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janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

 

Alice Brill, retratos de uma metrópole e suas bordas

Marina Rago Moreira

 

Resumo:

Este artigo traz a trajetória da fotógrafa alemã e judia, naturalizada brasileira, Alice Brill, que produziu imagens da cidade de São Paulo durante a década de 1950 especialmente. Na década do IV centenário da capital paulista, houve um grande esforço de se constituir uma imagem e um discurso hegemônico em torno do ideal do progresso na metrópole, aos quais as imagens de Brill frequentemente se contrapunham. O recorte da leitura é atravessado pelas relações de gênero e investiga como esta questão constitui ou ecoa no olhar desta artista.

Palavras-chave: fotografia; gênero; mulher e arte; São Paulo; iconografia

Abstract: This article presents the history of the German and Jewish photographer, naturalized Brazilian, Alice Brill, who produced images of the city of São Paulo during the 1950s especially. In the decade of the fourth centenary of the capital, there was a great effort to form an image and a hegemonic discourse around the ideal of progress in the metropolis, to which Brill images often were opposed. Our framework is crossed by gender relations and investigates how this issue constitutes or echoes the look of this artist.

Keywords: photography; genre; women and art; Sao Paulo; iconography

 

 

De origem judaico-alemã, a artista Alice Czapski Brill (Colônia, Alemanha, 1920 – São Paulo, Brasil, 2013) naturalizou-se brasileira, em 1949 e atuou como fotógrafa na cidade de São Paulo, sobretudo durante a década de 1950. Nos anos próximos à comemoração do IV Centenário da cidade, foi uma das raras figuras femininas a nos deixar ampla produção visual da metrópole que não parava de crescer.

Os anos de 1950 são reconhecidos, dentre a curta história da fotografia, como um dos períodos de maior produção de álbuns fotográficos em São Paulo (Carvalho e Lima, 1997). Nestes anos que antecedem o aniversário dos quatrocentos anos da cidade, em 1954, uma exaustão de imagens oficiais largamente divulgadas em outdoors, revistas ilustradas, cartões-postais e álbuns remete a um discurso viril forjado sobre o ideal de progresso.

As modernas formas da cidade apresentam-se como um futuro glorioso. O ideal do Bandeirante circula no imaginário da época como mito fundador, fortalecido por uma narrativa sobre o desenvolvimento da cidade. Reconta-se a história da antiga vila enfaticamente, numa linha contínua e ascendente, evocando a sua grandiosidade e potência, associada ao herói que teria desbravado o selvagem Trópico de Capricórnio.

No mesmo período, Alice Brill trabalhava como fotógrafa para o Museu de Arte de São Paulo e para a Revista Habitat, editada pelo casal Pietro e Lina Bo Bardi. Neste contexto, em 1952, Pietro Maria Bardi convida-a para realizar uma série de fotografias registrando a cidade livremente, segundo seu interesse e olhar (Kossoy, 2005). O intuito era a edição de um livro, ainda sem um projeto claramente definido, por ocasião das comemorações do IV Centenário.

 Em paralelo aos seus demais trabalhos fotográficos, para a Revista Habitat e como retratista, entre 1952 e 1954, Brill fotografou intensamente as ruas da cidade, a arquitetura, as atividades humanas e as sociabilidades urbanas, os habitantes ora como “tipos urbanos”, ora como personagens anônimos, compondo um rico conjunto de imagens. Sem a pretensão de compor um quadro total, a fotógrafa caminhava por uma cidade mutante e heterogênea, do centro aos subúrbios.

Frente a uma metrópole em virtuoso processo de modernização, encontramos nas imagens de Alice Brill desvios do discurso hegemônico circulante. Suas lentes não miram somente o edifício recém-construído ou monumentos a serem exaltados, mas passa pelas construções em andamento, as demolições e ruínas recentes, as várzeas ainda não ocupadas, os barracos dos bairros afastados do centro; seu olhar desviante registra também as bordas dos processos urbanos.

Recém-chegada ao Brasil, conviveu intensamente com professores e amigos do grupo de artistas imigrantes que se reuniam no Palacete Santa Helena, na Praça da Sé, centro de São Paulo, para sessões de modelo vivo e também fazia saídas aos subúrbios para pintar paisagens ao ar livre. Estes subúrbios, limiares entre o urbano e o rural, antes freqüentados com a pintura agora são fotografados, integrando um conjunto de imagens atravessado por uma visualidade moderna, que combinam a escolha dos assuntos e composição estética ousada. Como ressalta Daniela Alarcon,

“[...]a convivência com os artistas do Grupo Santa Helena apresentou a Alice os espaços que seriam explorados, de forma mais detida, em sua fotografia. Regiões e temas “invisíveis” da cidade tornaram-se, desse modo, parte de seu repertório” (Alarcon, 2008: 232).

Podemos nos perguntar hoje, ao olhar essas imagens, sobre aquelas novas construções, as ruas que foram asfaltadas, a organização do trânsito, vendo as filas dos ônibus, como essas mudanças ocorriam junto às transformações no dia-a-dia da população e em que medida afetaram as relações humanas no espaço público.

O homem que segue pela rua de terra com suas cabrasno bairro do Sumaré [01], ainda pouco urbanizado, hoje não existe mais. Em algumas décadas, aspectos da vida rural que ainda conviviam com o cenário urbano foram eliminados. O tal rumo ao progresso significava também caminhar no sentido de uma vida mais afastada do campo.

Atualmente há um movimento contrário, que alerta para os prejuízos da vida urbana, onde consumimos somente produtos industrializados e perdemos o elo com a natureza e o conhecimento da produção dos alimentos e demais itens de necessidade diária. Esse senhor caminhando com os animais nos lembra também do vendedor de leite, que realizava suas vendas de porta em porta, com leite fresco extraído de seus próprios animais ou vindo de algum pequeno produtor da região.

Uma população que compra o leite dessa forma, tem outra qualidade de alimento e relação com esse consumo. Para além do olhar nostálgico de quem viveu esse tempo, podemos elaborar um pensamento crítico hoje sobre as vantagens e desvantagens dessas transformações. Essa imagem, que Alice nos deixa, conta um pouco dos modos de vida tradicionais de então que foram extintos ao longo do processo de industrialização e urbanização.

Ela registra também a presença da cartomante sentada na escada do Viaduto do Chá que lê a mão de um transeunte curioso, disposto a se envolver com sua mística, apesar da correria da cidade. Fotografa a presença dos negros na cidade, não somente no trabalho ou em condição de pobreza como é mais usualmente apresentado, mas nos surpreende com a brincadeira da menina negra na roda gigante [03].

Se, por um lado, nos apresenta essa menina em um momento de lazer, ela está na parte baixa da roda e podemos interpretar como uma analogia ao processo de crescimento urbano também, uma engrenagem moderna que projeta uma fantasia de desenvolvimento a todos, mas que não alterou a desigualdade social, e sim aprofundou as questões sociais. Os negros continuam hoje vivendo nas periferias, com trabalhos desvalorizados e menor grau de escolaridade. Para Kossoy (2005:7), o conjunto de imagens urbanas produzidas pela artista constituem

“[...]um painel que revela o cotidiano de forma direta, e sempre com uma preocupação humanística, marca diferencial em sua obra.”

O álbum comemorativo com fotografias da cidade, no entanto, não se concretizou. As imagens permanecem inéditas em boa parte, sendo que algumas fotografias foram expostas ou publicadas em livros, bem como na revista Habitat, entre 1951 e 1962. Para esta revista e para o MASP, Brill fotografouainda outras regiões do país em viagens ou expedições fotográficas, bem como obras de arte e eventos do museu.

Seu interesse e sua ampla atuação no campo das artes plásticas a aproximavam das discussões que circulavam na revista. Ela mesma tem obras expostas nas primeiras bienais e é uma das fundadoras do MAM-SP. Em paralelo, os retratos de famílias e crianças foram importantes para sustentar-se na profissão. E também vale mencionar o interessante trabalho de registro das atividades promovidas pela Seção de Artes Plásticas do Hospital do Juquery.

Em 2000, o Instituto Moreira Salles incorpora ao seu acervo mais de 14 mil negativos de Alice Brill. Uma seleção deste material é exposta e publicou-se um catálogo homônimo: O mundo de Alice Brill (2005).

 

A presença estrangeira

Filha de Marte e Erich Brill, ambos judeus intelectuais de esquerda, Alice nasceu em Colônia (Alemanha), a dezembro de 1920, e logo passou a habitar Hamburgo, cidade portuária cosmopolita de intenso intercâmbio cultural. Ela teve sua infância, na República de Weimar, cenário cultural em que seus pais estavam fortemente envolvidos de diferentes formas, convivendo com diferentes vanguardas entre os coletivos expressionistas, aos quais seu pai foi ligado, e com as experimentações promovidas pela Bauhaus e a nova visibilidade.

Em 1934, Alice chegou ao Brasil com sua mãe e pouco tempo depoisteve a oportunidade de trabalhar na livraria Guatapará, em São Paulo, de um imigrante também judeu-alemão, especializada em literatura e artes e frequentada por intelectuais e artistas progressistas da cidade.

Provavelmente os contatos de Marte Brill fizeram com que a filha fosse parar ali, preocupada com os estudos interrompidos e a impossibilidade de financiá-los aqui (Fernandes, 2005: 17). Alice comenta que foi neste trabalho

“[...]onde pude continuar minha formação interrompida, através de muita leitura, e travar conhecimento com artistas e intelectuais” (Brill, 1988: 12), e em seu tempo livre dedica-se com enorme prazer à pintura.

Logo estabeleceu contato com Paulo Rossi Osir. O arquiteto-pintor havia conhecido seu pai, no circuito artístico local em sua breve permanência em São Paulo. Assim aproximou-se de outros artistas, envolvidos também com o Grupo Santa Helena, que serão seus professores, como Aldo Bonadei, Quirino da Silva e Yolanda Mohaly.

Este momento de sua formação é muito importante tanto para seu desenvolvimento nas técnicas de pintura, como na compreensão e discussão dos problemas da classe artística e desse contexto em São Paulo nos anos de 1930-40.

Durante os primeiros anos do Estado Novo (1937-45), atitudes antisemitas intimidavam a comunidade judaica no país.

Com o começo da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o cenário é tensionado. E somente a partir de 1942, o Brasil se vê forçado pelos Estados Unidos a assumir o apoio ao lado dos Aliados. Mas após este momento, Alice Brill, com sua paradoxal nacionalidade alemã-judia, permanece sob suspeita pela origem germânica. O estado limite de tensão gerado por estes conflitos nacionais carimbam os corpos identificados com seus territórios. Sua companheira em diversas incursões artísticas, Eva Lieblich Fernandes, relata que

“[...] na época da guerra, nós, refugiados do nazismo, éramos considerados “súditos do Eixo”. As viagens à praia eram proibidas. Qualquer viagem fora da cidade, aliás, era sujeita a ‘salvo-conduto’ da polícia.” (Fernandes, 2005: 18).

 

Formação artística e aproximação com a fotografia

Após o fim da guerra, seus parentes por parte de pai que se refugiaram nos Estados Unidos conseguem uma bolsa de estudos para Alice pela Hillel Foundation for Jewish Campus Life. Entre 1946 e 1947, ela freqüenta a Escola de Artes da University of New Mexico, em Albuquerque. Após longo período de aulas com participantes do Grupo Santa Helena (GSH) nas horas livres, passava agora por uma nova fase de formação no exterior. Teve a oportunidade de freqüentar aulas de sua preferência em humanidades e diversas técnicas artísticas, inclusive fotografia.

Incluí um curso de fotografia para tentar a vida como fotógrafa, no futuro” (Brill, 1988: 13).

Segundo Heron e Williams, desde o pós-primeira-guerra, as mulheres vislumbravam o potencial da fotografia como profissão. Nesse período, isto era uma verdade para as norte-americanas e européias, inclusive intensamente na Alemanha, onde Alice cresceu, mas na América Latina as coisas se deram em tempos diferentes.

Até os anos 1950, temos raríssimos exemplos de mulheres exercendo a profissão. Durante os anos subseqüentes à Primeira Guerra Mundial, a fotografia possibilitou que muitas mulheres jovens conquistassem independência financeira. Diversos cadernos vocacionais da época apresentam textos de fotógrafas estabelecidas contando sobre suas trajetórias profissionais para incentivar outras mulheres (Heron e Williams, 1996: XI).

Talvez Alice tenha vivenciado esta realidade na infância e ganhado uma percepção mais concreta desta possibilidade nos Estados Unidos, onde as mulheres tinham grande atuação no campo fotográfico. A área no Brasil também crescia e ela não hesitou na sua intenção de inserir-se profissionalmente com a fotografia.

Apesar de ser uma das primeiras mulheres a fazer fotorreportagens, não comenta sobre a questão de gênero em sua atuação, por modéstia talvez ou embebida num discurso humanístico moderno que busca falar da figura humana universalmente. Com a experiência que teve no exterior, provavelmente deparou-se com um número grande de fotógrafas atuantes que podem tê-la inspirado, mas no Brasil ela teve um papel pioneiro, ao lado de outra importante fotógrafa alemã, Hildegard Rosenthal.

Passou um intenso semestre em Nova York, onde fez cursos na famosa Arts Students’ League e trabalhou voluntariamente como assistente de um fotógrafo. Sua avó paterna, Sophie Brill vivia nessa cidade com sua tia Irma. Ao encontrá-las, Alice ficou sabendo detalhes da morte do pai no campo de concentração (Czapski, 1996). Parte da obra de Erich Brill estava guardada, após os duros tempos da guerra, em Amsterdã com uma tia. Durante este período, Alice recebeu os quadros e pôde enviá-los para o Brasil, que se encontram hoje no acervo do MAB-FAAP.

Na mesma época, conviveu com outros brasileiros que estavam em Nova York. A artista Djanira Motta e Silva esteve na cidade entre 1945-47, tendo realizado exposição individual na New School for Social Research. Alice tem um quadro que retrata a vista do seu atelier em Nova York. E também o casal Virgínia e João Batista Vilanova Artigas, já conhecido das reuniões do GSH.

O vínculo com o casal segue no retorno ao Brasil e quando Alice se casa com Juljan, constroem uma casa moderna desenhada por Artigas. A casa Czapski, no bairro do Sumaré, em São Paulo, é publicada na primeira edição da Revista Habitat. Na legenda das imagens descrevem-se os espaços principais e o laboratório no piso inferior com o comentário entre parênteses “a senhora é fotógrafa” (Habitat, v. 1, 1950: 11).

Ainda nos Estados Unidos, freqüentou aulas de gravura, uma linguagem que apreciava muito. De volta ao Brasil, estudou com Hansen-Bahia e depois com Poty Lazzarotto no MASP, instituição onde seenvolveu com muitos artistas e pensadores que buscavam promover o moderno na metrópole.No ano em que ela estava fora, Pietro M. Bardi inaugurava o museu, que se instalava em um dos andares do edifício sede dos Diários Associados, cedido por Assis Chateaubriande reformado por Lina Bo Bardi.

Segundo Sonia Gouveia, os nomes que constam do acervo fotográfico do museu são Sascha Harnish, German Lorca, Roberto Maia, Nelson Jurno, Jean Manzon, Edgar Peine, Richard Sasso e Ernesto Mandowski, muitos dos quais trabalhavam também para os Diários Associados.

Peter Scheier, que integrava a equipe do jornal que dividia o prédio com o MASP, também fotografou em muitas ocasiões as atividades ali realizadas. Sabemos também que Alice Brill retratou inicialmente eventos do museu e posteriormente reproduções de obras tanto para o museu como para a revista Habitat.

Os mesmos nomes eram frequentes nos créditos fotográficos publicados a cada edição no sumário da Habitat, além de Aurélio Becherini, Fernando de Albuquerque, Hans Gunther Flieg, José Medeiros, Hugo Zanella, José Moscardi, Marcel Gautherot, Pierre Verger, entre outros, e novamente Alice Brill, ao que consta, como a única mulher neste circuito.

Logo que retorna dos Estados Unidos, em princípios de 1948, Brill começa a fotografar as atividades no MASP. Já com seus próprios equipamentos fotográficos, trazidos do exterior. Com sua câmera Roleiflex 6x6 e lente 2:8, conta ela, “instalei o laboratório no porão do pequeno sobrado onde morava com minha mãe” (Brill, 1988: 13).

No ano seguinte, casa-se com Juljan Czapski, que colaborou no ofício como seu assistente, enquanto estudava medicina. Segundo Alarcon, pouco depois, um parente de Juljan que trabalhava na indústria fotográfica Zeiss presenteou o casal com uma câmera Ikonta 35 mm, de maior agilidade. Estas duas câmeras compunham o equipamento principal de Alice que fotografou intensamente de então até 1960 aproximadamente.

O primeiro trabalho que Alice consegue na revista Realidade foi participar de uma expedição fotográfica ao Mato Grosso para registrar os índios Carajás. Esta expedição, no entanto, tinha uma intenção clara de mostrar o progresso do projeto colonizador da Fundação Brasil Central (FBC), que organizava a viagem, a uma comissão parlamentar. O deputado Café Filho, sucessor do presidente Getúlio Vargas em 1954, estava presente junto a outros políticos e integrantes da FBC (Alarcon, 2008: 152).

Alice, que tinha planos de enviar uma fotorreportagem ao exterior, à revista Life, se frustra na empreitada. Lamenta o caráter da viagem, em que não permaneceram mais de duas horas nas aldeias indígenas. A missão afinal fora muito mais de cunho político que cultural ou antropológica. As fotos que chegam a ser publicadas no Brasil, na Habitat, são ainda criticadas por Max Bill pela composição intencional ou escolhas da fotógrafa como falta de técnica aos olhos do crítico [02]. As imagens se prestam a evidenciar o caráter da expedição, com os indígenas em seus trajes tradicionais ora ao lado do avião que transportara o grupo de brancos ora ao lado dos próprios oficiais que os visitavam, por vezes demonstrando incomodo.

Os trabalhos com fotografia são variados e, por um tempo, a renda do casal provém das fotografias de famílias, muito solicitadas na época. Brill fica conhecida por fotografar crianças em situação de espontaneidade, sem as tradicionais poses de estúdio, mas em ambientes mais confortáveis, ao ar livre ou em suas casas.

As famílias retratadas são geralmente compostas por pessoas do seu círculo de amizades, obviamente mais abastadas, e em grande parte relacionadas ao movimento moderno, como a família de Artigas, de Rebolo, Yolanda Mohaly, entre outros. Os retratos de Brill também buscam compor os artistas e suas obras, ou local de trabalho como no caso do retrato de Burle Marx à frente de um mural do artista e paisagista ou Mário Cravo em seu atelier.

O período de sua formação artística junto a este coletivo de artistas, sobretudo os do GSH que conviveram mais intensamente em aulas ou sessões de modelo vivo, possivelmente influenciou seu olhar sobre a metrópole, as paisagens suburbanas, o trabalho e as personagens urbanas.

Brill fotografa o cotidiano da cidade no movimento das feiras livres, o camelô na Lapa, as bancas de jornal, o sapateiro, o menino engraxate, assim como as filas nos pontos de ônibus do vale do Anhangabaú. Retrata a produção da cidade em variados níveis, flagrando de certa forma o que estaria fora da “pose oficial” da metrópole (Lourenço, 1995), surpreendendo a rotina citadina.

A pesquisadora Mariana Guardani pontua que a inserção profissional de Brill no campo fotográfico em São Paulo

“[...] circusntanciava-se, então, em um núcleo dinâmico das artes na cidade [...]: um circuito erudito de produção, promoção, reconhecimento e consumo, arraigado em um ideário de liberdade criadora e em preocupações estéticas encabeçadas por uma vontade modernizadora” (Guardani, 2011: 214).

Nos anos 1960, quando o marido estabiliza-se profissionalmente como médico, Alice acaba abandonando a sua profissão para dedicar-se exclusivamente à pintura e, depois, à técnica oriental do batik. Ainda assim, segue fotografando ocasionalmente, mas sem pretensões profissionais ou artísticas. No fim de sua graduação em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1975, começa a escrever para o Suplemento Cultural do Jornal O Estado de São Paulo, seguindo os passos da mãe jornalista. Nestes textos, posteriormente reunidos em um livro, retoma questões acerca da fotografia e das relações com a arte e a sociedade.

No artigo “A função da fotografia na arte contemporânea”, exalta sua admiração pelo fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, uma das poucas referências que podemos encontrar em seus textos de fotógrafos, cujo trabalho notadamente era apreciado por ela.

Cartier-Bresson, também pintor, considera a máquina fotográfica uma extensão do olho. Sua intenção de surpreender e fixar os momentos cruciais da vida humana caracteriza uma obra poética e emocionante, revelando a potencialidade artística inerente à fotografia, na mão de um grande artista” (Brill, 1988: 97).

Brill seguiu a carreira acadêmica e artística paralelamente, publicou um livro sobre o artista Mário Zanini em 1984, fruto de sua pesquisa de mestrado, e em 1990, escreveu sobre o artista Samson Flexor, até apresentar sua tese de doutorado, sobre a técnica do batik, que não foi ainda publicada.

 

Por uma poética feminina

“É interessante notar que no nível individual tanto a linguagem falada e mesmo a escrita, quanto o gesto e a voz traem a época, a cultura e a classe social de quem deles faz uso, revelando a procedência e a personalidade da pessoa, bem como suas emoções, sua bagagem cultural etc.” (Brill, 1988: 38)

Parece óbvio, mas é importante notar que uma fotografia, antes de qualquer discussão sobre seu aspecto realístico ou representacional, é produzida efetivamente pelo acionamento de uma câmera por alguém. Portanto, não há a fotografia sem o(a) fotógrafo(a). Éevidente que cada sujeito produzirá uma imagem distinta quando utilizar uma câmera, uma vez que temos perspectivas distintas de acordo com nossas experiências, histórias, traumas, interesses, desejos e intenções.

É fundamental assim, mapear as trajetórias do agente que produz as imagens das quais falamos. Os contextos sociais, culturais, político e econômico em que se insere.  Ao mesmo tempo, a obra adquire uma autonomia em relação ao próprio meio pelo qual é desenvolvida. Uma fotografia pode ser interpretada a partir da história dos seus bastidores, mas é enriquecedor também distanciar-se para ler um registro visual inserido na história da fotografia de modo mais amplo. Analisando os diferentes contextos que afetam a produção e perpetuação de uma visualidade.

As condições de vida daquele tempo eram bastante diferentes. Formação universitária, estudo superior, não eram algo usual entre as mulheres; suas possibilidades de trabalho eram restritas” (Fernandes, 2005: 15). O comentário da amiga que também imigrou para São Paulo ressalta a dificuldade da época, pouco comentada pela própria Alice em relação ao fato de ser mulher. Evidentemente, aos poucos, podemos buscar este aspecto em todos os textos e imagens e construir um mosaico de traços distintos em sua linguagem.

Ao longo desta pesquisa, fui transformando meu próprio olhar e enxergando novos grifos antes desapercebidos. Um processo que não cessa uma vez que olhamos para o passado sempre do presente e este não cessará, espero, de transformar nossos pontos de vista. Como diz Norma Telles, ao comentar seu trabalho sobre as escritoras do século XIX, não se trata apenas do silêncio imposto às mulheres,

“[...]porque a construção de gênero é ao mesmo tempo o resultado de um processo de representação e de auto-representação. Trata-se então não só de descobrir o passado, mas de encontrar uma nova forma de se relacionar com ele.” (Telles, 2005: web).

O mesmo podemos pensar das fotografias de Brill e de tantas outras imagens à espera de olhares que as multipliquem. E especialmente as imagens das cidades são elementos riquíssimos para que possamos vê-las ontem por distintas perspectivas que nos interessam hoje. A fotografia permite um diálogo com visões de outro tempo, mas que podem também ser muito atuais para as problemáticas que nos são caras agora. Basta estarmos atentos ao perguntar.

[01]Alice Brill

Homem levando suas cabras no bairro do Sumaré, c.1950

Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

 

[02]Max Bill. “Convite a fotografar”. Foram reproduzidas três imagens de Alice Brill, sem crédito de autoria. Revista Habitat nº2. São Paulo, 1951, p.68 (Acervo FAUUSP, retirado de Alarcon, 2008). A fotografia da índia Carajá (1948) no canto superior à direita também foi publicada em seu livro Da Arte e da linguagem (1988: 99).

 

[03] Alice Brill . Criança na roda-gigante, c.1950

Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

 

[04] Alice Brill . Vale do Anhangabaú, c.1950

Acervo Instituto Moreira Salles

 Disponível em: http://ims.com.br/ims/artista/colecao/alice-brill/obra/801

 

 

 

Bibliografia

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nota biográfica

Marina Rago Moreira

Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo em 2012, tendo pesquisado sobre gênero e movimentos de luta por moradia em seu trabalho de conclusão de curso. Atua como fotógrafa nas áreas de fotojornalismo, fotografia documental, fotografia de arquitetura, bem como em projetos sociais de educação e fotografia. E é editora de livros na Editora da Cidade, da Associação Escola da Cidade Arquitetura e Urbanismo.

 

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