, mas também experimenta com o uso de materiais. Louise Bourgeois, que nessa época, e com outras mulheres de sua geração, começou a receber o merecido reconhecimento por seu trabalho. Ela e outras artistas participavam de encontros feministas e tomavam parte em manifestações. Bourgeois, em sua obra, havia utilizado materiais como a cola, a cera, o tecido, o arame e de desmanche desde 1964; Eva Hesse introduziu elementos como a corda, a argila e a estopa engomada. Womanhouse continua com esta tradição e acrescenta os trabalhos de agulha, a cestaria e as colchas de retalhos. Esta experimentação com materiais não usuais na tradição artística supõe um novo ataque ao cânone que culmina com a recuperação das técnicas artesanais associadas a produtividade feminina.

Na literatura, na pintura e na arte em geral a mulher que costura, que tece, é uma figura recorrente exibindo uma atividade feminina, passiva, doméstica, em decorrência, como mulheres eram consideradas inferiores, o trabalho têxtil e o artesanato foram qualificados hierarquicamente como inferiores ou marginais. Neste sentido Juliano indica que

“A falta de apreço social por esta arte [o bordado] pode ser explicada por sua ligação com um grupo humano previamente desvalorizado. Não é, portanto, que as mulheres façam coisas pouco importantes, mas sim que fazem parte de uma sociedade que cataloga como pouco importante qualquer coisa o que as mulheres fazem” (Juliano apud López Fernández Cao, 2000: p. 27).

Em 1973 Shapiro prossegue com seu trabalho de agulha e tecido na Dollhouse – Casa de Boneca – que desenhou com Sherry Brody para a exposição da Womanhouse daquele ano, “começa a combinar  tecido e tinta acrílica em pinturas abstratas que intitula ‘femmages’ explicando ser esta uma palavra que inventara para incluir as várias atividades, colagens, montagem, decoupage, fotomontagem, como eram praticadas pelas mulheres, usando as técnicas tradicionais das mulheres para realizarem suas artes” (Chadwick:1994:333).  Schapiro se referia a esta casa de boneca, e outras que fez, como ‘santuários’, feitos com retalhos e objetos que lhe eram enviados por mulheres de todo o país.

  The Doll House (Miriam Schapiro y Sherry Brody), 1973

Trata-se de uma pequena casa de bonecas em cuja construção a artista utilizou técnicas relacionadas com a costura, o corte e o crochê. Um dos cômodos da casa chama-se Artist’s Studio, mas longe de encontrarmos telas, pincéis ou esculturas vemos um manequim e moldes, uma homenagem as artes femininas tradicionais das quais Schapiro se considera herdeira:

“Meu primeiro contato com as artes tradicionais femininas foi através do trabalho de minhas avós costurando, bordando, tecendo. Quando eu era menina meus pais faziam parte de um mundo boêmio que valorizava as artes étnicas. Mais tarde, tornou-se evidente para mim que a maioria das técnicas com as quais cresci eram desenvolvidas pelas mulheres. Agora tenho plena consciência de que esta cultura me permitiu compreender melhor minha arte” (Raven, 1994: 67).

A polêmica estava servida: quais são as chaves para discernir entre arte a e artesanato e as razões? As artistas tinham consciência de que o conhecimento tradicional das mulheres e as artes populares compartilhavam uma condição semelhante; mesmo que presentes na vida diária, em geral ninguém percebe sua presença. São quase tão invisíveis quanto insignificantes. Há um duplo processo de marginalização que é preciso reverter. Muitas das atividades criativas das mulheres ficaram ocultas por trás dos trabalhos da casa. Rever os conceitos sobre arte popular, trabalhos domésticos, arte e artesanato, permite tirar do anonimato a milhares de mulheres que no passado – e no presente- trabalharam em ramos das artes que foram entendidos como inferiores sem mais critério do que o preconceito social, racial ou de gênero.

Estas artes subvalorizadas em que as mulheres atuavam e atuam como produtoras, público e críticas e cujo saber se transmite de mãe para filha, foram recuperadas por estas artistas que as introduziram como locus e ethos a partir dos quais subverteram a ordem patriarcal e os conceitos que dividem as artes por categorias e os artistas por sexos. Elas recuperaram agulhas e linhas e iniciaram um movimento conhecido como Pattern and Decoration que pretendia libertar uma área de expressão visual que havia sido desvalorizada e desprezada pelo mundo da arte.

A conquista do espaço pede a conquista do tempo por antonomásia: a história. Se em 1929 Woolf nos falava de um espaço próprio como premissa indispensável para a criação artística das mulheres, na conferência de 1931, ela se insere na tradição de mulheres escritoras e evoca a história:

“Minha profissão é a literatura; e é a profissão que, tirando o palco, menos experiência oferece às mulheres – menos, quero dizer, que sejam específicas das mulheres. O caminho foi aberto muitos anos atrás – por Fanny Burney, Aphra Behn, Harriet Martineau, Jane Austen, George Eliot – muitas mulheres famosas e muitas outras desconhecidas e esquecidas vieram antes, aplainando o terreno e orientando meus passos” (Woolf, 1985:117).

As artistas feministas da década de 1970, apoiadas pelas historiadoras e críticas, rastrearam uma genealogia de mulheres com a intenção de formar um referencial do passado para a emancipação no presente. Judy Chicago, uma escultora treinada na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, organizou o primeiro curso de arte feminista na Califórnia e um ano depois, com Shapiro, estabeleceu e lecionou em um programa de arte no California School of the Arts (Chadwick:1994:321). Em 1974 Judy Chicago iniciou estudos e montagem que seriam The Dinner Party.

A instalação realizada por Judy Chicago e inúmeras colaboradoras, entre 1974 e 1979, é um caso exemplar desta recuperação. Chicago pretendia recuperar aquelas mulheres que haviam sido deixadas de fora da história (Stein in:  Broude y Garrard, 1994: 227) e para isso reúne 39 convidadas reais ou fictícias para um monumental banquete em torno de um triângulo equilátero de quase quinze metros: Georgia O’Keeffe, a rainha egípcia Hatshepsut, Cristine de Pizan, ou a imperatriz bizantina Teodora; Ishtar, Artemis, Isis, a Deusa mãe, e tantas outras.

Em cada lugar da mesa havia uma composição formada por guardanapos bordados, cálices. Toalhas bordadas, pratos de cerâmica nos quais as convidadas eram encarnadas como uma mariposa vagina abstrata. Outras tantas convidadas para esta cerimônia estavam representadas no piso de azulejos polidos que Chicago denominou The Heritage Floor, onde apareciam inscritas em letras douradas, em um total de 999 nomes. The Dinner Party, ao converter-se em eco das lutas por um espaço público e reconhecimento histórico, articula um forte ataque ao cânone tradicional: a suspeita sob qualquer hegemonia da forma, o compromisso de conteúdo político, a aceitação plena das artes consideradas menores (artesanato, vídeo, performances art), a crítica do culto de gênio, o uso de novos materiais e o desenvolvimento de trabalho colaborativo.

The Dinner Party, Judy Chicago, 1979

Chicago conta que reconheceu que seu trabalho somente poderia ser entendido a partir de suas antecessoras e quis encontrar um modo de incorporá-las em sua obra de forma que o espectador se visse forçado a confrontar seu trabalho no contexto do trabalho de outras mulheres.  (Stein in: Broude e Garrard, 1994:226)

The Dinner Party começa com a série Great Ladies na qual Chicago cria um conjunto de retratos abstratos de mulheres do passado. Sua busca pelas artistas a conduziu a esfera das artes decorativas e ao descobrimento da pintura chinesa. Ela não só ficou intrigada pela sutileza da técnica como passou a considerar a potencialidade dos pratos chineses pintados como metáforas sobre a domesticação e a trivialização das mulheres: Do mesmo modo que os pratos estão associados a alimentação, as imagens impressas sobre os pratos poderiam comunicar o fato que as mulheres que planejava representar haviam sido tragadas e obscurecidas pela história.  (Stein in: Broude e Garrard, 1994:226)

Gradualmente Chicago começou a pensar em The Dinner Party como a representação de um jantar imaginário apenas para mulheres. Propõe uma espécie de canibalismo simbólico no qual os espectadores se alimentam com o espírito e os trabalhos das convidadas à mesa. As mulheres absorvidas pela história são agora apresentadas como alimentos para a alma. Se ao longo da história elas haviam preparado a comida e servido a mesa, nesta instalação seriam as convidadas de honra. Chicago oferece, desse modo, o jantar sobre o qual fala Virginia Woolf:

 “Sendo a estrutura humana o que é, coração, corpo e cérebro misturados, e não contidos em compartimentos separados, um bom jantar é de grande importância para uma boa conversa. Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem quando não se jantou bem. “(Woolf, 1985:45)

The Dinner Party, Judy Chicago, 1979

Judy Chicago compara a tridimensionalidade do prato de Virginia Woolf a uma flor que desabrocha e simboliza a defesa de Woolf em prol da expressão irrestrita das mulheres. As imagens usadas no prato de Woolf, que incluem formas de sementes em seu centro, fazem referência a fecundidade criativa. Chicago pretende que a forma da flor seja uma metáfora da fecundidade do gênio criativo de Woolf. O centro parece irromper das pétalas, referenciando Woolf como uma mulher que clamava outras mulheres a se libertarem dos limites da literatura pré-existente, predominantemente masculina e, escrevessem com um estilo reflexivo de si mesmos (Chicago, 1979:151).

Um feixe de luz costurado e pintado se destaca abaixo do prato, iconografia de seu livro Ao Farol. Ele simboliza o esplendor do legado literário de Woolf, uma vez que ela "iluminou um caminho em direção a uma linguagem literária nova e formada por mulheres" (Chicago, 1979:151). O chiffon delicado pode ser interpretado como uma referência à fragilidade mental de Woolf.  Sua morte por afogamento é sugerida pelo padrão ondulado bordado em torno da letra iluminada "V" de seu nome, um motivo que também faz referência ao seu livro As Ondas.

As artistas têm alimentado os leitores com suas poderosas criações, transformando o sentido da nutrição: o alimento se metamorfoseia no próprio corpo, a palavra assume o poder do pão como no poema de Sandra Gilbert dedicado a Emily Dickinson, Emily’s Bread:

“No, now she is the bride of yeast,

The wife of the dark of the oven,

The alchemist of flour, poetess of butter,

                   Stirring like a new metaphor in every bubble.” (Gilbert:1984:35) [3]

 

The Dinner Party, cuja realização se estendeu ao longo de cinco anos, se converteu em um dos mais ambiciosos exemplos de arte feminista. Atualmente está no Brooklyn Museum, em Nova Iorque.

Chicago satisfeita com os resultados, a partir de 1980 embarca em outro grande projeto de arte colaborativa, que também levou cinco anos para ficar pronto: The Birth Project. A ideia consiste em trabalhar com uma equipe internacional de costureiras voluntárias para as quais Chicago proporcionava as imagens e o desenho que deveriam ser reproduzidas nos tecidos. Apesar das dificuldades, ela diz que se sentia fortalecida pelo diálogo criativo:

“Que tinha lugar quando uma grande costureira era capaz de imaginar como sua técnica poderia conviver com a minha imagem. As colaboradoras também se sentiam felizes criando dentro da criação de Judy” (Stein in: Broude e Garrard,1994:226 ).

Judy Chicago, The Criation. The Birth Project, 1984.

 

Os experimentos, recuperações, inovações das artistas da Womenhouse são apenas um dos caminhos que se mostram abertos para as artistas no nosso mundo contemporâneo.

“O que é uma mulher? Eu lhes asseguro, eu não sei. Não acredito que vocês saibam. Não acredito que alguém possa saber até que ela tenha se expressado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana” (Woolf, 1985:120)

Ainda não sabemos, mas continuamos a observar as habilidades das mulheres nas artes.

 

 

Referências Bibliográficas

Broude, Norma y Garrard, Mary D. 1994. The Power of the Feminist Art. Nueva York, Harry N. Abrams, Inc., Publishers.

Chadwik, Whitney. 1994. Women, Art, and Society. Londres: Thames and Hudson.

Chicago, Judy, 1979 The Dinner Party: A Symbol of Our Heritage. Garden City, NY: Anchor Press.

Chicago, Judy.1993. Through the Flower: My Struggle as a Woman Artist. Nueva York, Penguin.

Gilbert, Sandra M. 1984. Emily’s bread. New York: W.W. Norton & Co..

Gubar, Susan. 2005. “Introduction” to Woolf, V. A Room of One’s Own. New York: Harvest Book.

Stein, Judith E. 1994, Collaboration. In: Broude, Norma y Garrard, Mary D. 1994. The Power of the Feminist Art. Nueva York, Harry N. Abrams, Inc., Publishers.

López Fernández Cao, Marián (Coord.). 2000.  Creación artística y mujeres. Recuperar la memoria. Madrid: Narcea

Woolf, Virginia. 1985. Profissões para mulheres. In: O Momento Total. Ensaios de Virgínia Woolf. Lisboa. Ed. Ulmeiro.

Woolf, Virginia. 1985. Um Teto Todo Seu. São Paulo, Nova Fronteira.

Raven, Arlene.1994.  “Womanhouse” In: Broude, Norma y Garrard, Mary D.: The Power of the Feminist Art. Nueva York, Harry N. Abrams, Inc., Publishers.

Springer Marlene, 1978. Angels and Other Women in victorian Literature. In: What Manner of Women. , Essays on English and American Life and Literature. Ed. By Marlene Springer. Oxford.

 

Sites:

http://www.judychicago.com/  consultado em 14 de julho de 2016

http://www.womanhouse.net/  consultado em 14 de julho de 2016

 

Biografia:

Carla Cristina Garcia: Mestre e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutorada pelo Instituto José Maria Mora (México, DF). É professora da PUC-SP e autora dos livros Ovelhas na Névoa: um estudo sobre as mulheres e a loucura; Produzindo Monografia; As Outras Vozes: memórias femininas em São Caetano do Sul; Sociologia da Acessibilidade; Hambre del Alma:Escritoras e o banquete de palavras; Breve História do Feminismo; O Rosa, o Azul e as Mil Cores do Arco-Íris. Gêneros, corpos e sexualidades na formação docente (no prelo).

 

Notas


[1] Conferencia proferida em 21 de janeiro de 1931 em Londres, publicada postumamente em The Death of the Moth (1942)

[2] O longo poema de Coventry Patmore, escrito entre 1854 e 1856, celebrava a felicidade conjugal e a feminilidade segundo os padrões vitorianos e foi, na época, um verdadeiro best seller.

[3]“Não, agora ela é noiva do fermento/a esposa do escuro forno/a alquimista da farinha,/poeta da manteiga/movimentada como uma nova metáfora em cada bolha.

 

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