labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

Elaborações poéticas sobre a pele na arte de Louise Bourgeois[1]

                                                                                             Gabriela De Laurentiis

Resumo:

As relações entre as formas corporais/subjetivas e a prática estética de Louise Bourgeois (1911-2010) são o ponto de partida destas linhas. Interessa-me fazer vibrar algumas possibilidades de sentido para as obras da artista, por meio das quais as identidades fixas são criticadas e processos de singularização disparados.  Nesse movimento o elemento privilegiado é a pele, sua confecção, suas retrações e suas expansões.

Palavras chaves: Louise Bourgeois, pele, corpo, arte, escultura

 

Topografias poéticas

Não tenho ego. Sou meu trabalho

Louise Bourgeois

 

Louise Bourgeois é francesa por nascimento e estadunidense por opção, aos 27 anos deixa a cidade natal Paris, mudando-se para Nova York, onde vive até seu falecimento. Criadora de uma arte marcada pelas discussões relacionadas cultural e historicamente ao feminino torna-se, a partir da década de 1970, uma referência para artistas e críticas de arte ligadas ao movimento feminista. As obras de Louise Bourgeois mobilizam essas questões.

Ao receber, em 1980, um prêmio da “Women’s Caucus for the Arts” - a maior organização de mulheres artistas e historiadoras da arte nos Estados Unidos naquele momento - ouve as seguintes palavras: “you say in form what most of us are afraid to say in any way” ((DeepWELL 1997: 30)[2]. Formas de esculpir uma existência que escapa às binarizações e às fixações identitárias. A escrita dessas linhas parte das formas criadas por Louise e as relações poéticas que elas estabelecem com a pele.

Formas arredondadas compõem Soft landscape I (1967), uma paisagem corporal suave feita em plástico. As formas arredondadas com tons pretos e amarronzados são revestidas por membranas rugosas e macias.

 Nelas, se pode viajar para tempos imemoriais das paisagens pré-históricas, erupções de bulbos (Mayayo, 2002: 27). Uma pele túmida, dilatada elabora-se e reverbera na construção de Cumul I. Esse é o título escolhido por Louise Bourgeois para a escultura em mármore branco, de 1969. Os Cúmulos são, diz Louise, “antropomórficos e também são paisagens”. Para ela “nosso próprio corpo pode ser considerado, de um ponto de vista topográfico, um terreno com montes e vales, cavernas e buracos” (Bourgeois, 2002: 126).

Imagino que em Cumul I e  Soft landscape I , Louise Bourgeois cria uma série de paisagens corporais arredondadas. Nelas, a pele encontra-se em estado de agitação, coloca-se em movimento, sendo transitória e mutável como as montanhas, as pedras e as cavernas que estão em constantes e pequenas transformações. A pele é construída como esse campo sensorial, que compõe um perfil subjetivo e faz dele delicadamente cambiante.

 

 

Louise Bourgeois Soft Landscape I, 1967

Louise Bourgeois ,Cumul I , 1968.
© Philippe Migeat - Centre Pompidou, MNAM-CCI /Dist. RMN-GP
© Louise Bourgeois Trust / Adagp, Paris


 

Suely Rolnik considera que “a pele é um tecido vivo e móvel, feito das forças/fluxos que compõem os meios variáveis que habitam a subjetividade: meio profissional, familiar, sexual, econômico, político, cultural, informático, turístico, etc.” (Rolnik, 1997: 1). As experiências com a alteridade do mundo e consigo são, assim, inseparáveis da pele. É nela que se inscrevem diretamente as marcas da vida, do tempo, das dores, das alegrias, das lutas, das transformações. A pele é indissociável da subjetividade, e é por meio dela que as formas subjetivas ganham contornos. Em um comentário que segue pelo mesmo caminho proposto por Rolnik, José Gil afirma ser “mais por toda a superfície da pele do que através da boca, do ânus ou da vagina que o corpo se abre ao exterior” (Gil, 2002: 141). É por meio da pele que o corpo se relaciona diretamente com o mundo, sendo afetado por ele, ao mesmo tempo que o afeta. Os fluxos da vida inscrevem-se na pele, fazendo com que ela crie movimentos de expansão para a transformação.

Expandir a pele, esculpindo para ela outros contornos e sentidos possíveis, é uma das sensações trazidas pelas formas redondas elaboradas por Louise Bourgeois. Vera Pallamin, ao tratar do trabalho da artista, propõe a noção de corpoescultura, que permite uma ampliação estimulante desses sentidos. De acordo com Pallamin, na arte de Louise Bourgeois o tratamento dedicado ao corpo faz com que ele seja formulado, simultaneamente, como sujeito e objeto das obras. A esse estatuto do corpo Pallamin denomina corpoescultura, compreendido como

“[...] um corpo que advém da escultura, como a mão áspera e forte que assimila na rugosidade de sua pele a pedra que esculpe; uma escultura que é feita corpo, abrigando várias presenças” (Palamin, 2006: 108).

O corpo e a arte entrelaçam-se; são inseparáveis. O corpo expande-se ao entrar em contato com a densidade da matéria, mobilizando forças físicas para transformá-la, e alterando suas próprias configurações de acordo com as resistências e maleabilidades por ela proporcionadas. Há um encontro no qual se afetam a pele e as matérias de trabalho, no caso de Cumul I o mármore, em uma agitação que permite inventar formas distintas dos originais, e abrem possibilidades para a composição de novas paisagens subjetivas. Pallamin afirma:

“Bourgeois trabalha com nervuras não visíveis da corporeidade, deslocando a tradição escultórica que privilegia o olhar para o corpo por uma perspectiva externa. Na realidade, este corpo reconhecido por todos praticamente desaparece. Em seu lugar assume a evocação de motivações diferenciais experenciadas no círculo familiar de sua casa de infância, na sua interrogação sobre a sexualidade, nos seus modos primordiais de engajamento na vida, nos enigmas que vogam seu ser: um corpoescultura abismal” (Pallamin, 2006: 110).    

Fragmentos corporais são colocados em evidência, como se os órgãos saíssem do lugar esperado e se rearranjassem de acordo com o desejo da artista. O dentro e o fora, a escultura e o corpo são indissociáveis. A pele redobra, reverbera, faz ressoar de dentro para fora e vice-versa cada um dos movimentos. A pele não é, assim, algo que separa o fora e o dentro, o pessoal e o coletivo, mas é onde vibram simultaneamente forças contrárias, vindas de todos os lados, que possibilitam a formulação de novas paisagens corporais/subjetivas. Como afirma Rolnik, o dentro

“[...]nada mais é do que o interior de uma dobra da pele. E reciprocamente, a pele, por sua vez, nada mais é do que o fora do dentro. A cada vez que um novo diagrama se compõe na pele, a figura que até então ela circunscrevia é como que puxada para fora de si mesma, a ponto de acabar se formando uma outra figura. É só neste sentido que podemos falar num dentro e num fora da subjetividade: o movimento de forças é o fora de todo e qualquer dentro, pois ele faz com que cada figura saia de si mesma e se torne outra” (Rolnik, 1997: 2).

A pele está em transformações constantes e descontínuas. Ativada por forças variadas, ela se coloca em estado de suspensão, compondo diagramas (paisagens) múltiplos, que têm como efeito a abertura para a criação de novas figuras de si. Em Louise Bourgeois esse movimento da pele tangencia a produção de paisagem do corpoescultura, que mobiliza para a sua confecção elementos e formas específicas contando uma história simultaneamente pessoal e coletiva. A pele é, então, constituída por marcas que inscrevem em sua superfície os espaços da vida privada e pública, que se dobram e se redobram, sobrepondo-se um ao outro, produzindo novas suavidades. Em outras palavras, as paisagens corporais configuram-se, colocando em circulação espaços variados, signos e discursos a eles vinculados, fazendo com que o corpo se torne a própria obra de arte, ou como afirma Marie-Laure Bernadac, estabelecendo uma prática artística como criadora de “uma arte mais próxima da vida do que da arte” (Bernadac, 2006: 53).

A pele rarefaz. Torna-se menos densa, dilata-se. Cumul é um sistema de nuvens e, para Louise, as nuvens, o céu, são elementos muito positivos e confiáveis (Kirili in Moris, 2007: 94). Imaginário infantil, no qual nas nuvens se pode caminhar, brincar. A leveza sugerida pelas nuvens toma o corpo, constitui a pele. Multiplicam-se os prazeres, não mais da ordem humana, aprisionada na rigidez da racionalidade. O peso da identidade começa a se esvaecer, novas suavidades instauram-se, delicadamente. Uma sensualidade arredondada –  que marca a arte de Louise a partir da década de 1960 –  surge distanciada de estereótipos pré-definidos, como uma brincadeira.

Viaja-se pela pele-nuvem, pelo corpo que não se encerra em si mesmo, mas expande-se no contato com a alteridade do mundo. As formas arredondadas seduzem, transformam-se a cada novo olhar. Recriam-se. Uma outra brincadeira infantil faz imaginar nas nuvens seres diversos, existentes e inexistentes, seres fantásticos e ordinários, brotando de todas as partes, sem limitações. A pele é criada desse modo: incorporando elementos de seres múltiplos.

 

A pele que se habita  

“Obrigado a Louise Bourgeois, cuja obra não apenas me emocionou, mas também serviu de salvação para a personagem Vera”. É dessa maneira que o diretor Pedro Almodovar, homenageia a artista nos créditos do filme “A pele que habito” (2011). Na tenebrosa história, protagonizada por Elena Anaya e Antonio Banderas, Richard Ledgar é um cirurgião plástico atormentado pela morte de sua mulher, Gal.

Ela cometeu suicídio após ter o corpo desfigurado num acidente de carro. Convencido de que poderia criar a pele que talvez a salvaria, o cirurgião acaba por conseguir cultivá-la em laboratório. Um dia, durante uma festa, Ledgar encontra sua filha, Norma, num canto escuro, e supõe que ela havia sido estuprada. A menina comete suicídio, jogando-se da janela de um hospital psiquiátrico. Atormentado, o médico sequestra o suposto violentador de sua filha, Vincent, transformando-o em cobaia para suas experiências. A primeira cirurgia realizada em Vincent é a vaginoplastia, seguida de outras tantas que irão criar seu corpo com formas tradicionalmente associadas ao feminino.

Cena do filme A pele que Habito,
Pedro Almodóvar, 2011.


 

Trancafiado em um quarto, com câmeras e vidros para a sua vigilância, Vincent, agora Vera, passa os dias na companhia de Ledger e de uma espécie de governanta, Maria. As cirurgias continuam, pois o objetivo é fazer da pele de Vera tão resistente que nem o fogo seria capaz de deformá-la. Por isso, ela utiliza, em todo o tempo, espécies de macacões justos, dos quais apenas a cabeça fica de fora, servindo para a conservação de sua nova pele. Na obra de Almodovar a confecção da pele ganha contornos distintos daqueles sugeridos em Cumul I. Associa-se ao aprisionamento espacial e físico. Dentre as práticas que Vera encontra para manter a sanidade na prisão estão a de desenhar e de escrever pelas paredes do quarto-prisão, no qual pode-se ver uma série de reproduções de obras de Louise Bourgeois. Ela também cria com retalhos de tecidos esculturas de cabeças, seguindo um gesto de criação adotado por Louise em obras como Cell X (Potrait), realizado em 2000. Uma cabeça costurada com tecidos cor-de-rosa encontra-se colocada sobre uma mesa de metal, no interior de uma jaula com grades.

Louise Bourgeois Cell X (Potrait), 2000.
© Cheim & Read


 

Estas esculturas/instalações que Louise Bourgeois chama de Cells, foram realizadas desde meados dos anos 1980, e exploram amplamente a relação com a arquitetura dos espaços. O nome foi intencionalmente escolhido pela artista para evocar uma multiplicidade interpretativa (Crone; Schaesberg, 2008: 85). Celas de uma prisão ou as células do nosso sangue são as possibilidades que Louise sugere (Moris, 2007: 71). Em Cell X (Portrait) a cabeça está aprisionada, enjaulada, cindida do corpo. Vera é salva por Louise Bourgeois, como sugere Almodovar, pois encontra na prática estética uma forma de saúde, de sanidade. “A arte é garantia de sanidade”, afirma Bourgeois. Criar inúmeras cabeças com retalhos das vestimentas femininas oferecidas a ela pelo médico Ledger, permite que ela não perca sua cabeça, sua saúde, diante da absurda prisão em que vive.

As peles dos rostos esculpidos por Vera, são resultado de um trabalho com suas próprias mãos, em contraposição a sua pele, cuja construção lhe foi imposta pelo saber médico. Os tecidos nas obras de Louise Bourgeois associam-se à ideia de restauração e aos seus primeiros contatos com a prática estética.

Nos primeiros anos de vida, Louise trabalha nos teares da tapeçaria de família. A arte da tapeçaria é transmitida a ela pela família materna.  O ofício de sua mãe era o mesmo de sua avó, ambas cresceram na cidade de Aubusson, uma cidade “fundada no século XVI por fabricantes de tapeçaria que vieram do norte da Bélgica e de Tournais, na fronteira, por causa das qualidades especiais químicas especiais encontradas no rio Creuze. Na cabeceira as águas recebiam tanino, e a lã lavada nessa água ficava especialmente receptiva aos agentes de tingimento” (Bourgeois, 2004: 117) conta Bourgeois.

Ali, a avó tinha um ateliê, onde seu primogênito, Alex, ocupava-se em fazer os desenhos que seriam confeccionados nas tapeçarias, ele era o dessinateur. O trabalho era muito e um ajudante se fazia necessário. É assim que Bourgeois passa a ajudar o tio na feitura dos desenhos. Sobre o trabalho, ela lembra: “consegui o emprego por causa de minha posição privilegiada de neta, comecei com o desenho de pés. Jamais uma mulher tinha feito aquilo. Era simplesmente proibido (...). Comecei mais ou menos aos oito anos, e o permitiram porque era útil. A ideia de ser artista e útil é bastante rara” (Bourgeois, 2018: 18).

É com tapeçaria que Louise cria uma figura um pouco mulher, um pouco aranha na obra Lady in waiting¸ de 2003.  A obra faz parte da exposição Louise Bourgeois. Structures of Existence: The Cells, em cartaz até setembro de 2016, no Museu Guggenheim, de Bilbao.  Entre os desenhos da tapeçaria estão flores e pássaros, em tons ocre e amarronzados. Ela serve não apenas para a construção da figura hibrida, animal-mulher, como o forro da cadeira onde ela encontra-se sentada. A pele da figura mistura-se à cadeira, como se a ela estivesse incorporada. Uma sensação de impossibilidade de movimento se produz. A cadeira-mulher-aranha é vista por uma janela antiga, olhamos para dentro de uma sala, de alguma antiga casa. A obra faz pensar em Vera, ali aprisionada e vigiada, na casa-hospital criada por Ledger. O corpo sem movimento, preso à mobília, lembra os discursos que historicamente estruturam a existência das mulheres a partir do lar.

Louise Bourgeois Lady in Waiting, 2003.
© The Easton Foundation
Foto: Christopher Burke


 

A formulação desse modelo do feminino se encontra historicamente situada no século XIX, quando os discursos científicos e religiosos modernos estabelecem uma imagem da Mulher como a mãe devota, afetiva e assexuada (Rago, 1997: 61-62). A construção desse modelo de feminilidade, o da “esposa-dona-de-casa-mãe”, vincula-se à reconfiguração das cidades e da família nuclear na modernidade, em contraposição às práticas consideradas pela burguesia como promíscuas e anti-higiênicas imaginadas nas moradias operárias. É assim que, aos poucos, conforma-se uma representação das mulheres não apenas como figuras centrais desses lares modernos, mas também como portadoras de valores morais tais como a castidade, a pureza e a higiene (Rago, 1997: 61-62). Uma das consequências da construção desse modelo do feminino é certo apagamento dos anseios, das vontades e dos desejos das mulheres, que acabam por serem desvalorizadas. De acordo com Rago, nesse movimento

“[...]a desvalorização é imensa porque parte do pressuposto de que a mulher em si não é nada, e que deve esquecer-se deliberadamente de si mesma e realizar-se através do êxito dos filhos e do marido” (Rago, 1997: 65).

A incitação ao esquecimento de si tem como um dos efeitos fazer as mulheres desconfiarem de si próprias, não conseguirem elaborar para si a liberdade necessária à criação, como sugere Norma Telles (2007: 403). Para a autora, uma das consequências acarretadas pelo o discurso sobre a natureza feminina que se impõe à sociedade burguesa em ascensão pretende fazer das mulheres figuras incapazes para a prática artística, que é definida como um dom essencialmente masculino (Telles, 1988: s/p). Nessa perspectiva, a eliminação dos braços e das mãos na figura de Louise Bourgeois traz a impossibilidade da criação para as mulheres assujeitadas aos seus papeis de mãe e esposa dentro do lar. Um modelo de feminilidade construído a partir do ideal da mãe-esposa-dona-de-casa, abnegada, assexuada e feliz ou, como se ouve contemporaneamente, bela recatada e do lar! Suas mãos não existem, estão incorporadas totalmente ao mobiliário doméstico.

Uma outra sensação, com mais potência, com mais força agita-se: uma fuga, um movimento de escape. As patas metalizadas de aranha escapam. Na falta de mãos humanas para criar, ela agora tem oito patas aracnídeas em metal, elaborando um corpo humano, animal e máquina. As fronteiras entres esses elementos esvaem-se, um espaço de metamorfoses múltiplas do corpo/subjetiva inventa-se. Uma espécie de aranha-mulher-máquina elabora-se. Louise Bourgeois faz das aranhas, em sua poética, seres ligados ao imaginário materno. Uma figura protetora, cuidadora, que encontra na arte de tecer a sua sobrevivência. Lady in waiting produz sentidos múltiplos, podendo entre eles estar uma espera sem fim pela vida sufocada dentro das paredes do lar. Vera está precisamente nessa condição.

Do mesmo modo, a espera pode ser a paciência, a calma para que a metamorfose se agite. A revolta contra sua condição de prisioneira cria espaços em seu corpo/subjetividade. Vera aguarda o momento exato para matar seu carcereiro e fugir. A personagem de Louise, também aguarda. Suas mãos multiplicam-se, criam-se como patas-máquinas, que podem perfurar, matar. 

Com o fim de primeira Guerra a família muda-se para Antony. Afinal, conta a artista, “Aubussson era muito aborrecido”. A nova morada ficava “à margem do Bièvre que desemboca no Sena. Assim como o Creuze, o Bièvre era cheio de tanino”. Instalaram em Antony o novo ateliê, e sua mãe, Josephine Fauriaux, decidiu que só trabalharia com a restauração de tapeçarias feitas antes de 1830, pois,

“[...]antes dessa data as tapeçarias eram tecidas sobre trama de lã, mas depois passaram a ter trama de algodão. A fábrica de Gobelins fazia as de algodão, e segundo mamãe estavam arruinando a tapeçaria com isso e usando tinturas químicas, em vez de naturais. Ninguém deu atenção. Mas ninguém melhor que minha mãe para saber que estava ela estava certa” (Bourgeois, 2004:119)

Organizadas em mais de 15 grupos, as tapeçarias eram cuidadosamente dobradas e colocadas em prateleiras por Josephine. Encontravam-se arranjadas por temas como se fossem livros numa biblioteca (Bourgeois, 2004: 121). Elas eram, assim, uma forma de conhecer e pensar sobre o mundo. Uma maneira tátil de conhecimento, que teve muito impacto na arte de Louise Bourgeois. Segundo ela, a mãe “empregava umas vinte meninas, e esse grupo de tecelãs me influenciou como mulher e como artista” (Bourgeois, 2004: 92). O processo de restauro era lento e levava o nome de rentrayage “refazer, retecer o corte, como o cerzido invisível” (Bourgeois, 2004: 121). Narrando a infância, ela diz:

“Minha mãe ficava sentada ao sol e concertava uma tapeçaria ou bordava. Realmente adorava isso. O sentido de restauração me é muito caro” (Bourgeois, 2004:226).

A aranha vive do que tece, diz o poeta. Ela tece a própria vida diria Louise, e mais: ela restaura, reconta, recria a própria história. Em um movimento que não cessa.  Lady in waiting também tece. Ela espera sem passividade alguma. É uma espera ativa que suas patas costuram, ela trama e retrama sua pele, sua subjetividade. Cria as estruturas para sua existência. Vera faz o mesmo, aguarda, enquanto trama com paciência sua fuga. Seduz seu algoz, instaura-o em sua teia para, enfim, eliminá-lo.

Vera mata o médico, Ledger, e sua cumplice, Maria. Foge da prisão, em direção a loja de roupas, da qual sua mãe é proprietária. A mãe de Vera, que em outros momentos do filme aparece procurando pelo filho desaparecido, figura como protetora, e faz imaginar mais uma vez as relações entre a figura materna e as aranhas propostas por Louise. No poema Ode à ma mere a artista escreve:

“A amiga (a aranha – por quê a aranha?) porque minha melhor amiga era minha mãe e ela era decidida, inteligente, paciente, tranquilizadora, racional, encantadora, sutil, indispensável, arrumada e útil como uma aranha. Ela também sabia se defender, e a mim, recusando-se a responder perguntas pessoais ‘idiotas’, inquisitivas e embaraçosas” (Bourgeois, 2004: 321).

 

 Algumas dobras finais

Louise Bourgeois, 2003.
Foto: Aspassio Haronitaki.


 

Na formação de seu bestiário singular Louise arma diferentes possibilidades. A pele do rosto marcada por traços alaranjados. As cavidades e rugosidades misturadas a pequenos pontos e linhas, que criam uma figura um pouco humana e um pouco felina. Louise Bourgeois se deixa fotografar por Aspassio Haronitaki, que com manipulações transfigura seu rosto. Uma felina, uma tigresa, uma gata. O gesto de transformar o próprio rosto, de recriá-lo num movimento de afastamento da humanidade, é o que considero mais cativante desta escultura de si própria. Ao se deixar criar como uma mulher-tigresa, Louise Bourgeois abre espaço para a imaginação de formas corporais/subjetivas que rompem com processos de binarização. Uma atitude que tem como efeito uma crítica não apenas à identidade Mulher, mas a qualquer aprisionamento em categorias fixas de identidade.

Patricia Mayayo observa que Louise Bourgeois imagina formas corporais que habitam uma zona de indiscernibilidade. A artista propõe um modelo de subjetividade baseado não na oposição – masculino/feminino, humano/inumano, natureza/cultura – mas, na fusão desses elementos (Mayayo, 2002: 29). Ao criar para si um semblante de tigresa, Louise Bourgeois opera, precisamente, nessa fusão. A pele, com suas cavidades, seus traços, suas rugas coloridas e desenhadas, deixa de identificá-la como Mulher. No entanto, tampouco a torna uma tigresa. É um espaço entre, é um espaço aberto para criação de outras formas corporais que se reconfiguram, um nomadismo subjetivo. A cabeça e o corpo estão conectados, nessa proposta de análise. Nesse sentido, é interessante notar que as outras partes do corpo da artista permanecem em suas formas esperadas. Em especial, suas mãos ganham bastante destaque no retrato. As mãos criadoras da arte, as mãos que tocam em si e no mundo para produzir arte, permanecem intocadas na escultura de si. A arte como expressão do humano se faz presente. No entanto, esse humano encontra-se em suspensão, está em vibração para a sua própria metamorfose.

No espaço contemporâneo o binarismo inscreve-se não meramente como um dualismo, pois ele é antes uma máquina que opera de modos mais complexos, as identidades prêt-a-porter multiplicam-se e fazem-se imperativas. Em seu retrato Louise Bourgeois não faz uma escolha, não é tigresa ou mulher, não é animal ou humano, ela cria linhas de fugas, movimentos de fuga,

“[...]por que estes antes de serem uma fuga para fora do social, longe de serem utópicos ou ideológicos, são constitutivos do campo social, do qual traçam a inclinação e as fronteiras, de todo o devir” (Deleuze e Parnet, 2004: 163).

A linha de fuga é o movimento de escape às máquinas binarizantes, é uma animação do corpo/da subjetividade que permite traçar outras formas para a própria existência. São concretos esses movimentos, ativados pelo desejo contra aquilo que pretende sufocar e enquadrar a vida. A linha de fuga é uma ação no presente, é uma agitação que toma o corpo, que faz vibrar a pele, os pelos, os cabelos, as veias, o sangue. Uma agitação que pode provocar um movimento de liberação dos códigos dominantes e a elaboração de outras formas de si, num movimento de singularização.

         A prática estética de Louise Bourgeois aproxima-se desses processos de singularização, de uma atuação nas fronteiras das identidades: a pele de tigresa, de artista e de mulher é criada. A pele do rosto é desconstruída na elaboração de uma forma inclassificável. Aos 95 anos de idade, uma artista consagrada, uma mulher notória, ela parece desconstruir todas as imagens que poderiam enquadrá-la. Configura-se uma abertura para a elaboração de novas cartografias corporais/subjetivas, que permitem a criação de si como um outro do que se é. Um movimento que se conecta a uma crítica mais ampla às formas de modulações das identidades.

 

Louise Bourgeois Louise Bourgeois, Self Portrait, 2007.
© The Easton Foundation/VAGA, New York/DACS, London 2014
Foto: Christopher Burke


 

 

Uma pantera negra, esculpida em bronze, com cinco patas: duas dianteiras, duas traseiras e uma lateral compõe o Autorretrato (2007). Sua pele é feita em patina de prata. Reluzente e sedutora, com um sorriso misterioso. O autorretrato como felina produz sensações aproximadas daquelas oferecidas pelas patas da aranha-mulher-máquina, em Lady in waiting: as patas utilizadas para a criação, para elaboração de si e sua prática estética. A quinta pata produz estranhamento, e faz imaginar que Louise cria para si uma pata/mão a mais para o fazer artístico/vida.

A pele estabelece essa ligação de maneira poética e imaginativa. Para José Gil, a pele é “ao mesmo tempo interior e exterior, interface entre o espaço exterior e o interior, constitui o operador da reversão do fundo do corpo na superfície” (Gil, 2002: 141). A pele criada ultrapassa os próprios limites preestabelecidos de seu corpo sexuado, ironizando-o, rompendo com suas formas originais.

Uma pele que narra histórias pessoais, recontadas e revividas por meio da prática estética. No entanto, não se trata de uma prática autobiográfica que objetiva criar um nexo de inteligibilidade intrínseco entre a pele criada e a história narrada. Ao contrário, a pele está em confronto com sua própria superfície; rasgada, ela se reconfigura a partir de novas histórias nas quais o outro e o eu, o passado e o presente são incorporados simultaneamente em sua confecção. Louise diz que

“[...]para realmente trabalhar e produzir, é preciso haver integração do seu trabalho à sua vida, ou integração de sua vida ao seu trabalho” (Bourgeois, 2004: 59). 

Não há, nesse sentido, um sujeito definido que antecede a criação, mas a elaboração de si própria por meio da prática artística.  “Meu corpo é a minha escultura”, afirma a artista (Bourgeois, 2004: 357). Um corpo que não cessa de ser refeito e reinventado, no qual a pele ganha cores e texturas múltiplas, se rarefaz.  

 

Referências bibliográficas

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Nota biográfica:

Gabriela De Laurentiis é bacharel em ciências sociais pela PUC-SP, e realizou intercâmbio acadêmico no Institut d'Etudes Politiques de Paris -Sciences Po.  Mestra pelo Departamento de História Cultural da Unicamp, com a pesquisa Louise Bourgeois e os modos feministas de criar, apoiada pela FAPESP.


 

[1] Este texto é resultado de dobras e redobras da dissertação de mestrado Louise Bourgeois e os modos feministas de criar (2015).

[2] Tradução livre: “você diz por meio de formas o que a maioria de nós tem medo de dizer por meio de qualquer expressão”.

 

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