labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

Narrar é preciso, chorar nem tanto: revisitando Lya Luft

Rita Terezinha Schmidt

 

Resumo:

Trata-se de uma leitura de cinco romances de Lya Luft, publicados nos anos de 1980, uma década de produção romanesca significativa de autoria feminina no Brasil. Destaco a cena da narração enquanto lugar de constituição das narradoras como agentes do discurso, buscando identificar no discurso como ato os seus espelhamentos, ambivalências, conflitos, rupturas e auto-descobrimentos.

Palavras-chave: narradora; discurso;desejo; crítica cultural.

 

A obra de Lya Luft ganhou expressão no cenário da literatura brasileira de autoria feminina na década de 1980 e foi objeto de vários estudos críticos[i] que, a par de seus enfoques, seja pelo caminho sociológico ou pelo psicanalítico, tendem a revelar no processo hermenêutico, os fechamentos ideológicos registrados no nível da representação das personagens femininas, investindo na obra como um espaço simbólico sitiado pelos condicionamentos e cerceamentos da cultura patriarcal. Na contramão a essas abordagens, não menos importantes, pretendo explorar, em uma leitura horizontal e despretensiosa, os deslocamentos e as rupturas, às vezes quase silenciosas, que os textos estabelecem com relação a essa cultura na medida em que dramatizam o agenciamento feminino na construção um discurso próprio.

Invariavelmente surpreendidas no microcosmo familiar, as protagonistas de Lya Luft experimentam um estado de marginalidade, um exílio afetivo, sexual e cultural, de onde observam o medo, as frustrações e o seu assujeitamento a uma ordem repressora que, de uma forma ou de outra, as paralisa ou as incapacita, em seu acesso, ao desejo de ser, à potencialização de sua humanidade na direção de uma vida plena. Cerceadas por papeis determinantes, essas protagonistas mergulham para dentro de si mesmas, captando pelos fios da memória, a fissura básica de suas identidades: de um lado, um comportamento que internaliza a repressão, de outro, um questionamento quase obsessivo da condição de “feminilidade funcional”.[ii] A duplicidade dessas mulheres não emerge, contudo, como uma manifestação de um dado natural, uma qualidade inerente do feminino, frequentemente mitologizado como máscara ou dissimulação em textos da tradição literária patriarcal[iii], mas como o produto de uma ordem material que as circunscreve em uma realidade contingente e historicamente determinada, a qual as narradoras procuram entender para poder escapar de suas garras.

Assim, minha estratégia de leitura consiste em redirecionar o foco crítico da cena da representação para a cena da narração, para a questão do sujeito narrador e sua relação com a palavra, uma vez que todas as narrativas se constroem a partir do ponto de vista em primeira pessoa. Mesmo que em O quarto fechado(1984), a protagonista-narradora não seja a única a encetar o relato, a maior parte da narrativa se desenrola através de suas percepções no papel de focalizadora. Dentro desse quadro, proponho uma leitura que Mieke Bal, em sua obra Death and dissymetry (1988), define como “conter coherence reading” e cuja estratégia é a de fazer emergir à superfície aquilo que é relegado pelas leituras anteriores, pois “counter coherence [...] starts precisely with what is denied importance” (BAL, 1988 : 17). O objetivo é trazer para o primeiro plano a constituição do eu como sujeito agente da busca do discurso como ato, discurso esse com valor ético na medida em que é o meio através do qual as protagonistas encenam a sua relação com o outro, e com o outro de si mesmas.

 É no nível do eu narradora que se trava a mais intensa batalha de forças entre o eu representado e o eu que representa, entre silêncio e verbalização, aprisionamento e libertação. Isso significa dizer que o espaço textual aponta para um jogo de espelhamentos onde o corpo escrevente, instalado na economia do discurso regulador e repressivo, libera outra diferença, numa outra economia, a do discurso do desejo. Não residiria nesse processo ritualístico de negação e recomposição do sujeito feminino, a dimensão da relação dos textos com a história? A narrativa é o lócus da produção de sentidos cujas mediações reelaboram a problemática da ideologia, da representação, do desejo e da história. Resgatar um texto cultural identificando suas estratégias subversivas e/ou polêmicas significa reinscrevê-lo no sistema dialógico do campo social no qual é engendrado.

À luz da produção romanesca contemporânea de autoria de mulheres, seja no país ou em outras latitudes, pode-se nela identificar um ponto de vista que poderia ser definido em termos de um projeto consistente de crítica cultural. Se por um lado esse fazer absorve, reinterpreta e recria como linguagem, o discurso cultural no qual é engendrado, por outro, realiza, em seu potencial reflexivo, o salto no escuro, isto é, se projeta em sua função utópica: dizer o que não foi dito, articular onde antes havia silêncio, instaurar sentido no não-sentido. Alinhando-se no espaço do discurso social, antropológico e político-ideológico, as narrativas implodem o discurso das exclusões calcado nas oposições que, tradicionalmente, pautaram o desenvolvimento da cultura ocidental, tais como centro-margem, dominador-dominado, logos-silêncio, razão-loucura[iv]. Historicamente, no circuito em que saber narrar significa, antes de tudo, saber repetir o que foi ouvido, a narrativa se consolidou segundo a tradição de um saber masculino. O ato de narrar como forma de representar experiências e gerar significações sempre sinalizou o acesso simbólico a um poder, e assim se constituiu num instrumento de perpetuação do próprio poder, já que a narrativa tem a função de legitimar “what has the right to be said and done” (FOUCAULT, 1979, : 23) numa cultura. O abalo que as narrativas de mulheres provocam nessa noção é extraordinário, e tem origem em longo aprendizado de silêncio e da metamorfose deste em palavras, as quais nascem do desejo – móvel da escrita – de perfazer um itinerário de sentido para libertar, no corpo da letra, o corpo outro, aprisionado, dividido, perdido de si. É por isso que narrar registra sempre a tensão dialógica: é preciso lembrar-se enquanto objeto, não para repeti-lo, mas para enterrá-lo de vez e reinventá-lo como sujeito. Nesse sentido, as escritoras na contemporaneidade estão processando um novo episteme narrativo que desreferencializa o dado da cultura dominante e transforma os tradicionais limites conceituais, estruturais e experienciais entre o público e o privado, entre o social e o psicológico, entre o político e o poético.

Das dores e descobertas

Na década de 1980, a escritora Lya Luft publicou cinco romances: As parceiras(1980), A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O quarto fechado (1984) e Exílio (1987). No universo luftiano, onde ser mulher significa ser parte de uma estirpe de mulheres malsinadas, de olhares ausentes, gestos precários e existências irreais; as protagonistas-narradoras emergem do claustro físico existencial em que habitam para construir a experiência consciente de si mesmas, a partir de um momento de crise que, invariavelmente, está associado à falência das relações afetivas e à fraude da instituição familiar burguesa. Anelise, em As parceiras, diante de um presente impossível de fracassos e perdas – os vários abortos, a ruína do seu casamento, a morte do filho que, por acidente de parto, tornara-se não mais que um vegetal – isola-se no chalé da família em frente ao mar e, de segunda a sábado, repassa o “filme descosido” (LUFT, 1986, : 132) de sua vida na tentativa de descobrir “no cemitério particular da memória”, “como tudo começou, como acabou” (LUFT, 1986, : 18). O relato de Anelise perfaz o caminho semelhante ao da memória, onde a posição da narradora-focalizadora[v] é determinada por uma orientação cognitiva e emocional em relação ao passado. Esse caminho é frequentemente entrecortado pelo presente da narradora-protagonista, o que significa dizer que o momento da narração coincide com o momento da ação. É justamente nesses momentos que o embate entre a necessidade de lembrar e o desejo de esquecer, entre a vontade de render-se ao silêncio (prisão do passado) e a busca de compreensão se trava no campo minado do discurso, o qual registra a posição ambígua da narradora frente ao ato de narrar/lembrar:

Nazaré me ronda, insinua, acha que ando sozinha demais, que me deito demais, na rede ou na cama, que penso demais. Pensar tanto faz mal. Ela tem razão.Mas esse é um ninho fofo, macio, consolador: deitar-se para sofrer menos, refugiada nas lembranças para não enfrentar o futuro. Ou para entender o presente? Tão vazio o meu presente. O conflito, por menor que seja, hoje em dia me desgasta demais. Prefiro vegetar. (LUFT, 1986:. 94)

A homologia entre a condição de vegetar e o presente frágil, precário e dolorido da narração desdobra-se na extensão vital corpo/palavra/texto. A representação daquele é a própria condição de existência do último: “Não tenho mais força, preciso me encolher toda, respirar devagarinho, pensar com cautela. Ao menor esforço, vou me desfazer em mil pedacinhos de um quebra-cabeças insolúvel” (LUFT, 1986, : 76). Efetivamente, à medida que a narrativa evolui, toma corpo a lenta progressão de um estado de náusea que coincide com a parte mais difícil do relato. Essa náusea, reprimida e contida – “Retenho tudo em mim para que doa mais” (LUFT, 1986, : 120) - finalmente explode com a energia poderosa e negativa do vômito, fluxo libertador, metáfora do discurso através do qual Anelise experimenta a sua contingência atroz e o seu êxtase: “A náusea se arrasta pela minha garganta como um grande verme que morasse no meu estômago. No coração.”; “Me arrasto até o banheiro, vomito violentamente minha dor, minha revolta, água amarga e lixo de vida” (LUFT, 1986 : 130). Significativamente, o vômito lhe permite narrar a sua derradeira tragédia, a morte de Lalo, seu filho.

Na sequência final da narrativa, em que o último capítulo corresponde ao último dia da semana, o presente da narração coincide com o presente da ação. Anelise reúne em si o papel de protagonista-narradora-focalizadora e a sua narração é permeada por uma sensação de alívio, de destensionamento. Ela narra o seu encontro decisivo com a imagem mágica e fantástica da mulher da praia, e juntas, se esgueiram para um mundo longe do sentido, da razão. Narrar, para Anelise, acaba sendo o reencontro paradigmático do seu duplo, – a avó Catarina von Sassen, a matriarca louca do sótão, figura central da família de mulheres perdedoras –, reencontro das raízes de uma genealogia que finalmente emerge sob a luz do sol em reconhecimento e cumplicidade. Do sótão à praia, o espaço se distende em feixes de luz.

Em A asa esquerda do anjo, Gisela, no espaço de uma noite, narra a história de um parto às avessas – a expulsão, pela boca, do verme que habita seu ventre – enquanto lembra os fatos de sua vida passada: a falta da mãe, a austeridade do pai, as posses da família, a “guerra secreta” de resistência às imposições da avó, Frau Wolfe, o fracasso de sua vida sexual e afetiva e a sua capitulação ao modelo cultural valorizado pela avó. O momento presente, intercalado com os momentos rememorados em flashback, é marcado pelo emprego da letra em itálico e pelos parênteses que abrem e fecham as narrativas.

A analogia entre o ato de narrar e o trabalho de parto, exercício da feminilidade por excelência, emoldura o desenrolar do ritual em que a posição da narradora-protagonista se funda na certeza de sua força e determinação: “Estou sozinha, tranquila e forte” (LUFT, 1987a : 12). O relato de Gisela sobre o passado desvela, nas entrelinhas, o processo de gestação do ser monstruoso que habita o seu ventre e que é metaforizado em “pedras de gelo” (LUFT, 1987a : 37), alusão ao fechamento do corpo, à negação da sexualidade, à mutilação do desejo. Em função desse relato que bate ao encontro do momento presente, a narrativa do parto mimetiza, em processo lento e irreversível, a contração e expulsão do ser gestado no vazio do amor e no horror ao corpo, o ser outro de si. A inversão é reveladora, pois ela acena para a convergência e inter-relação entre desejo, linguagem e vida, pois o ato de expelir pela boca evoca a libertação da palavra, o descongelamento do silêncio, o ponto final da representação enquanto encenação de papeis e o nascimento do discurso como viagem definitiva em busca do conhecimento de si. Se o corpo era antes lugar de reprodução e repetição, a sina feminina da dor, rigidez e infertilidade, agora ele é lugar de produção, ponto de referência para um sujeito que descortina, no ato de narrar, um saber que verbaliza o recalcado num verdadeiro movimento de reterritorialização:

“Por muitos anos pensei que só me salvaria se fechasse meu corpo, se endurecesse o ventre, se me negasse [...]”, “Eu fugia”; “Hoje, não posso mais fugir” (LUFT, 1987a, : 108). No final climático e traumático do relato, converge o presente da enunciação com o presente do ato. A descrição do nascimento remete Gisela ao momento inicial da reconstrução de sua subjetividade e de seu desejo: o ato de perguntar o seu nome, de formular pela e na linguagem, posições de sujeitos:

Devagar, meu habitante se vira. [...]. Vira-se mais, sei que vai me encarar. Minha identidade – qual é minha identidade? Ele vai me fitar, sem olhos, sem nariz, sem feições. Sem identidade como eu – qual é o meu nome? Onde fica o meu lugar? Como se deve amar? Neve ou fogo? (LUFT, 1987ª: 141)

Em Reunião de família, Alice narra o reencontro com seu avesso, durante o fim de semana em que deixa a sua casa, marido e filhos para uma reunião de família na casa do pai viúvo, onde teria que ajudar a decidir o destino de sua irmã Evelyn, semi-inválida, com a morte do filho único. O relato inicia no momento em que Alice, obrigada a sair de sua “concha” – a pacata vida doméstica – evoca a lembrança dolorosa, mas ao mesmo tempo fascinante, do jogo de espelho que, quando menina sem mãe, costumava jogar para ser “menos infeliz” (LUFT, 1982, : 10). A imagem do passado, de uma Alice poderosa e inconquistável, estabelece o contraponto com a imagem do presente, da Alice acomodada e dependente que sente o peso de sua vulnerabilidade ao partir em viagem de retorno, mesmo que temporariamente, à casa do pai. Embora inicie com um relato em flashback na cena da despedida, a narrativa se processa no tempo presente onde coincidem, portanto, o momento da enunciação e o momento em que se desenrola a ação. É nesse ponto do instante ‘agora’ que Alice observa, refletindo com certa nostalgia sobre a triste figura da Alice ordinária e comum em relação à imagem fantástica da Alice do espelho. Ambas as imagens, enquanto resultado de carência e opressão, cristalizam um não saber, isto é, são máscaras que ressaltam o distanciamento da posse de si mesma. Como signos da cisão interna do sujeito, essas imagens se transformam em outras, mais poderosas pela sua condensação metafórica, e que traduzem as duas realidades em que o eu se debate: a imagem da mulher alada, com as “úmidas asas movendo-se no casulo” (LUFT, 1982 : 11) e a imagem de “um bicho que, despido da casca, expõe um corpo viscoso e mole, onde qualquer caco de vidro pode penetrar, liquidando essa vida rastejante” (LUFT, 1982 : 15).

A narração se desenvolve não só como possibilidade de libertação das máscaras, mas como de recuperação de uma integridade perdida, de um equilíbrio interno que a experiência do momento parece ameaçar e condenar ao fracasso. A desagregação familiar no momento em que todos deixam cair suas máscaras e aflorar seus ódios e carências coloca a narradora frente a frente com o seu abismo, e a sua narração veicula a reflexão simultânea, a consciência aguda sobre o momento vivido:

"Eu tinha outros planos para a minha vida, mas acabei sendo Alice, a coitada: a de mãos ásperas e coração agoniado. Troquei de dono quando me casei, fui para um proprietário menos exigente, menos violento – mas meu dono.Todos são meus donos, até meus filhos; até Aretusa, que me possui porque sabe meus segredos e me destruirá através deles". (LUFT, 1982: 110)

O narrar de Alice, tal como o espelho rachado da sala onde se refletem as imagens do drama familiar, inscreve a luta da narradora para sair do abismo, superar a experiência traumática do desnudamento. Nesse momento, sua narração vacila pelo impedimento de falar: “Não consigo falar, estou nauseada, tenho a impressão de que, se abrir a boca, vou vomitar uma golfada de sangue na cara de todos” (LUFT, 1982, : 109). Forçada, entretanto, ao confronto com seu verdadeiro rosto, Alice lentamente consegue alcançar um ponto de equilíbrio: nem mulher alada nem bicho rastejante, mas mulher consciente de um saber capaz do reconhecimento solidário: “estamos todos igualados, não passamos de pobres animais” (LUFT, 1982, : 116); “Sei apenas que todos queremos nos recompor, queremos recompor o quadro familiar, não queremos ser animais, não queremos ser loucos ou sujos” (LUFT, 1982, : 118). Dilatados os limites do eu, Alice salvaguarda a sua humanidade no ato simbólico de nomear, essência da definição do humano: “[...] este é o pai; esta é Evelyn; aqui fica Renato; ali Aretusa, aqui Bruno; esta sou eu. Um lugar vazio: minha mãe” (LUFT, 1982: 121).

A fixação do olhar nos reflexos do espelho da sala marca a posição de Alice nos momentos em que transforma a experiência em relato. O espelho já não é mais signo de encarceramento ou alienação, e muito menos de vontade de domínio. Ele passa a ser ponto de referência para o autoconhecimento de uma consciência alerta e apaziguadora. Nesse sentido é possível equacionar a aprendizagem do espelho com a aprendizagem que emerge do ato de narrar. Pois, para Alice, narrar é enfrentar a fissura da identidade e, nesse processo, fazer brotar de si o gesto tímido, mas decisivo, de uma alteridade inaugural. Alice aprende que as palavras não a paralisam. Pelo contrário, tal como Aretusa/Medusa, que não a destrói nem a petrifica, mas que afetuosamente lhe sorri pedindo-lhe o leite no café da manhã, as palavras geram brechas por onde o desejo pode sair ao encontro de outros desejos.

Em Exílio, a narradora-protagonista representa uma síntese das mulheres luftianas. Sem nome e auto-exilada num quarto alugado da Casa Vermelha, a doutora percorre os meandros da memória num relato em que se alternam os quadros da vida passada e os da vida presente, ambos recortados pelo medo, pela culpa e pela solidão do desamor. Do passado, revive neurótica e obsessivamente suas perdas: a mãe alcoólatra que lhe negara o afeto, o marido que a traíra, o filho que deixara para trás e a carreira de obstetra que abandonara. No presente, mal consegue articular uma tentativa de construir um novo rumo, sempre ameaçado pelo vazio “escancarado” (LUFT, 1987b: 28). O perfil da narradora, tal como o de Anelise, Gisela e Alice, delineia-se a partir da vontade de buscar, no ritual da palavra, a compreensão da gênese da situação-limite em que se encontra. Seu olhar é o de quem acredita que o presente esbarra sempre no passado e de que esse contém, senão as respostas, pelo menos algum indicativo que lhe permita desvendar os impedimentos do presente. O que emerge lentamente do relato, com a força brutal do choque paralisador, é a falsa solidez de uma identidade que, desde a infância, é consumida pela fome de carência, pela “vontade de mãe”, “anseio tão antigo, tão antigo” (LUFT, 1987b: 28). Essa carência mobiliza a consciência dolorosa de si em um narrar que processa um desnudamento dos vazios do ser, semanticamente figurado no corpo exposto – a árvore mutilada:

"Tive perdas demasiadas, estou de raízes expostas e barriga aberta. Como aquela árvore que o vendaval derrubou junto da Casa Vermelha, com estrondo, um vento assustador bramindo a noite toda" (LUFT, 1987b: 17).

A narradora obedece ao movimento dialético de aproximação e recuo diante de suas feridas, de correr o risco e libertar os fantasmas que ela encerra e de, ao mesmo tempo, desviar o olhar por medo de não conseguir curá-las. Talvez por isso mesmo que ela se vê como uma “medusa amorfa” (LUFT, 1987b: 108), enquanto que em outro momento afirma seu medo de medusas (LUFT, 1987b: 65). É como se a narradora sentisse pânico diante de poderes que jamais sonhara ter, mas que, em lugar de usá-los para se libertar, pudesse usá-los para acabar de se destruir. Nesse contexto, a narradora flagra a sua fragilidade: “Estou viva” (LUFT, 1987b : 159), mas “Talvez não haja saída para mim” (LUFT, 1987b : 160). Por isso, a sequência narrativa registra a constante ameaça de ruptura e desagregação em cinco cenas surrealistas disseminadas ao longo do texto e destacadas pelo uso do itálico e dos parênteses. Trata-se de cenas que operam como reflexos distorcidos de um espelho onde se reflete o mundo psíquico da narradora, habitado pelo fantasma autodestrutivo da mãe, com o qual sua mente estabelece uma série de identificações por deslocamento e condensação. A narradora já havia feito referências ao espelho nesses termos:

"Nestes dias, minha companhia mora naquele espelho sobre a cômoda. Não olho para lá a não ser raras vezes, e minha mãe passa ali no fundo, vagarosa: olhos de bruxa, e uma atração que me arrastaria a sei eu que abismos, se me debruçasse para ela." (LUFT, 1987b : 57).

As cenas constituem as forças centrípetas do relato, convergindo para uma grande alegoria da maternidade fracassada e frustrada, em que a narradora se observa ora como mãe, ora como filha, e o eu e o ela acabam se intercambiando. Na primeira cena, a narradora quer salvar o filho, escavando com as unhas um abrigo de terra, de onde surgem escorpiões e vermes. Ao procurar o filho, não o encontra mais, e então percebe que seus cabelos estão cheios de insetos: ela é a própria medusa/mãe, paralisada pelo seu próprio poder. Na segunda cena, a narradora descreve o seu suicídio e a ameaça de devoração de seu corpo por formigas que correm por ladrilhos brancos e pretos de uma cozinha antiga – clara referência à casa que habitara quando criança. Na terceira cena, a narradora percorre um mundo estéril de edifícios vazios em tom de preto, cinza e branco, de mãos dadas com seu anão como se fossem, segundo ela, a mãe com seu filho. Na quarta cena, ela se descreve dentro de uma panela de pressão, onde encontra conforto e paz (imagem regressiva do útero materno), mas é sobressaltada pela consciência de que a panela está por explodir e Lucas, seu filho pequeno, está por perto preparando sua refeição. Na quinta cena, a mais complexa pelo poder das imagens, a narradora é a obstetra realizando uma cesariana às avessas – não está tirando da barriga da paciente, cujo rosto não enxerga, um bebê, uma vida, mas está enfiando nela uma morte, o corpo do Anão.

Esta cena apresenta a solução ou cura, no nível psíquico, dos conflitos em que ela se debate. Ao devolver à morte o que acaba de morrer, isto é, a parte de si que projeta no anão o papel duplo de mãe/filha (LUFT, 1987b, : 198) como repetição da relação vivida entre ela e sua mãe, a narradora enterra metaforicamente a configuração doentia daquela relação, exorcizando assim o fantasma do espelho. Resta-lhe suturar os fragmentos e arrematar os fios da narração. As imagens finais invocam um renascer: “Ando como quem caminha pela primeira vez depois de uma longa enfermidade” (LUFT, 1987b : 196); “Vou voltar, meu filho [...] esse é o meu caminho. Para casa, para casa. Visto qualquer coisa sem olhar o espelho, nem na cômoda, nem sobre a pia do banheiro: deixei de contemplá-los” (LUFT, 1987b : 200). A narração atinge assim a sua função: possibilita a sobrevivência pela cura das feridas e pela reconstituição das raízes mutiladas.

Quem sou eu? / Quem somos nós?

Segundo Paul Ricoeur, em sua obra Temps et recit(1985), a identidade não poderia ter outra forma senão a forma da narrativa, porque se definir é, em última análise, narrar, é, pois, através de histórias que os indivíduos narram sobre si e entre si, que se acumula um saber, uma autoconsciência da configuração e das especificidades de grupo sociais, requisito básico para que esses grupos se reapropriem de seu território VI e se cumpram no devir histórico. O poder ritualizado do discurso, que na repetição fixa a sua eficácia, não reside somente no que ele diz, mas principalmente, no que ele faz. E o que o discurso faz senão instalar o corte, a ruptura, a descontinuidade, para que o sujeito possa emergir e fundar a realidade de sua história?

No horizonte do narrar e do fazer de Lya Luft, a ficção está inquestionavelmente imbricada com a produção de um discurso que busca a si mesmo e cujo impulso vem ao encontro da necessidade de superar um vazio, a amnésia histórica imposta às mulheres por uma estrutura de poder que colocou a mulher à margem das práticas narrativas e discursivas de nossa cultura, relegando o seu fazer como menor, em função de critérios de uniformização cultural, isto é, de redução das diferenças ao mesmo, núcleo do saber que é poder. É dentro dessa perspectiva que a ficção de Luft se configura como projeto de reconstrução de um sujeito feminino enquanto um sujeito histórico, nem imutável, nem essencializado, mas em processo de se constituir pela palavra e capaz de falar de si e construir sua trajetória de modo a reassumir o controle de sua vida e de delinear o sentido da experiência vivida.

É verdade que nas condições do narrar/ser desse sujeito convergem várias dimensões identitárias que criam um registro complexo no nível de uma auto definição. Por exemplo, todas as narradoras projetam uma consciência aguda de seu deslocamento social, geográfico e até mesmo linguístico, uma vez que suas origens remetem a uma cultura transplantada (a cultura germânica), no contexto da região sul do país, significativamente a região cuja história ainda é marcada pela influência forte de culturas europeias. Embora haja uma diluição das coordenadas espaço-temporais, sobreleva-se nos textos, em diferentes níveis de referencialidade, uma ambientação cultural específica perpassada por atritos entre padrões rígidos de comportamento social e sexual de uma classe que procura preservar as suas raízes de ordem “superior” e, consequentemente, a sua hegemonia social e cultural, e um contexto que registra processos de aculturação, e uma tendência que reforça, como modelo prevalente do contrato social, a tradicional organização de papeis em termos de público e privado, masculino e feminino, reservando à mulher uma identidade pautada no casamento, na heterossexualidade e na procriação.

Não há dúvida de que as todas as narradoras experimentam um sentimento profundo de desenraizamento que, ao se traduzir num ponto de vista privilegiado – um entre-lugar –, se revela capaz de relativizar a representação da fisionomia da sociedade onde vivem, por intermédio de um discurso que não ratifica o status quo, mas que indaga e questiona as forças responsáveis pela ilusão de homogeneidade que, na verdade, promovem o silenciamento, a fragmentação e os desajustamentos de um segmento social – as mulheres, as quais acabam se apresentando como se exiladas de si mesmas. Não creio que Luft e Bins estejam comprometidas com uma intenção de apenas reproduzir uma realidade, e nem tampouco de apresentar uma solução para o impasse do exílio sociocultural afetivo a que aludem. Antes, estão comprometidas com a verbalização de uma realidade de vivências sofridas e compartilhadas de mulheres que não sabem quem são. É aí que emerge a ordem do discurso como instância de onde é possível esgotar a história, questionar o poder e divisar uma outra realidade possível. A partir da constituição do sujeito narrativo – a narradora autobiográfica – e da sua problemática – uma subjetividade emparedada e fragmentada impulsionada pelo desejo de se conhecer para sobreviver – os textos registram, conforme minha análise evidenciou, uma série de regularidades e repetições que fazem com que o narrar se configure como atividade de um nós – sujeitos em contiguidade – que, em termos discursivo, psicanalítico e político, projetam uma identidade via retomada da memória e do testemunho. Para essa entidade nós, repensar o vivido a partir do presente em crise vem a se constituir num ritual coletivo de descobertas e auto reconhecimentos, elementos operadores da diferença. A memória nunca funciona a favor do mesmo. Se ela é tomada como possibilidade de reflexão sobre a história (e invariavelmente assim o é), a memória é repetição em busca da diferença.

E de onde falam as narradoras de Lya Luft? Falam de onde elas se constituem como mulheres, do espaço habitado por um corpo aprisionado nas malhas do poder, mas que resistem ao silêncio imposto pela cultural opressiva e limitante de seu meio social. Nesse sentido, é pertinente a articulação e os cruzamentos entre corpo/memória/linguagem no processo discursivo, pois falar implica no resgate do corpo enquanto espaço ocupado para transformá-lo no espaço de um sujeito que deseja o poder do saber. Descentrando a questão das origens – a substituição da lei do Pai e do logos pela integração com as raízes maternas – e passando pelo interdito – as afiliações com a outra e o redimensionamento da sexualidade –, o narrar é experiência dolorosa e libertária, cuja função catártica, metaforizada muitas vezes no feio – o vômito –, se constitui em poderosa arma de transformação, porque abre caminhos para a reconstrução de subjetividades possíveis, para além dos limites da visão especular e redutora da cultura dominante. 

Poderia se afirmar que os textos de Lya Luft forjam espaços dialógicos onde a questão da identidade emerge como eixo da própria dinâmica narrativa. Na narração como espelho incide não só o olhar sobre si, mas o olhar da outra de si. A experiência da alteridade, indissociável da busca identitária, desdobra-se em todos os níveis: na duplicidade das personagens, na ruptura interna do sujeito narrativo e na própria identidade do texto, onde sujeito ficcional e autobiográfico se entrelaçam, abolindo as distâncias entre ficção e realidade, narrar e viver.      No contexto de uma “terra de centauros” onde a “feminilidade é temida” (SCHÜLER apud ZILBERMAN, 1985, : 74), a ficção de Lya Luft constitui um marco de reconstrução da identidade feminina.

 

Nota biográfica

Rita Terezinha Schmidt: PhD em Literatura pela Universidade de Pittsburgh (EUA) e professora titular na área de literaturas de língua inglesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com atuação no curso de graduação de Letras e no programa de pós-graduação em Letras nas áreas de literaturas estrangeiras modernas  e de literatura comparada. É membro fundadora do Grupo de Trabalho (GT) “A mulher na literatura” da ANPOLL e pesquisadora 1B do CNPq. 

 

REFERÊNCIAS

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RIMMON-KENAN, S. 1983. Narrative fiction: contemporary poetics. New York: Methuen

QUEIROZ, V. , 1990. A paixão da morte: a personagemfemininanos romances de LyaLuft. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ordec, n. 101p: 103-22.

ZILBERMAN, R. , 1985. Literatura gaúcha: temas e figuras da ficção e da poesia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: L&PM.

 

NOTAS 

[i] Ver o excelente ensaio de Lucia Helena, “Perfis de mulher na ficção brasileira dos anos 80” (1990); o ensaio de Maria da Glória Bordini, “Os vazios da existência” (1989); o ensaio de Vera Queiroz, “A paixão da morte: a personagem feminina nos romances de Lya

[ii] Segundo Marguerite Duras, essa é a feminilidade a serviço do homem (DURAS, 1974, : 55).

[iii]  Ocorrem-me exemplos tais como o Ulysses de James Joyce, o Dom Casmurro de Machado de Assis, o Paraíso perdido de John Milton.

[iv] Michel Foucault, em Discipline and punish (1979), elabora sobre os discursos das exclusões.

[v] A questão do narrador e focalizador é desenvolvida no texto Narrative fiction, de Shlomith Rimmon-Kenan (RIMMON-KENAN, 1983, p: 71-85).

[vi]  Segundo Deleuze e Guattari em Kafka: por uma literatura menor (1977), território refere-se a espaços culturais a serem reapropriados

labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016