labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

Song for a sleepless night - um imenso palimpsesto …

                                                         Ria Lemaire 

                                                                             

 

Resumo:

O texto parte da cantiga medieval galego-portuguesa da ¨velida que não dormia¨ e constata que diversas interpretações foram se amontoando sobre ela, século após século, até torná-la um palimpsesto que não mais deixa entrever as suas mensagens, nem o seu funcionamento inicial, nem a sua historicidade. No mesmo movimento mostra, a partir de uma frase da canção, algumas práticas de experiências internas transmitidas por grupos de mulheres assim como  o cantar de beguinas  e das grandes místicas que construíram a linguagem poética como literatura em vernáculo, diferenciando-a do ideal do amor cortês. Termina o texto no esmiuçar dos meandros da passagem da oralidade à escrita quando noções sem fundamento distorceram o entendimento das canções de amigo,  transformando cada vez mais o que diziam formando o enorme palimpsesto que o texto desfaz.

Palavras-chave: Historiografia, literatura medieval, cantigas galego-portuguesas, cantigas de mulher indo-europeias, místicas e poetas medievais.

 

[1]Os analfabetos do século XXI não serão aqueles que não sabem ler e escrever, mas aqueles que não sabem aprender, desaprender e reaprender.

                                                     Alvin Toffler

 

Song for a sleepless night     


Eu velida non dormia .............................I sit up and wonder........ I, who am

fair, could not sleep

lelia doura..................................... dellaly ........................................dare

lelia doura
                                                                  
 

meu amigo venia ..........if you are still coming and my friend was coming

edoi lelia doura way ....dellaly .....dare .........edoi

lelia doura

 

non dormia e cuidava ...................I sit up all night

I couldn’t sleep and I worried

lelia doura ............dellaly dare ................lelia doura

 

e meu amigo chegava .....until you arrive ......and my friend

was arriving

edoi lelia doura .............way dellaly dare.......... edoi

lelia doura

 

E meu amigo venia .......When finally you come ........My

friend was coming

lelia doura...................... dellaly dare ...................lelia

doura

e d’amor tan ben dizia .....you sing words of love ...........and

spoke so well of love


edoi lelia doura .............way dellaly dare ........................doi lelia

doura

 

e meu amigo chegava ......When at last you arrive.............. My

friend was arriving

lelia doura........................ dellaly dare........................... lelia doura

e d’amor tan ben cantava..... you lull me with rhymes .......and sang

so well of love

edoi lelia doura .......................way dellaly dare ...........................edoi

lelia doura

 

Muito desejei amigo.................. How long I’ve been wishing... Friend, I

greatly longed

Lelia doura ............................;..dellaly dare............................. lelia doura

 

Que vos tevesse comigo........... to have you here with me ..........to have

you here with me

Edoi lelia doura ................................way dellaly dare....................... edoi

lelia doura

 

Muito desejei amado ......................................How long I’ve desired you

Beloved, I greatly longedlelia doura .......dellaly dare ..............lelia doura

que vos tevesse a meu lado ..............here by my side and .............to have

you at my side

edoi lelia doura ...............................way dellaly dare........................... edoi

lelia doura

 

Leli leli, par Deus, leli .....................Dell dell, by God, dell..................... Leli

leli, by God, leli

elia doura .......................................dellaly dare ..............................lelia doura

 

ben sei eu que(n) non diz leli ............who doesn’t dell...................... I know

who doesn’t say leli

edoi lelia doura.................................. way dellaly dare............................. edoi

lelia doura

 

ben sei eu que(n) non diz leli.............. I’ll tell who doesn’t dell........... I know

who doesn’t say leli

lelia doura .....................................dellaly dare.................................... lelia doura

 

demo x’é quen non diz .......................the devil never dells

it’s the devil who doesn’t say

edoi lelia doura .....................way................ dellaly ..............dare edoi lelia doura

edoi  lelia doura[1]  ..........way ........................dellaly .... .....................dare[2] 

edoi lelia doura[3]          

                                                                                  

Uma amiga, jovem namorada medieval, canta essa canção de amor, cantiga de amigo,  conservada nos cancioneiros medievais em língua galego-portuguesa. Sua autoria foi atribuída a um poeta galego, Pedro Eanes Solaz, que os críticos geralmente apresentam como trovador, apesar de outros, tais como Ramón Menéndez Pidal,  terem sugerido a origem mais humilde de segrel  ou jogral.

A cantiga chamada de paralelística, é um gênero de  poesia dialogada, cantada originalmente ao desafio por duas mulheres, quer dizer: improvisada, do qual os cancioneiros galego-portugueses medievais  salvaguardaram um corpus de uns cem textos. Trata-se de um gênero antigo, indo-europeu, de poesia feminina lírica,  ao lado de gêneros lírico-narrativos femininos, tais como bailadas, romances e outros. Essas vozes de mulheres encontram-se nas literaturas de muitos países europeus, consignadas geralmente, na fase da transição da oralidade para a escrita, como ¨canção de mulher anônima¨, não só nas suas literaturas medievais, como também nas de épocas posteriores e,  até uma época muito  recente, bem adiante no século XX,  nas recolhas dos folcloristas. 

Em Portugal, bem pelo contrário, essas cantigas tão tipicamente femininas e inegavelmente radicadas no mundo rural, constituem o primeiro capítulo da literatura medieval portuguesa.  Atribuídas a poetas-escritores exclusivamente masculinos, - trovadores, segréis e jograis -, a historiografia convencional considera essas atribuições provas de Autoria no sentido moderno da palavra. Seriam, em terras galego-portuguesas, esses Autores masculinos que com uma intuição genial da alma feminina teriam posto as cantigas nas bocas das mulheres.

O meu proposito não é demonstrar mais uma vez o ridículo dessa historiografia nacional portuguesa, produto de uma época e ciência da literatura que os estudos pós-modernos já desmascararam como profundamente patriarcais e misógenas, cegamente scriptocêntricas e perigosamente nacionalistas.  Já se generalizou a consciência crítica, hoje em dia, de que foi através da transformação dos seus preconceitos em pressupostos da nova ciência da literatura  que os intelectuais, quase todos masculinos, brancos e filhos das burguesias nacionais, inventaram e estruturaram as histórias das literaturas nacionais. Ao amontoaram no decorrer dos séculos XIX e XX, em cima dos próprios textos, interpretações e teorias que confirmavam e reforçavam os seus preconceitos/ pressupostos, eles transformaram os textos em palimpsestos que muitas vezes ocultam,  mutilando-as,  as mensagens emitidas pelas vozes medievais transcritas nos cancioneiros.

O meu proposito é ilustrar, a partir do simples exemplo da cantiga da velida que não dormia, como, - e apesar do questionamento radical  que trouxeram os estudos pós-modernos -, os preconceitos que estão na base da ciência da literatura convencional continuam permeando, distorcendo e desvirtuando os próprios textos, a sua historiografia  e  o convívio dos leitores com eles ;  continuam  – num processo  perverso  e inconsciente -  inculcando os velhos preconceitos na mente dos leitores. Ao propor outra leitura da cantiga, queria provocar uma reflexão sobre o dilema que põem, ao intelectual de hoje, a existência e o ensino  de uma historiografia  e ciência da  literatura nacional  cujas bases e produtos são tão deturpados.  Será que é possível tentar completar ou corrigi-las de dentro, ficando na ¨ordem do discurso¨ (Foucault) vigente,  mantendo a convicção de que existe e pode existir UMA, única, verdadeira história?  Ou impõe-se a necessidade de redigir novas historiografias  e, se for essa a opção : como definir os seus  pressupostos,  condições,  relações e novas linhagens?

 

‘Eu velida não dormia …’

Esta cantiga é uma canção de amor, improvisada dentro do grupo de idade das amigas/irmanas, as mulheres jovens de idade núbil da comunidade rural. Canção de trabalho ou de dança, ela lhes permite trocar as suas  experiências amorosas  e sua  vivência do amor nos contatos com o grupo de idade dos amigos, os homens  jovens em idade núbil. A performance da cantiga,  através do diálogo/desafio, faz dela uma experiência ao mesmo tempo altamente individual e socializada, partilhada dentro do grupo de idade, sendo que o refrão era cantado por todas as mulheres presentes.  Esta cantiga de ¨aprendizagem do amor¨  tem as características  versificatórias do cantar ao desafio, tais como:  as rimas alternadas em  –i-   e –a- , a  conjunção de coordenação  e no começo dos versos  e a  repetição com variantes dos próprios versos.

Ela tem também a economia parcimoniosa e precisão das palavras (quase só verbos e substantivos) tão típicos do lirismo das tradições orais da mulher indo-europeia. A sua linguagem do amor é ao mesmo tempo concreta e metafórica: se ver/se falar, dizer d’amor/cantar d’amor, dormir, folgar/sonhar …  dizem uma atividade concreta  e, metaforicamente,  a união sexual. Cantar cantigas de amigo, não dormir, cuidar,  suspirar,  pagar-se dos cabelos, mirar  as ondas do mar,  bailar,  tanger o adufe … são atividades concretas e, ao mesmo tempo, maneiras de expressar o desejo libidinal. Sentar-se debaixo da aveleira ou no verde prado, lavar os cabelos na fonte, ir à fria fonte …  são  iniciativas que a jovem pode  tomar  para ver o amigo e  satisfazer o desejo.  A cantiga da velida que não dormia conta uma dessas experiências : a sua felicidade e satisfação exultantes  depois de  uma noite de amor passada com o amigo.

Quando a velida muda de idioma

Ao compararmos o texto da cantiga portuguesa com a tradução em inglês[4], publicada na antologia (coluna 2) com o número  19 sob o título de ‘Song for a sleepless night’,  constatamos logo que o tom mudou completamente. Já a presença de um título altera o caráter da cantiga. Sugere-se que se trata de um texto da poesia escrita, sendo que as poesias escritas geralmente têm título. A poesia da tradição oral não tem, nem, alias, a da primeira fase da transição da oralidade para a escrita.

Situada em português num passado feliz, a tradução coloca a cantiga no presente (I sit up, you come…). A mudança do tempo do verbo transforma um diálogo de mulheres, composto de versos ligados por coordenação, uma experiência partilhada por elas, num monólogo dirigido ao amante. Os sentimentos de certidão e felicidade da jovem portuguesa, o fato de ela poder apresentar o acontecido como cumprimento do que foi combinado com o namorado, sumiram ao falar inglês. Os verbos no presente  reforçam a incerteza (I wonder if) e  a ânsia (I sit up), expressas em versos subordinados uns aos outros (if, until, when) e  sublinhadas por uma presença invasiva de advérbios que exasperam a ânsia (still, until, finally, at last, how long). Relação desigual, de homem forte com mulher fraca, dependente.  A tradução de ¨e d’amor tão bem cantava/dizia¨ (expressão da união sexual feliz) é muito reveladora nesse sentido: ¨you lull me with rhymes¨, como fazem as mulheres com os nenês e as crianças:  ninar,  

Tradução é sempre um pouco (ou muito) traição, como já foi observado tantas vezes, mas ao compararmos a tradução definitiva com a ¨literal¨ (coluna 3), podemos constatar que o tradutor mudou, ¨traiu¨, conscientemente a identidade da jovem . Ao transformar a certidão e felicidade da amiga em incerteza e ânsia, a tradução adapta e conforma a representação da jovem namorada à imagem dela convencionalmente divulgada pela historiografia oficial: as amigas da história da literatura portuguesa são mulheres infelizes, queixosas, enclausuradas na vida privada onde esperam ansiosa e passivamente o amante. A transformação da poesia dialogada em monólogo tem o mesmo efeito: a cantiga torna-se mais parecida com a poesia monologada de fin’amors da cantiga de amor masculina e integra-se no corpus das 400 cantigas de amigo monologadas que os cancioneiros salvaguardam também e que têm muito mais afinidades com a visão do amor – fin’amors - da cantiga de amor masculina. O fato de o tradutor ignorar (deliberada ou inconscientemente ?) as características do discurso amoroso das cantigas de amigo contribuirá mais ainda para a transformação da identidade da namorada. O tradução ¨literal¨ (coluna 3) do verbo cuidar, por  seu sentido do século XX  (I worried) oculta o fato de que,  na cantiga de mulher,  cuidar  é sinônimo de  não dormir  e significa: ¨desejar¨.  A tradução da  expressão não dormia  pela experiência moderna da insônia ansiosa : ¨I could not sleep¨ (coluna 3), em vez da tradução literal que é : ¨I did not sleep¨,  permite compreender o processo que levou, em seguida,  à sua  tradução definitiva na coluna 2 por: ¨ I sit up and wonder¨.

 

 Fechar os olhos e não dormir …

As pessoas que praticam a meditação sabem a importância dessas duas posições conscientes que constituem um exercício básico para atingir o estado de elevação espiritual chamado hoje em dia de meditação. Trata-se de uma prática à qual  os seres humanos de todos os tempos e culturas deram nomes diferentes, mas que têm uma característica comum: a de denotar uma capacidade humana e uma prática de, - por uma decisão consciente e deliberada, por um esforço de concentração mental e emocional muito forte, por exercícios de respiração ou visualização, de oração silenciosa ou canto religiosos, pela utilizacão de drogas, ascese ou  jejuns repetidos…  - , passar a outros níveis de consciência, compreensão e vivência de si próprios, do ser humano, da natureza  e do universo. 

Existia nas civilizações indo-europeias, e ainda na Idade Média europeia, uma grande variedade dessas práticas, tanto nas comunidades tradicionais rurais como nas comunidades religiosas, exercidas tanto por homens quanto por mulheres, desde a dos sonhos acordados, a das êxtases dos guerreiros, a das  levitações,  até às grandes experiências de êxtase religiosa  dos homens e mulheres místicas, das quais testemunham, tanto aberta quanto simbolicamente, os manuscritos medievais e os dos inícios dos tempos modernos. 

As diversas vozes femininas, leigas e religiosas, ao cantarem/contarem essas experiências espirituais, têm, no decorrer dos séculos e ao passar de um país para outros países, características comuns que não se encontram (ou se encontram com acentos bem  diferentes) nos textos dos homens. As mulheres cantam um amor que é amor-desejo, a experiência  de um corpo que procura e atinge a sua satisfação na união física com o amado – união ¨sonhada¨ e realizada pela força do desejo. E … essa experiência íntima e individual, é transmitida, partilhada pelas mulheres dentro do grupo das mulheres; ela pertence ao mundo das mulheres exclusivamente. Cantar/contar é iniciação e aprendizagem.

Havia, por exemplo,  os sonhos acordados de jovens namoradas,  quando, à noite,  impulsionadas pelo amor-desejo –os amores- do namorado ausente, elas conseguem visualizá-lo, senti-lo fisicamente e viver/¨sonhar¨ a união sexual com ele sem ele estar presente. O capítulo V da Bíblia, intitulado Cântico dos Cânticos, contém uma recolha variada de canções de mulher, atribuídas ao rei Salomão ; uma delas  evoca o começo de um tal ¨sonho¨:

Eu dormia, mas o meu coração estava acordado

E ouvi meu amigo bater na porta

(…)

E abri  a porta para o meu amigo

Mas ele já havia ido embora.

Como eu queria ouvir a sua voz.

(…)

Havia uma grande variedade de canções para os trabalhos do grupo das mulheres adultas, os contos só para mulheres, os cantos e contos iniciáticos das reuniões secretas das mulheres sábias, acusadas mais tarde de ¨bruxaria¨. E havia as visões e êxtases das mulieres religiosae, tais como as praticavam, ritual e religiosamente, as comunidades das beguinas, visões descritas pelas grandes escritoras místicas que são também as fundadoras da literatura mística em línguas vernáculas, tais como Hadewych de Antuerpia (1210-1260) e Mechtild de Magdeburg (1210-1282). Vivendo geralmente em comunidades de mulheres, dedicavam-se a uma devoção autônoma com o objetivo de visualizar a presença concreta do corpo do Cristo, sentir e tocar esse corpo, se unir a ele e experimentar uma união/fusão total com ele, tanto física quanto emocional e espiritualmente. Hadewych e Mechtild não são só noivas metafóricas, espirituais do Cristo; elas são as suas amantes de verdade. O seu amor do Cristo, chamado de Minne, inclui a dimensão física, sexual e sensual. Neste sentido, o misticismo das mulheres é bem diferente da espiritualidade da unio mistica que praticavam os homens místicos na mesma época, como observou e comentou o monge franciscano, Lamprecht von Regensburg (1215 – 1250) : ¨Meu Deus, que arte é essa que uma mulher idosa sabe praticar melhor do que um homem erudito!¨

Minne versus fin’amors

A Minne  é um amor radicalmente diferente tanto do ideal cortês de fin’amors, quanto  do da doutrina oficial da Igreja católica, ambos baseados na separação radical do corpo e do espírito. A Minne (literalmente: amor)  é uma experiência ao mesmo tempo física e espiritual, às vezes intensamente sensual; a ascensão e o acesso ao divino  têm a sua  base na corporalidade, como explica Hadewych nos poemas, visões e cartas: ¨zodat ik hem kon begrijpen en voelen¨ - para eu o compreender e sentir . O discurso da Minne é parecido com o das jovens namoradas da cantiga de amigo: deitar-se na cama/não dormir/dormir acordada/dormir/sonhar… que significam: desejar, querer e realizar a união mística através do encontro físico (sonhado) com Cristo. 

Como as cantigas paralelisticas, os  textos (poemas, visões misticas, cartas tanto em prosa quanto em verso) de Hadewych de Antuérpia têm como destinatárias exclusivas o grupo   das suas vriendinnen (lit: amigas) dos grupos de beguinas que viviam em comunidades. O seu objetivo é explícito: descrever as suas experiências misticas realmente vividas, explicá-las e transmitir os conhecimentos, técnicas e práticas da experiência mistica; é partilhar, socializar  e ensinar sistematicamente um conhecimento esotérico, iniciático, destinado às mulheres do movimento das beguinas.

A vivência e o ensino das mulheres baseavam-se na convicção da unidade indissociável de corpo, mente, emoção e espírito, doutrina radicalmente oposta à da Igreja católica cujo dogma principal era o da separação e hierarquização de corpo e do espirito e da diabolização do corpo e da sexualidade como essencialmente inferiores e fontes do pecado. Aliás, Teresa de Avila (1515-1582), já nos tempos modernos, ainda descreve explicitamente as suas experiências místicas da união/fusão  com o Cristo como sendo  ¨de corpo presente¨; o seu desejo intenso de se aproximar do corpo do Cristo levava-a a uma forma de ascensão espiritual que praticam hoje em dia ainda monjas budistas, chamada levitação[5]

Além disso, essas experiências espirituais realmente vividas e testemunhadas  pelas mulheres graças a uma sexualidade autônoma que não precisava da presença física do homem, ao subtraírem-se ao controle dos poderes leigo e eclesiástico, constituíam uma ameaça real para a ordem estabelecida por eles. Foi essa a razão pela qual algumas beguinas e centenas de milhares de mulheres sábias, desde o século XII e bem adiante nos tempos modernos, foram queimadas nas fogueiras da Inquisição, acusadas de serem  histéricas, loucas, heréticas, bruxas, amantes do … diabo.

 

Da oralidade para a escrita

Tanto os textos das cantigas de amigo paralelísticas, como os das grandes autoras místicas do século XIII (Beatriz de Nazareth, Hadewych de Antwérpia, Mechtild de Magdeburg  e tantas outras) pertencem a um momento crucial da história do mundo ocidental, quando mulheres e homens que sabem escrever, escribas e copistas, começam a utilizar a tecnologia da escrita e o alfabeto latim (até essa altura reservados exclusivamente para transcrever e copiar textos em latim) para registrar textos em línguas vernáculas, produzidos e transmitidos oralmente de geração em geração. Nasce a manuscritura medieval com a sua variedade infinita de textos ditados/cantados/contados nas línguas das pequenas nações. Trata-se de textos transcritos, ainda não escritos no sentido moderno da palavra. As cópias desses textos transcritos serão, em seguida, adaptadas[6] pelos copistas às necessidades (linguísticas e outras) dos públicos de outros locais, outras regiões que vão ¨ver e ouvir¨ a sua recitação ou declamação em voz alta. Porém, nenhum dos manuscritos que salvaguardam as visões de Hadewych de Antuérpia são da época; todos são cópias (de cópias ?) de originais perdidos. Esse foi também o percurso das cantigas de amigo paralelísticas galego-portuguesas que contêm fenômenos linguísticos antigos que não existiam mais na época em que os cancioneiros, relativamente tardios, foram confeccionados.

 Com tantos séculos que os separam da época da transição da oralidade para a escrita, não é difícil adivinhar os problemas gigantescos e os questionamentos  que surgirão quando,  no século XIX, os eruditos e intelectuais redescobrem progressivamente as cantigas. Foi na altura do grande movimento de redescoberta das origens orais, vernáculas das tradições dos povos europeus, iniciado pelo Romantismo, como reação contra a visão oficial da filiação exclusivamente escrita das origens greco-latinas e hebraicas, vigente desde a época do Renascimento. O movimento trouxe uma riquíssima tradição, de inspiração predominantemente germânica, de estudos diacrônicos, historicisantes e comparatistas.  Dentro do grande e violento  processo politico da formação dos grandes Estados-Nações europeus, rematado só em 1870,  estava reservado  um  lugar de destaque para os intelectuais cujos estudos diacrônicos forneciam o material para  um verdadeiro culto das raízes as mais antigas possível como legitimação ideológica  da violência imposta aos povos das pequenas nações.

A procura das raízes  levou os intelectuais, bem além dos documentos escritos da Antiguidade greco-latina, ao  mundo da oralidade indo-europeia e à descoberta de dois mundos culturais: -  o dos homens e o das mulheres -, que correspondiam à divisão tradicional do trabalho econômico entre os sexos. O mundo dos homens, especializado nos gêneros épico e épico-narrativo, era contado e cantado geralmente entre homens só nos momentos de lazer, com circunstanciadas descrições e inúmeros pormenores  e um ¨som¨ ou melodia adaptada às necessidades da palavra poética. O mundo das mulheres estava voltado para os gêneros lírico e lírico-narrativo, cantados e contados como acompanhamento de todas as atividades – econômicas e outras -  da vida de mulher; a sua  linguagem poética reduzia-se ao essencial e adaptava-se ao som que dava e  acompanhava o ritmo específico de cada atividade.

 

Carolina Michaëlis de Vasconcellos – ¨o Livro das Donas¨

Foi uma mulher erudita alemã, formada nessa tradição cientifica predominantemente alemã, Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925) que trouxe para Portugal a tradição rigorosamente científica de edição textual  historicisante e a teoria da forte participação do mundo das mulheres na vida cultural medieval. O volume I da sua edição crítica do Cancioneiro da Ajuda[7] é dedicado ao estudo filológico e histórico da cantiga de amor. Curiosamente, este volume contém dois longos capítulos (que se estendem das páginas 769 até 940) dedicados à canção de mulher na Península Ibérica! Nesses dois capítulos, a autora expõe todos os dados, argumentos e provas que ela conseguiu reunir em torno da existência na Península ibérica – e sobretudo na atual Galicia/Galiza - de uma riquíssima tradição secular de poesia cantada feminina, composta pelas próprias mulheres e bem diferente da tradição da poesia do amor cortês.

Infelizmente, quando Dona Carolina publicou essa edição crítica das cantigas de amor do Cancioneiro da Ajuda, ao anunciar a futura publicação de um ¨livro das Donas¨, os tempos tinham mudado. Foi a época da fundação das Faculdades e Departamentos de Letras cuja missão era formar os futuros professores do ensino secundário. Organizados em torno de três disciplinas: língua nacional, história da língua nacional e literatura nacional, os grandes valores e preconceitos da burguesia nacional tornaram-se ¨ciência¨ ao serviço da formação de bons cidadãos. Instalou-se um espírito radicalmente neo-positivista, de teor francês e radicalmente anti-alemão, nos estudos de Letras em geral e de literatura medieval em particular. Não haverá espaço, na visão do mundo neo-positivista que vai marcar os estudos de Letras do século XX, para milhares e milhares de tradições orais autóctones que atravessaram os séculos, graças à transmissão da sua  Memória-Tradição pelas vozes dos homens e das mulheres das comunidades locais e regionais – pequenas ¨nações” – que compunham a Europa até à Revolução francesa.

 

Cem anos de neo-positivismo

         Já no apogeu do neo-positivismo, foi publicada, em 1927-1928, a primeira edição crítica do corpus completo das cantigas de amigo, dialogadas e monologadas,  em 3 volumes com o título Cantigas de amigo dos trovadores galego-portugueses, por um aluno de D. Carolina, José Joaquim Nunes.  Essa primeira edição marcará o começo de uma abordagem que vai até hoje monopolizar os estudos da cantiga de amigo: organizada em torno dos nomes dos poetas-autores, ela deu início a uma longa série de teses de doutoramento e estudos que transformam as atribuições dos cancioneiros em perfis de grandes escritores-autores e os textos em pretextos para intermináveis discussões sobre variantes, erros dos manuscritos,  peculiaridades linguísticas e versificatórias. O triste apogeu dessas atividades vai ser, em 2003, a publicação de nova edição crítica, intitulada 500 Cantigas d’Amigo, na série das Obras Clássicas da Literatura Portuguesa. Fiel à tradição criada por José Joaquim Nunes,  o critério da organização dos textos é o dos autores-escritores e, consequentemente, a mistura do corpus do gênero bem peculiar das cantigas dialogadas  com o corpus muito maior e bem diferente do gênero das monologadas.

 A estratégia do espalhamento das cantigas paralelísticas  individuais impede a tomada de consciência da sua especificidade que uma apresentação como gênero provocaria quase automaticamente. Essa nova edição ainda vai além dos preconceitos da edição de Nunes, ao inserir esses nomes dos ¨autores¨masculinos numa simples lista alfabética de trovadores e jograis, sem menção da sua origem nem da época de sua atuação, lista que obedece  aos objetivos nacionalistas da série (de clássicos portugueses) e apaga toda e qualquer alusão à terra de  origem da maioria das cantigas paralelísticas, a saber, a atual região Galiza/Galicia, a parte noroeste da Peninsula ibérica que não é portuguesa. Foi esse o trajeto também dos textos das beguinas místicas. Historiografadas como primeiro capítulo da literatura holandesa, eles são na verdade, flamengo-brabanções (Bélgica) e pertenciam a uma área cultural e regional diferente. 

 

Conclusão

A minha leitura pós-nacionalista da cantiga da velida que não dormia permitiu ver que essa cantiga, inserida nos quadros da historiografia e ciência da literatura nacional portuguesa, transformou-se num pesado palimpsesto de textos acumulados em cima do texto original e cumulativos no sentido de silenciar cada vez mais as vozes que a cantavam e as mensagens emitidas. Obliteração progressiva e cumulativa, como ilustram a tradução inglesa (1996) e a nova edição crítica (2003) das cantigas de amigo e que foi a triste sorte de quase todas as vozes de mulheres da Europa medieval, ao entrarem no mundo da escrita, a exemplo (bem mais antigo) das canções de mulher  incluídas no capítulo do Cântico dos Cânticos da Bíblia .

Desfazer esses inúmeros palimpsestos tornou-se, epistemologicamente, possível graças à uma combinação consequente de diferentes questionamentos pós-modernos do discurso vigente (viricentrismo, scriptocentrismo, nacionalismo, universalismo). Como mostrou o simples exemplo da cantiga da velida, essa desconstrução abriu os caminhos para fascinantes redescobertas de vozes, textos, áreas geográficas, épocas, culturas e  abordagens científicas (a etnologia, a ciência do folclore, o comparatismo), que a formação acadêmica convencional desprezava,  silenciou ou excluiu. É a combinação dessas perspetivas críticas que permitiu avançar, abrir caminhos para novas abordagens, bases de  uma releitura que acaba  por levar o pesquisador/ leitor a uma consciência nova e dupla.

 A primeira é a de que a historiografia convencional da literatura da Idade Média, pelos seus pressupostos errados, é muito mais um capítulo da história da ciência das Letras do século XX do que uma história do seu objeto de estudos, a Idade Média,  fato denunciado desde os anos 80 pelos grandes mestres medievistas, tais como Paul Zumthor (1915-1995) e D.W. Robertson (1914-1992). E ... ela não é A história única e verdadeira, capaz de abranger o seu complexo objeto de estudo. Bem pelo contrário: ela criou uma¨ordem do discurso¨ (Foucault) cujo objetivo explícito foi excluir as outras histórias do campo de visão do leitor do século XX, por exemplo, a das mulheres como agentes culturais/literárias de uma tradição secular autônoma que tem a sua própria linguagem e linhagem[8], a das tradições orais na sua transição da oralidade para a escrita que, elas também, têm a sua própria história e as duas linhagens, a dos homens e a das mulheres, ou ainda a das culturas regionais e muitas vezes transfronteiriças que renascem nesse limiar do século XXI. 

Como escreveu um dos grandes futurólogos do nosso tempo, Alvin Toffler[9] (1928-2016), seremos analfabetos, e então: ¨analfabetos medievistas¨, se não aprendermos a desaprender e reaprender, quer dizer: desaprender os pressupostos e ensinamentos/dogmas que foram as bases da ciência convencional  das Letras no século XX, desmontando os palimpsestos por eles amontoados.

Essa nova atitude implica a escuta respeitosa  das vozes, dos conhecimentos, dos textos literários, das abordagens científicas baseados na experiência e observação da vida vivida, respeitar  as ciências elaboradas em cima delas. Implica aprender e reaprender com elas em vez de as desrespeitar e excluir. Será a partir desse  contínuo processo de desaprendizagem/aprendizagem,  que se torna possível redigir/ recriar/reinventar  as histórias das vozes silenciadas e das suas linhagens, permitir que as jovens gerações aprendam a tomar conhecimento delas  com respeito e admiração.          

 

 

nota biográfica:

Ria Lemaire-Mertens é holandesa e professora emérita de literatura portuguesa e brasileira da Universidade de Poitiers (França). Inicialmente medievista, com tese de doutoramento sobre as vozes poéticas de mulheres e homens na literatura medieval em línguas românicas, ela se especializou mais tarde, como diretora do Acervo Raymond Cantel de Literatura de Cordel brasileira da Universidade de Poitiers, em estudos comparados em tradições orais na sua transição da oralidade para a escrita. Essa transição, da qual tanto a literatura medieval há muitos séculos atrás, como a literatura de cordel desde finais do século XIX, são produtos fascinantes, permitiu, pela comparação sistemática das duas literaturas, elaborar questionamentos novos sobre os discursos acadêmicos e o seu funcionamento em relação a esses seus objetos de pesquisa e estudo.            

 

 

Notas

 

[1] Lirica profana galego-portuguesa – corpus completo das cantigas medievais con estudio biográfico, análise retórica e bibliografía específca, vol. II, Santiago de Compostela, 1996 : 754

[2] Tradução de Richard ZENITH, 113 Galician-Portuguese Troubadour Poems, Carcanet Press Limited, Manchester, 1995 : 38-41

[3] Nas Notas (op.cit. 1995 : 248-249), o tradutor dá a sua tradução literal da cantiga que nos permite aquele olhar, tão almejado pelos críticos, no próprio ¨ateliê¨ do tradutor.

[4]  Não incluiremos na análise as últimas duas estrofes que sãem radicalmente não só dos  esquemas versificatório e discursivo, com também do tom da cantiga e do seu conteúdo, elaborados nos pares de estrofes. Além disso, a  presença, nessas duas estrofes finais, de Deus e do diabo, tão alheios ao mundo da cantiga de mulher, sugere a mão do clérigo-copista, desejoso, como acontece em tantos outros textos da época, de épocas posteriores e de outros países,  de imprimir no texto a doutrina da Igreja católica.

[5] Levitação que praticavam também, em reuniões secretas de mulheres só, as mulheres das comunidades rurais  tradicionais indo-europeias. A levitação e a deslocação pelo ar faziam parte integrante das práticas e dos   conhecimentos iniciáticos, sagrados do mundo das mulheres. Perseguidas e queimadas nas fogueiras das Inquisições, essas mulheres sábias de outrora,  hoje em dia,  estão integradas no imaginário moderno sob forma de bruxas feias, velhas e sujas que se deslocam no ar sentadas na sua vassoura para encontros pecaminosos com o diabo.

[6] O termo alemão que denota essa atividade da manuscritura medieval é muito revelador nesse sentido. Não é übersetzen - traduzir (para outro idioma), é umschreiben escrever diferente, uma atividade muito mais simples que consiste em transcrever o texto a ser copiado ao substituir palavras e expressões do texto original pelos  variantes locais ou regionais do público-alvo..

[7] Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Cancioneiro da Ajuda, 2 vols,  Niemeyer, Halle, 1904

[8] Um lindo exemplo dessa nova consciência da linhagem feminina é o livro organizado por Luciana Calado Deplagne, As intelectuais na Idade Média- pensadoras, místicas, cientistas e literatas, Ed. da UFPB, João Pessoa, 2015

[9] Alvin Toffler, Future Shock, Bantam Books, New York, 1970.  Foi um dos grandes pensadores-futurólogos do nosso tempo e fonte de inspiração para os intelectuais desejosos de se libertar do discurso acadêmico convencional  que nesse limiar de um novo século se torna cada vez mais obsoleto e contra-produtivo. Toffler faleceu, no dia 27 de junho 2016,  no momento em que estava redigindo esta conclusão que tanto deve aos trabalhos dele. 

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016