labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016

 

 

 

Ambivalência na “retórica da pose” como estratégia da arte feminista. Art News Revised, da nova-iorquina Hannah Wilke, e Eat me: a gula ou a luxúria, de Lygia Pape: estudos de casos.

Roberta Barros

 

Resumo:

O presente texto coloca em questão a “retórica da pose” de artistas mulheres como estratégia de engajamento com as pautas feministas na década de 1970, relativizando as formas de atuação que o cenário nacional e o internacional possibilitaram. Para tanto, toma como estudos de casos os trabalhos Art News Revised,)1975) da nova-iorquina Hannah Wilke, [¨] e Eat me: a gula ou a luxúria, de Lygia Pape,[1976. Com o objetivo de traçar um breve panorama dos jogos de poder internos à própria crítica de arte feminista internacional entre as décadas de 1970 e 1990, buscou-se apontar alguns argumentos contrários à auto-exposição da nudez sensualizada no trabalho de Wilke, bem como as leituras posteriores que reabilitaram a referida estratégia em função de sua dimensão de ambivalência. Pretende-se observar a presença de tal potência também no trabalho de Pape como modo de abrir espaço a perspectivas que possibilitem pensar uma “arte feminista à brasileira”.

Palavras-chave:artistas , feministas, Hannah Wilke, gula, luxúria, Lygia Pape

 

 

Em 1974, no catálogo da esposição Il corpo come linguaggio (La ‘body-art’ e storie simili), a curadora e crítica de arte italiana Lea Vergine (apud Jones, 1998: 47) afirmou que na Body Art o trabalho seria o artista, e seu narcisismo não estaria mais investido em um objeto de arte, mas licenciado a se fixar em seu próprio corpo. Tal fixação no [eu], tal exploração do [eu] pareceu àquela altura bastante estratégica para as artistas feministas, na medida em que a tática militante do feminismo de então se movia sob a bandeira “o pessoal é político”.

O conceito de central-core-imagery, delineado em 1973 pelas artistas da costa oeste norte-americana Judy Chicago e Miriam Schapiro, nasceu, pois, dessa pressuposição de que era chegada a hora de o objeto passivo de representações cunhadas por mãos masculinas durante séculos na cultura Ocidental – a mulher – reivindicar o poder de representar, expor e sexualizar seu próprio corpo.

Em consonância com o processo de empoderamento feminista por meio da politização da vida privada, tão caro às práticas do final da década de sessenta e início da década de setenta, o narcisismo colocou ênfase extrema nessa exposição da intimidade na esfera pública ao pretender marcar os aspectos políticos do corpo. Dito de outro modo, se o narcisismo já seria uma característica forte da feminilidade, as ativistas passaram a radicalizar esse agir narcisicamente ao começarem a falar de suas preocupações pessoais no domínio público para proclamarem suas necessidades e particularidades como sujeitos. Nesse sentido, para a maioria das artistas feministas do referido período, para as quais o ativismo era o foco de suas agendas, foi crucial encarnar o sujeito feminino publicamente de forma a politizar suas experiências pessoais.

Orientando-se nesse mesmo sentido, podemos citar a “retórica da pose” presente no trabalho da nova-iorquina Hannah Wilke. Em 1975, na Galeria Ronald Feldman, Wilke posou diante das lentes da fotógrafa Eeva Inkeri durante o período de exposição de seu Ponder-r-rosa, série com cerca de trinta espécies de borboletas de múltiplas asas, ou bocetas de múltiplos lábios. Todos em tom de pele clara rosada, esses objetos estavam afixados em duas paredes perpendiculares da galeria e, em cada qual, cuidadosamente organizados em três linhas de cinco, sendo que os da linha central se encontravam deslocados à direita de modo a se alinharem pelos centros dos intervalos vazios entre os objetos tanto da linha acima, quanto da linha abaixo.

Para Art News Revised (esse retrato performático aqui comentado) a artista escolheu se posicionar de lado para uma dessas paredes, encontrando espaço de contato para seu braço esquerdo com essa superfície, em meio a suas bocetas. Inkeri também se posicionou bastante próxima à mesma parede, mas a alguns metros distante da modelo, de modo a enquadrar de frente o corpo inteiro da artista em sua sinuosidade sensual e, ainda, capturar em perfil quatro ou cinco das esculturas expostas, avolumando-se no primeiro plano da fotografia. Em terceiro plano, portanto, atrás de Wilke, ficou em escala diminuta a outra parede que expunha as demais quinze obras.

 Não haveria nada particularmente intrigante na referida imagem não fosse o fato de Wilke estar em cima de um sapato de salto alto daqueles com orifício frontal que revela a ponta de alguns dedos; com o botão e o iniciozinho no zíper de sua calça jeans abertos; com os polegares das mãos enganchados em duas alças de cinto da calça a pesarem sobre o cóes como quem não se importa em chegar a revelar se está com calcinha; sem blusa; sem sutiã; com cabelos negros e longos soltos sobre os ombros; de queixo levemente levantado; e com ironia no olhar diretamente apontado para seu observador.

Conforme observa Amelia Jones (Jones, 1998: 154), Hannah Wilke durante toda a sua vida construiu a si mesma em relação ao mundo por meio da retórica da pose, de um modo descentralizado, abrindo a autoinscrita “plenitude” de Narciso (aquele que não amou ninguém além de si mesmo) para a contingência radical das relações eu/outro.

A artista explorou seu corpo/eu sempre como algo que já não era próprio, exibindo a feminilidade a partir mesmo de sua definição no patriarcado: como inexoravelmente encenada. Em relação a isso, é interessante traçar um paralelo com a estratégia sugerida pela teórica feminista Luce Irigaray, em The Power of Discourse and the Subordination of the Feminine.

Nesse texto de 1975 (traduzido para o inglês em 1985), a autora aponta para uma determinada forma de representação encenada, de repetição agressiva do discurso patriarcal, de modo tão insistente que atingisse a ironia e, assim, iniciasse uma desestabilização da realidade em si. Nas palavras de Irigaray (apud Hutcheon, 2000), dever-se-ia

“[...] assumir o papel feminino deliberadamente. O que já significa converter uma forma de subordinação em uma afirmação, e, assim, começar a opor-se a ela. Ao passo que um desafio feminino direto a essa condição significa querer falar como um “sujeito” (masculino)... Brincar com a mimese é, então, para uma mulher, tentar recuperar o lugar de sua exploração pelo discurso, sem permitir-se ser simplesmente reduzida a ele. Significa re-submeter-se – porquanto ela está do lado do “perceptível”, da “matéria” – às “ideias”, em particular às ideias sobre si mesma, que são elaboradas em/por uma lógica masculina, mas tornar-se “visível”, por um efeito de repetição jocosa, o que deveria permanecer invisível: a cobertura de uma possível operação do feminino na linguagem. Significa também “revelar” o fato de que, se as mulheres são mímicas tão boas, é porque elas não são simplesmente reabsorvidas nessa função. Elas também permanecem em algum outro lugar: um outro caso da persistência da “matéria”, mas também de “prazer sexual”. (apud Hutcheon, 2000: 60),

Perceba-se, contudo, que o uso da ironia como estratégia de guerrilha para mimetizar o discurso hegemônico e, com isso, miná-lo a partir de seu interior, oferece a quem o toma como arma o grave risco político de ter sua ação deglutida pela capacidade absorvedora de seu alvo. Conforme o alerta de Linda Hutcheon (2000: 53), se, por um lado,

“ [...] a ironia tem o potencial de desafiar a hierarquia dos próprios ‘locais’ do discurso, uma hierarquia baseada em relações sociais de dominação”, de outro, sua natureza é ‘transideológica’, no sentido de que consegue ‘funcionar taticamente a serviço de uma vasta gama de posições políticas, legitimando ou solapando uma grande variedade de interesses’ ” (Hutcheon, 2000: 26-27).

Logo, a exposição que Wilke insistentemente fazia de seu próprio corpo desde o início dos anos de 1970, bem como o que ocorria no trabalho de outras mulheres artistas da body art, despertou numerosas críticas, muitas das quais partiram mesmo de vozes feministas, mais especificamente das que compuseram uma produção dos anos de 1980, a qual Amelia Jones (Jones, 1998:172) chama de feminismo antiessencialista. A tal investida supostamente subversiva no narcisismo foi ligada à tradição histórica do culto do eu na arte por meio da leitura taxativa fixada pelas críticas feministas pós-modernistas e, então, condenado como uma estratégia reacionária.

Assim, as artistas Laura Mulvey e Mary Kelly se uniram à teórica Griselda Pollock para elaborar uma árdua crítica à body art e às performances da década de sessenta e setenta. De forma generalizada, essas linguagens artísticas foram consideradas cúmplices de insistirem no desejo de assegurar a presença do artista e de corroborarem, portanto, com a reificação do corpo, ao mesmo tempo em que foram também acusadas, paradoxalmente, de ratificarem os estereótipos que colocam a mulher como objeto de prazer para o olhar marculino.

 Conforme Laura Mulvey ((1975)  escreve em “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, através da estrutura do “olhar”, os corpos das mulheres são posicionados como objetos do prazer voyerístico escopofílico ou fetichista que, no modelo da autora, é inexoravelmente masculino. O corpo feminino na cultura Ocidental conota, portanto, a condição de se prestar a ser olhado.

 Em uma formulação paralela à de Beauvoir – por sua vez mais fenomenologicamente modelada –, esse corpo, com sua “falta” anatômica aparente – que desperta a ansiedade, o medo do sujeito masculino de perder seu “presente” pênis-como-falo – é forçado a agir como fetiche de modo a aliviar essa ansiedade. A feminilidade é posicionada no/como outro.

Nesse sentido, pelos modelos psicanalítica e fenomenologicamente embasados, a constituição da diferença sexual dentro do patriarcado convenciona que homens agem e mulheres posam. Segundo Jones, foi à luz desse instrumental teórico que a artista Judith Barry e a teórica Sandy Flitterman (apud Jones, 1998: 171) – ambas da costa oeste norte-americana –, por exemplo, criticaram os autorretratos de Wilke, argumentando que

“[...] ao objetificar a si mesma como ela faz, assumindo as convenções associadas a uma stripper... Wilke... não deixa clara sua intenção... Parece que seu trabalho acaba por reforçar o que inicialmente pretendia subverter”. (apud Jones, 1998: 171)  

Na década de 1980, as práticas feministas dominantes passaram a empregar instrumentos mais explicitamente teóricos para colocar a feminilidade como um construto cultural que deveria ser desconstruído mais do que reiteradamente encenado. Como se alinhava estrategicamente à crítica ao modernismo greenberguiano e tratou de se “vestir” de modo “adequado”, com um “viés abstrato e elaborado” que garantia o devido distanciamento do sujeito encarnado e desejante, tal discurso feminista pós-modernista acabou por alcançar o respeito da academia e da instituição de arte, ambas instâncias consideradas de domínio dos homens. Consequentemente, essa linha teórica fortaleceu-se na Inglaterra, primeiramente, e nos Estados Unidos cada vez mais a partir da década em questão.

Para adentrar tal espaço institucional, o feminismo pós-modernista teve de se apressar em proclamar determinadas práticas como politicamente eficientes ou não, a partir do que passou a ser definido cada vez menos em relação à subjetividade, identidade ou personificação, e sim situado em termos de estratégias de produção, tais como apropriação, alegoria, pastiche ou, mais amplamente, crítica institucional. 

Como implicação do poder que adquiriu internamente às fronteiras do próprio feminismo, a interpretação negativa que o discurso feminista pós-modernista traçou para a body art e sua explícita política corpórea se fixou a tal ponto que ainda hoje permanece uma desvalorização ampla da maior parte dessas práticas narcisistas dos anos sessenta e setenta. Por outro lado, perversamente, tanto a academia quanto a instituição de arte tomaram, por exemplo, as quatro mulheres artistas mais celebradas da década de oitenta e logo reduziram seus “rótulos” de feministas pós-modernistas.

De tal sorte, por efeito do argumento silenciosamente penetrante de que seus trabalhos “transcenderiam” a suposta estreiteza da moldura “feminismo”, Sherrie Levine, Barbara Kruger, Jenny Holzer e Cindy Sherman tornaram-se apenas pós-modernistas

Assim, nesse trajeto resumido acima, supôs-se e, ao mesmo tempo, propôs-se uma espécie de semiologia na qual determinado signo – qual seja, uma vagina, por exemplo, ou, no caso, posar a própria nudez sensualizada/sensualizando-a – já estaria automaticamente codificado e engessado como prática “feminista” comprometida com a objetificação da mulher e, logo, menos, ou nada, eficaz. Em seguida, no cenário cultural mais amplo, “feminista” se tornou um significante impreciso de ser relacionado com “arte” e, portanto, um rótulo a ser evitado.

Ressalta-se que, se o referido feminismo antiessencialista da década de 1980 abraçou em seu repertório as teorias de Bertolt Brecht (Jones, 1998: 24-25) para propor práticas que distanciavam mais do que seduziam o observador (presumidamente masculino e heterossexual), consequentemente, a estratégia posta em prática por Hannah Wilke viria mesmo a ser condenada enquanto um narcisismo feminino regressivo, algo prazeroso ao extremo e com um investimento demasiado nas capacidades atrativas do corpo da mulher.

 É fundamental observar aqui que o corpo de Wilke, na época da imagem Art News Revised, encarnava perfeitamente os parâmetros de beleza vigentes na cultura euro-americana ocidental – o que, é importante lembrar, se alterou radicalmente ao final dos anos de 1980 e na década seguinte (na qual Amelia Jones inicia seus trabalhos de crítica de arte e curatoria) em que a artista insistiu na retórica da pose para continuar produzindo e exibindo sua nudez delineada pelo gestual sensual codificado na cultura ocidental, mas já com o corpo “deformado” pelos efeitos do câncer que a levou à morte[i].

 Eventualmente, pois, antes, sua beleza parece ter catalizado a pressa em julgá-la ingenuamente enredada no prazer que o poder sedutor de suas qualidades físicas a proporcionavam e, portanto, precipitado a avaliação de que seu trabalho não poderia em qualquer dimensão ser interpretado como uma crítica aos valores patriarcais, uma “desconstrução” da feminilidade. Conforme Lucy Lippard acusou no artigo The Pains and Pleasures of Rebirth, publicado em 1976,

“Homens podem usar mulheres bonitas e sensuais como objetos ou superfícies, mas quando mulheres usam seus próprios rostos e corpos, elas são imediatamente acusadas de narcisismo... Porque mulheres são consideradas objetos sexuais, presume-se imediatamente que qualquer mulher que apresente seu corpo nu em público o está fazendo porque pensa que é bonita. Ela é narcisista, e Acconci, com uma imagem menos romântica e suas costas espinhentas, é um artista”. (Lippard, 1995:102)

Curiosamente, entretanto, Lippard também condenou o trabalho de Wilke com base nessa mesma ofensa, aceitando sem questionar a categoria de “beleza” como se carregasse algum valor inerente quando atrelada à “mulher” na cultura ocidental – e desconsiderando os desdobramentos críticos que poderiam complicar o jogo caso Vito Acconci encarnasse o modelo de beleza para o corpo masculino.

 Na década de 1990, ao propor uma revisão dessas leituras críticas engessadas nos anos de 1980 acerca do trabalho de Wilke, Amelia Jones (1998: 175) salientou que, ao invés de examinar a polarização mulher bonita e artista, ou flerte e feminista - oposições espelhadas do estereótipo que delineia as feministas como “machas, feias e mal-amadas” –, Lippard aceitou essas polarizações e assumiu que, ao confundi-las, a arte de Wilke não teria sido bem sucedida enquanto feminista.  Jones (1998: 174), por um lado, declarou concordar que o trabalho de Wilke não teria mesmo apresentado uma estratégia clara e didaticamente desconstrutiva da objetificação da mulher – ao mesmo tempo em que alertou que tal clareza também não estaria presente em Sherman ou Simpson dentre outras celebradas pela crítica oitentista.

 Se retomarmos a fotografia Art News Revised, em sua nudez enfaticamente sensualizada, a artista parece, por um lado, ter encenado os códigos convencionais de exibição do feminino para aumentar sua própria notoriedade em um mundo da arte dominado por homens.

Contudo, há ambivalência na imagem. Em função mesmo de jogar com esse gestual sensual e sedutor, Wilke, por outro lado, solicitava seu observador como corpo encarnado e desejante, de modo que este já não poderia se afastar em um suposto estado de consciência crítica desinteressado. O trabalho de Wilke teria, assim, operado dentro do enquadramento do julgamento estético – mais do que não contestando os padrões estabelecidos para o belo na cultura Ocidental: celebrando mesmo tais padrões – para ressaltar suas contradições intrínsecas, para confrontar a reivindicação pela postura desinteressada do sujeito crítico. Conforme a própria artista declarava, “convidar as pessoas a terem prazer em seus próprios corpos os atemoriza mais do que qualquer outra coisa”.

Poderia a artista ter incitado prazeres não necessariamente heterossexuais e masculinos? Nesse sentido, as críticas negativas das próprias feministas aos trabalhos de Wilke não se mostravam fortemente interessadas em suas próprias reputações acerca dos potenciais prazeres e desconfortos provocados pela auto exposição de outra mulher (Wilke, no caso) oferecida a seus próprios olhares?

Por esse raciocínio, a obra da artista na primeira metade da década de 1970 pode não ter operado como contestação do padrão de beleza instituído, mas já abria brecha para uma perturbação do modelo de diferença de gênero dualista e simplista estruturante do olhar (que convencionou o lugar do sujeito como masculino e heterossexual), por sua vez divisor dos papéis na produção e interpretação da arte (mulher/objeto versus homem/sujeito ativo).

A partir dessa noção, e à luz da teoria de Judith Butler da reiteração dos códigos[ii], Amelia Jones salientou que a ratificação do narcisismo “feminino” é tão insistente no corpo de trabalhos de Wilke que transtorna o enquadramento convencional da mulher como objeto a ser controlado pelo julgamento “desinteressado” da crítica da arte e, assim, passa a oferecer uma alternativa às proibições tradicionais do modernismo contra a exposição do corpo do artista e também ao rígido feminismo antiessencialista ou, nas palavras de Wilke, “feminismo fascista”[iii].

Em um artigo de 1984, Craig Owens desenvolveu a noção de “retórica da pose”, no qual se concentrava em Barbara Kruger, mas que se torna muito elucidativa aqui para a análise do trabalho de Hannah Wilke e, mais adiante, o será no debate acerca do trabalho de Lygia Pape.

 Influenciado pela obra de Lacan, Owens (apud Jones, 1998: 154) sugere provocativamente que “fazer uma pose é apresentar a si mesmo para o olhar do outro como se já estivesse congelado, imobilizado – ou seja, de início, já uma imagem”; duplamente alienada, removida do engodo de uma potencial transcendência.

A pose carrega, pois, um potencial estratégico: imitando a imobilidade induzida pelo olhar, refletindo seu poder de volta para esse olhar, ela o força à rendição. Assim, apresentando-se, de saída, como imagem, a autorrepresentação exageradamente erotizada, as poses “femininas” de Wilke podem ser interpretadas como uma rendição ao “olhar” (uma reinteração das armadilhas da feminilidade) e, ao mesmo tempo, apesar de tal “submissão”, podem ser percebidas como um modo de paralisá-lo (como Medusa).

 

Sedução de Lygia Pape, no contexto brasileiro dos anos de 1970

Enquanto na década de 1960 a arena internacional fervia com as transformações culturais e comportamentais conquistadas pelas rebeliões dos jovens e pelas lutas raciais e sexuais, o Brasil vivia os momentos críticos do governo militar pós-golpe de 1964. Mulheres norte-americanas e europeias empunhavam as bandeiras de autonomia feminina com grande ênfase nas decisões sobre o próprio corpo, levando à esfera pública reivindicações anteriormente consideradas circunscritas à vida privada.

 Apesar de conectadas, de certa forma, ao movimento feminista internacional, as brasileiras, de outra sorte, foram obrigadas a se concentrar em metas coletivas, como a defesa dos direitos humanos, da liberdade política, porque, em tempos de luta contra o autoritarismo, o movimento de mulheres, em um momento importante de sua autodefinição no Brasil, vinculou-se aqui a partidos políticos, a associações de esquerda – para os quais certas pautas pareceriam demasiadamente femininas, privadas, ou mesmo, “burguesas” – e, de forma delicada, a setores progressistas da Igreja Católica, àquela época uma das forças mais importantes de resistência ao regime militar. Por muito tempo, pois, abriu-se mão do debate sobre temas feministas centrais, como a liberdade sexual e o direito ao aborto e ao divórcio.

A princípio, isso poderia ser interpretado como efeito dos comprometimentos de nosso feminismo em seu desenrolar histórico e, portanto, como sintoma de um “atraso” nas conquistas desse movimento se comparado aos campos internacionais de contestação. Todavia, minha hipótese aqui aponta para um distinto entendimento. Por influência de interpretações engessadas que caíram na armadilha de esboçar certa semiologia da arte feminista e anexar quase que exclusivamente o signo da autoexibição da nudez sensualizada a esse tipo de engajamento, o olhar precipitado poderia dizer que não houve arte feminista no Brasil, em paralelo ao contexto internacional. Mas será que as particularidades de nosso cenário político teriam permitido que a nudez fosse usada como uma estratégia, ou ainda, será que o fato de as artistas aqui não terem explorado seus próprios corpos nus em obras para o circuito da arte significa dizer que não houve arte feminista no Brasil, ou que seus trabalhos não esboçavam preocupações ligadas às pautas feministas?

Tomarei abaixo o trabalho Eat me: a gula ou a luxúria de Lygia Pape como um estudo de caso para propor uma perspectiva que possibilite pensar “arte feminista à brasileira”. A partir da hipótese de que o fato de uma artista rejeitar a associação de seu nome ao feminismo não deve significar ausência de influência dessas demandas em sua obra, pretende-se mostrar o quanto, no referido trabalho, Pape usou uma semelhante “retórica da pose” – no sentido de expor seu corpo como já imobilizado, como já objetificado para o olhar masculino –, uma semelhante estratégia de representação encenada, de repetição irônica do discurso patriarcal empregada pela norte-americana Hannah Wilke em trabalhos da mesma época (a qual, de outra sorte, não se furtava a explorar sua própria nudez).

Em 1975, Lygia Pape se “vestiu” de femme fatale, assumindo a postura ativa no ato da conquista. Com apenas meio corpo aparente, trajando blusa de cetim preto com brilho discreto em modelo bastante masculino de gola e botões, a artista se pôs a encarar de frente o transeunte das calçadas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Esclareça-se, em tempo, que a obra a que agora me refiro fora um vídeo projetado na empena cega do prédio em questão. Desta sorte, na projeção de Sedução, tal mulher gesticulava enfaticamente para atrair/convidar os sujeitos a penetrarem, não em seu corpo, mas no corpo do Museu onde aguardava escondida a mostra Eat me: a gula ou a luxúria?.

Ressalta-se que parte dessa frase de batismo da exposição havia aparecido pela primeira vez na obra de Lygia Pape oito anos antes, impressa no fundo espelhado de uma de suas Caixas de Humor Negro, a Caixa de Formigas, em que enormes saúvas vivas eram seduzidas para o centro por um pedaço de carne (vermelha). O “humor” vinha também do contraste que exercia com a obra que a acompanhava: a Caixa de Baratas, em que inúmeros desses insetos, escolhidos dentre os mais graúdos de sua espécie, descansavam mortos e organizados milimetricamente em linhas e colunas, como que “instrumentalizados pela razão” (Herkenhoff, 1995). O “negro” vinha do contexto histórico brasileiro da época motivador da confecção dessas peças do embate artista/instituição.

Ainda mais em tempos de escalada da ditadura militar, todo o discurso oficial, no qual se enquadravam os museus, engendrava-se para fortalecer o sistema de poder pousando véus, mais ou menos opacos, mais ou menos sufocantes, sobre os focos de consciência crítica. Tal arranjo, aos olhos de Pape, teria tratado de amortizar os acervos, teria transformado esses espaços institucionais da arte em meros organizadores de baratas desfalecidas. Segundo a própria artista, sua crítica à “arte morta dos museus” (Pape, 1983) se evidenciaria no momento em que o espectador visse seu rosto silencioso refletido em meio àquele conjunto “asqueroso”.

Com a inserção do espelho, portanto, Pape coloca o espectador dentro dessa cena como cúmplice, em seu silêncio, dos braços repressivos do sistema de poder. Se as caixas operam como metáfora para o museu, e se na caixa vizinha as formigas estão vivas, na caixa de baratas, seria o espectador a fazer as vezes do elemento vivo, adentrando a instituição de arte para “comer” obras “graúdas”, porém mortas, e que, portanto, deveriam causar asco.

As palavras gula e luxúria por cima das quais as saúvas caminham apontam para a dimensão erótica da arte, para o desejo que alimenta e é alimentado pelo mercado, em um comentário crítico ao efeito amortizador da fetichização do objeto artístico. Tanto caixa-museu-instituição quanto formiga-espectador e carne-obra-de-arte são personagens a negociar nesse jogo de sedução do mercado. Tal sugestão se torna ainda mais complexa ao aproximarmos as Caixas de Humor Negro à obra Eat me, uma vez que a carne passaria, pois, a se apresentar ainda como metáfora para o corpo da mulher como objeto de consumo. 

Assim, no vídeo Sedução, a imagem da mulher convidava as “formigas” a visitarem Eat me: a gula ou a luxúria?, sublinhando a vocação da imagem para induzir o consumo. Dentro da exposição, não havia obras nas paredes, que foram forradas com plásticos pretos em alusão ao vinil comumente usado em botas, minissaias e outros objetos de fetiche.

Nesses espaços-tendas, havia palavras do nome da obra moldadas em néon a pintarem as superfícies com iluminação vermelha e azul, sugerindo uma ambiência de casas de prostituição, de modo a aproximar o tipo de troca estabelecida nesses locais com a relação entre artista e instituição de arte. Ao mesmo tempo, as obras não estavam “expostas”, mas misteriosamente escondidas em sacos de papel semelhantes a embrulhos de pipoca, lembrando a aproximação entre a relação sexual e o ato de comer – algo já antecipado no nome do trabalho.

Tais sacos continham Objetos de Sedução, que podiam variar de calendário de mulher nua a cabelos e pentelhos, passando por loções afrodisíacas, amendoim e espelhos. Reforçando ainda mais a conexão entre arte e mercadoria, essas embalagens ficavam amontoadas como que em uma feira livre, em um cubo expositivo de estrutura de ferro, ao alcance do espectador, que poderia comprá-los por um cruzeiro – valor estabelecido pela artista como uma afronta ao mercado de arte, como uma forma de garantir que sua obra estivesse ao alcance das “pessoas mais diversas” (Pape, 1983), em um comentário acerca do distanciamento que a instituição de arte impunha/impõe ao público.

Como uma performance, Pape carimbava, assinava e beijava cada um dos sacos para selar o negócio com a mancha do batom. Era marcada, assim, a dimensão de fetiche desse item de maquiagem dentre a “parafernália” que a mulher coloca para se exibir e se transformar em objeto de desejo. Além do módulo com os embrulhos de papel, havia a projeção de outro vídeo, uma vitrine com objetos como dentes, cabelos e seios postiços, cintas, cílios e unhas postiços, pó-de-arroz, espelhinhos de mão etc., e outra forrada com cabelos como um leito em cima do qual foram deitadas maçãs.

 Em uma última vitrine, a nudez da atriz considerada símbolo sexual do país à época, Sandra Bréa, impressa em uma página dupla da revista Status, avizinhava-se a muitos manuais em que se ensinava a arte de bordar. Por meio dessa edição de revistas, Lygia Pape (1976) ilustra, “a partir de um espaço particularizado: o espaço patriarcal”, qual seria o lugar da mulher: aquela que deve se ocupar das tarefas domésticas, que deve colocar comida à mesa, bem como se oferecer como comida na cama.

Torna-se interessante comentar, ainda, que alguns dos referidos embrulhos dos Objetos de Sedução ocultavam até mesmo textos feministas, os quais a artista pretendia que operassem como “uma contradição daquilo tudo” (Pape, 1983). Quanto a essa manobra, imagine-se que esses fragmentos de vozes feministas estariam ali infiltrados como ínfimas ameaças no meio do corpo da obra, aguardando o momento de circularem como vírus no sistema falocêntrico; primeiramente ali no “mundo da arte” e, eventualmente, em seguida, para fora do museu, para a “vida”. Por outro lado, ao fazer deles também Objetos de Sedução, Pape aponta para a extrema capacidade absorvedora das diferenças, das vozes críticas e dos atos subversivos exercida pelo mercado.

Para a ensaísta britânica Angela McRobbie (2006), a virada da década de 1980 para a de 1990 foi o momento em que houve uma grande disseminação de valores feministas na cultura popular, em particular em revistas, em que, “de repente”, questões centrais na formação do movimento das mulheres – como violência doméstica, igualdade de salários e assédio sexual – passaram a ser endereçadas a muitos leitores. Nesse sentido, o ano de 1990 teria marcado o momento em que o conceito de feminismo popular ganhou expressão na cultura inglesa e anglo-saxônica. Para a autora, entretanto, torna-se fundamental perceber que tal “sucesso do feminismo” se deu, eventualmente, muito em virtude de um interesse entusiasta da mídia de massa em se mostrar moderna e aliada às mudanças sociais, para, desse modo, conseguir aumentar seu número de leitoras e sua audiência feminina. Por outro lado, havia também a acentuação da necessidade do mercado, surgida anteriormente em tempos de guerra, de incentivar a entrada da mulher na força de trabalho. McRobbie acrescenta que o destaque alcançado pelas mulheres àquele momento acabou por ser contra-atacado pelo backlash (feminismo não popular, nos termos de McRobbie, ou contrafeminismo) desde o início de nosso século.

A autora nota ainda outra reação contemporânea ao “sucesso do feminismo” da década de 1990, a qual ela denominou de pós-feminismo: não diretamente negativa, mas perversamente enfraquecedora das conquistas feministas das décadas anteriores. Observa que esse mesmo ano de 1990 coincidiria com um momento de autocrítica na teoria feminista, em que as reivindicações representacionais da segunda onda feminista foram totalmente questionadas por feministas pós-coloniais, que inauguraram uma radical desnaturalização do corpo, propondo um corpo pós-feminista. Nas palavras de McRobbie (2006):

“Sob a predominante influência de Foucault, há um deslocamento do interesse feminista dos blocos de poder centralizados – por exemplo, o estado, o patriarcado, a lei – para espaços mais dispersos, eventos e instâncias de poder conceituadas como fluxos, convergências e consolidações específicas da fala, do discurso e atenções. O corpo e o sujeito passam a representar um ponto central de interesse feminista, principalmente no trabalho de Butler.” (McRobbie, 2006: 2)

Por outro lado, McRobbie assinala que, no século XXI, a reação/apropriação por parte dos meios de comunicação de massa da franqueza em se falar de sexo (como imperativo para a prevenção da AIDS) teria se transformado em “normalização do pornô”, ou “pornografia irônica”. O que no passado era pornografia leve, “fora do alcance dos jovens, colocada no alto das prateleiras da banca”, agora, estaria sendo produzida pela mídia (britânica) de forma explícita, em grande quantidade e diretamente voltada para o público adolescente.

Nessa “hipercultura da sexualidade comercial”, argumenta McRobbie, o feminismo seria evocado apenas para ser sumariamente dispensado: “o striptease como um modo de exploração feminina” e/ou a teoria de Laura Mulvey, da “mulher como objeto do olhar”, apareceriam como um espectro de desaprovação apenas para serem localizados num passado em que as feministas costumavam se opor a esse tipo de imagem.

 Ironicamente, contra um “puritanismo feminista”, essas imagens pareceriam alardear um alívio com o retorno da “permissão” de se olhar novamente para o corpo das mulheres (ao mesmo tempo em que pretenderiam jogar com uma possível condenação feminista como uma estratégia para gerar publicidade).

Oportunamente, vale abrir parênteses para assinalar que, embora artistas como Lygia Pape não tenham exibido a própria nudez no circuito institucional da arte, em meio ao cenário brasileiro das décadas de 1960/70, com a virada para os anos 2000, pôde-se observar cada vez mais a presença de artistas brasileiras que experimentam essa estratégia, como Anna Behatriz Azevedo, Aleta Valente, Berna Reale, Beth Moysés, Camila Bacellar, Cristiana Nogueira, Lia Chaia, Luana Aguiar, Luiza Prado, Marcela Tiboni,Michelle Mattiuzzi, Millena Lízia, Sara Panamby – dentre as quais estaria incluída, evidentemente, com minha performance Dar de Si (2011) –, em diferentes graus de acentuação em relação à crítica aos padrões de beleza, à estratégia de erotização e sensualidade e à declaração aberta de articulação com as pautas feministas atuais.

De volta a Eat me: a gula ou a luxúria, ao comentar sobre a exposição, Lygia Pape disse que ali não havia um discurso ideológico direto no sentido de ser “uma transação feminista”, explicando que tinha “sérias dúvidas sobre essas posições” (Machado, 2010: 160). Nesse sentido, relembre-se que as relações entre o movimento de mulheres e as organizações de esquerda no Brasil foram bastante particulares, e que, consequentemente, sob uma sobreposição de desvalorizações, transbordou-se para o campo da arte “um tipo específico de imprecisão” (Hollanda, 1991: 2), causando um desconforto nas artistas brasileiras, até ao menos o início dos anos 2000 (mas que ainda permanece em muitos casos), quando seus trabalhos eram (são) associados às demandas políticas feministas ou aos debates da teoria feminista.

Não houve, igualmente, vozes curatoriais e teóricas a articularem um discurso de aproximação entre as palavras arte e feminismo, ao que parece não antes da virada do século XX para o XXI[iv].

Mesmo atualmente, há casos de olhares retrospectivos ao trabalho de Lygia Pape, por exemplo, que tendem a manter o afastamento entre as referidas palavras ao interpretar que o “humor cáustico” da artista a “afastava do moralismo de muitas obras feministas” (Machado, 2010: 160).

 Para eventualmente deixar mais complexo o olhar sobre a obra da artista brasileira, permito-me recolocar aqui a indagação lançada em Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira: esse mesmo “humor cáustico” característico de Pape não daria margem para desconfiarmos de suas “sérias dúvidas sobre essas posições [feministas]”?

 Ao lado de sua pesquisa de 1979 intitulada “A mulher na iconografia de massa” e da ironia de obras como Étant Donnés? (1999), bem como de preocupações com o “espaço patriarcal”[v] que suscitaram a concepção de Eat me, tal fala da artista pareceria um jogo com o mercado, uma forma de negociação sofisticada com a instituição de arte; pareceria em si mesma um tanto quanto irônica.

No já citado Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975), Laura Mulvey assumiu que o lugar de espectador é ocupado conceitualmente pelo sujeito masculino, ainda que evidentemente as salas de cinema sejam, na prática, também frequentadas por mulheres. A autora embasou sua hipótese na análise das estruturas narrativas predominantes na indústria cinematográfica que se articulam para exibir imagens de mulheres para o deleite do olhar masculino. Deste modo, a julgar pela quantidade de corpos femininos desnudos expostos nos museus do Ocidente, o mesmo argumento poderia ser emprestado para a esfera das artes plásticas.

Nesse sentido, conforme visto acima, Hannah Wilke, em seu trabalho, oferecia a si mesma com extravagância para sua audiência, como um comentário aberto acerca do circuito de desejo que motiva a produção e a recepção da arte (Jones, 1998: 166). Circuito escrupulosamente velado na crítica e na história da arte modernista que enquadra o objeto de arte dentro de uma retórica masculinizada da interpretação “desinteressada” (que coloca a nudez feminina como objeto comum de um grupo de especialistas ou como deleite formalista). Pode ser visto, portanto, na obra da artista nova-iorquina uma procura por escancarar o quanto essa lógica disciplinar de enquadramento e seu corolário de supressão do desejo interpretativo é informada por investimentos sexuais específicos.

De modo semelhante, quanto ao vídeo de Pape projetado na empena cega do MAM é possível traçar uma aproximação com o conceito da construção da mulher como objeto oferecido ao deleite do olhar masculino. Nos trabalhos expostos por Lygia Pape dentro do museu àquela mesma ocasião, porém, os diversos objetos cujos usos seriam largamente vinculados ao corpo da mulher e aos rituais de alimentação da vaidade, de perseguição da beleza, atrelados mais comumente ao cotidiano feminino, não maquiavam a pele de mulher.

Diversamente, repousavam em vitrines ou eram vendidos ao espectador (homem, por definição conceitual), em um deslocamento de público-alvo que não restringia seus usos, mas, ao contrário, apontava para possibilidades mais complexas de construção de identidade, de elaboração de máscaras e de modelagem de corpos, abrindo possibilidades do uso daquela “parafernália” também para o corpo do homem.

A carga de ambivalência que esse trabalho carrega pode se apresentar, portanto, como via para problematizar o lugar do outro, a categoria “mulher” e para suspeitar de sua coerência e de suas exclusões constitutivas, direcionando hoje saídas para as teorias e práticas feministas diante das amarrações que se impuseram nas últimas décadas. Algo de semelhante em relação à ambivalência na “retórica da pose” de Hannah Wilke que apontava alternativas em relação ao que foi o feminismo essencialista da década de 80.

 De toda sorte, a meu ver, é interessante assinalar o quanto as particularidades do contexto brasileiro e a recusa, ou mesmo, a impossibilidade de assumir uma postura feminista explícita contribuíram para desviar as artistas brasileiras de certas armadilhas, como a fixação na concepção moderna do corpo reificado, a reprodução de interpretações distorcidas das teorias psicanalíticas e a ratificação da lógica do olhar masculino que objetifica a mulher na sociedade patriarcal, ofensas outrora dirigidas, no cenário internacional, às artistas da body art dos anos de 1960 e 70.

 

 

Nota biográfica:

Roberta Barros é autora do livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (2016). Doutora, autora da tese “Arte feminista ou feminina: uma questão do contexto histórico brasileiro”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, e vencedora do Prêmio Gilberto Velho de Teses - edição 2014. É mestre em Linguagens Visuais pelo mesmo programa (2008). Graduada em Comunicação Social / Publicidade pela PUC-Rio (2001). Entre 2009 e 2013, lecionou no curso de pós-graduação em Design Gráfico da Universidade Estácio de Sá (JF) e na mesma área do curso de graduação da Universidade da Cidade (RJ). Entre 2014 e 2016 foi professora do curso de Comunicação Social, lecionou e orientou trabalhos de conclusão de curso na faculdade de Desenho Industrial da Universidade Cândido Mendes. Atualmente é pós-doutoranda do Departamento de Arte (GAT) do Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF), com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

 

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  Notas

[*] para ver imagens de Hannah Wilke https://www.google.com.br/search?q=hannah+wilke&biw=1391&bih= 656&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved

=0ahUKEwik4v7b3I7OAhVIDpAKHWDQCFMQ_AUIBigB

[**]Para ver imagens de Lygia Pape  https://www.google.com.br/search?q=hannah+wilke&biw=1391&bih=656&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=

0ahUKEwik4v7b3I7OAhVIDpAKHWDQCFMQ_AUIBigB#tbm=isch&q=lygia+pape

 

[i] Alguns exemplos, como os autorretratos (fotografados por Dennis Cowley) da série Intra Venus (1992-93), estão disponíveis em http://www.hannahwilke.com/id5.html; ou http://www.kunstmuseum-luzern.ch/pg/fr/fenster/another/wilke.html; ou https://smmoa.org/programs-and-exhibitions/hannah-wilke-intra-venus/

[ii] É importante lembrar que Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity foi publicado em 1990 e Bodies That Matter: On the Discursive Limits of "Sex", em 1993. 

[iii] A frase “Marxismo e Arte: Tome Cuidado com o Feminismo Fascista” foi veiculada em um pôster de 1977 e estava acompanhada por uma das poses provocadoras de Hannah Wilke, com a blusa desabotoada escorrendo por seus braços, de modo a revelar completamente seu busto desnudo (salvo pela presença de uma gravata que lhe pendia entre os seios e pequenas gomas mastigadas grudadas em sua pele). “Eu fiz esse pôster porque senti que o feminismo poderia facilmente se tornar fascista se as pessoas acreditarem/acreditassem que feminismo é apenas o seu tipo de feminismo e não o meu tipo de feminismo, ou o tipo dela de feminismo, ou dele de feminismo” (apud JONES, 1996: 171). Apenas a partir da segunda metade da década de 1990 destacaram-se mais vozes interessadas em revisar a abordagem de determinados trabalhos de arte e o entendimento de determinadas estratégias políticas que aquela crítica dos anos de 1980 fez solidificar – como, por exemplo, Susan Bordo, resgatando os textos de Andrea Dworkin, e Amelia Jones, reabilitando Judy Chicago, Carolee Scheemann, Ana Mendieta, Hannah Wilke, dentre outras artistas.

[iv] Citem-se as exposições O preço da sedução: do espartilho ao silicone, com curadoria de Denise Mattar, produzida no Instituto Cultural Itaú, de 18 de março a 30 de maio de 2004; Mulheres Pintoras: a casa e o mundo, com curadoria de Ruth Spring Tarasantchi, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 21 de agosto a 17 de outubro de 2004; e Manobras Radicais, com curadoria de Heloisa Buarque de Hollanda e Paulo Herkenhoff, no Centro Cultural Banco do Brasil, de 8 de agosto a 15 de outubro de 2006. Há que se lembrar, entretanto, da Mostra realizada em 1960, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, com curadoria do crítico Paulo Mendes de Almeida: Contribuições da Mulher às Artes Plásticas no País. Ver Amaral (1993) e Botti (2005).

[v] Nas palavras da própria artista: “O projeto EAT ME igual à gula ou à luxúria? constrói-se a partir de um espaço particularizado: o espaço patriarcal, que faz parte ou está inserido no sistema geral dos espaços poéticos” (PAPE, 1976).

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janeiro/ junho 2016 - janvier/juillet 2016