labrys,
études féministes/ estudos feministas
Tecendo Uma Criminologia Feminista no Brasil
Partindo do pressuposto de que em face ao poder punitivo as mulheres – seja enquanto vítimas, rés ou condenadas – estão submetidas a um secular sistema de custódia, o presente artigo tem como objetivo demonstrar a possibilidade de afirmação de “uma” criminologia feminista alicerçada no feminismo enquanto teoria crítica capaz de fornecer o referencial epistemológico e metodológico necessário à compreensão de que a relação do gênero feminino em face do poder punitivo. Para tanto, tenho como ponto de partida o por mim conceituado sistema de custódia, consistente em um conjunto de condicionantes baseados no gênero coordenadamente articulados pelo Estado, pela sociedade e pela família ao longo dos processos de criminalização e vitimização das mulheres. Palavras-chave: Criminologia. Feminismo. Epistemologia feminista. Sistema de custódia.
Sem embargo, mais do que o sucesso editorial do texto, o que a necessidade de suas constantes novas tiragens e nova edição veio a demonstrar (1) era algo que as inquietações, inconformidades e desassossegos que motivaram sua redação já prenunciavam: a constatação de que a maioria dos trabalhos, senão todos, encontrados no Brasil sobre a condição feminina, seja como autora de crimes, seja como vítima, encontram-se referenciados em paradigmas criminológicos conformadores de categorias totalizantes, que se distanciam muito (ou totalmente) do que produziu a epistemologia feminista. Como dizia eu, já na introdução da obra, embora existissem feministas criminólogas, poucas eram as que defendiam a existência autônoma de uma criminologia feminista. Feminismo e gênero, na melhor das hipóteses, eram encontrados nos textos criminológicos brasileiros não mais do que como um mero ‘modelo aditivo’. A construção (ou reconhecimento) de um referencial autônomo que permitisse compreender os diferentes contextos de vitimização e de criminalização das mulheres era, portanto, necessária. Contudo, sem que isso significasse uma rendição a matrizes ideológicas conservadoras dadas, até os dias atuais, pelo positivismo e seu paradigma etiológico. Reconheço eu, assim, que a criminologia crítica, com a qual dialogo intensamente, sob determinado prisma, representou uma revolução epistemológica que não pode ser desconsiderada. A criminologia é dotada de uma multiplicidade de
ideias em virtude das quais é possível a construção
de conceitos que, sob diferentes pontos de vista, e ao longo dos tempos,
descreveram (e descrevem) o que é o crime, quem é o(a) criminoso(a),
quem é a vítima, e como é estruturado o sistema criminal
e as formas de controle daí decorrentes. Pretender construir um
pensamento criminológico que tenha no gênero, enquanto relação
de poder, elemento fundamental da articulação que define
o que está dentro e fora do sistema de justiça criminal
não demanda, entretanto, apenas adquirir o domínio desses
conceitos. Como nos lembra, Elaine Pimentel (2002), a criminalidade feminina, tal como a violência doméstica, são alguns recortes que devem ser estudados à luz de tendências teóricas voltadas tanto para os aspectos estruturais quanto para as dimensões subjetivas que fazem do crime um fenômeno plural. Ou seja, é preciso levar em consideração que espaços como a família, por exemplo, quase sempre relegados como se fossem formas menores de exercício do poder, precisam ser tomados desde uma outra mirada. Neste artigo, revisitando o Criminologia Feminista, proponho-me demonstrar a emergência de um pensamento criminológico feminista, entendendo, com Pimentel (2002), que o rechaço às peculiaridades das diferenças de gênero tem como um de seus mais nefastos efeitos a sedimentação das desigualdades construídas historicamente entre mulheres e homens. Parto do pressuposto de que o feminismo, enquanto teoria crítica, tem a capacidade de fornecer o referencial epistemológico e metodológico necessário para afirmar a existência de uma criminologia feminista. E com isso quero dizer, de fato, de uma criminologia que não pretende ser a “única” criminologia feminista. Mas “uma”, dentre as várias possibilidades de construção do conhecimento, que a diversidade de feminismos, e suas correspondentes epistemologias, apresentam. 2 O pensamento criminológico como o (não) lugar das mulheres Pode-se dizer que o século XIII foi determinante para a construção de alguns conceitos que contribuíram para a concepção de direito, justiça, poder punitivo e o desenvolvimento de métodos punitivos e de controle. Como a história registra, a Inquisição representou uma manifestação orgânica do poder punitivo recém-nascido, a partir da qual, pela primeira vez, se expõe de forma integrada um discurso sofisticado de criminologia etiológica, direito penal, direito processual penal e criminalística (ZAFFARONI, 1995). Com ela nasce uma complexa narrativa consolidada no conhecido livro O Martelo das Feiticeiras, a partir da qual as mulheres torna-se uma ameaça a ser combatida por ser um agente do mal (de Satã), capaz de “corromper” as estruturas de poder. Daí porque o início da caçada às bruxas e o estabelecimento de toda uma pedagogia direcionada às mulheres. Nos dizeres de Jean Delumeau (1982), do mesmo modo que o judeu, as mulheres foram então identificadas como um perigoso agente de Satã; e não apenas por homens de igreja, mas igualmente por juízes leigos. A forma de vestir-se ou mesmo de ocupar-se com os afazeres não domésticos as tornavam possíveis articuladoras de maldades. Elas representavam uma “ameaça hostil” ao cristianismo e consequentemente à estrutura patriarcal. Conforme Delumeau (1982:314), “dizia-se que as mulheres eram sempre mais fracas em manter a sua fé, eram mais fracas na mente e no corpo, e por isso tinham uma predisposição para praticar o mal”. Em uma coordenação dos saberes teológico, jurídico e também médico, é construído, durante o período inquisitorial, um discurso forte do poder punitivo em relação às mulheres. Uma narrativa tão eloquente que durante muito tempo nada a pode suplantar. Séculos mais tarde, com o advento do Iluminismo em meados do século XVIII, inicia-se o que se convencionou chamar de período humanitário, marcado por questionamentos filosóficos e jurídicos sobre como racionalizar o castigo. Um momento histórico iluminado, como dito, também no toca à seara penal, mas que, por outro lado, nada significou em relação à condição das mulheres e à forma como continuaram a ser percebidas (ou despercebidas) pelo nascente pensamento fundado no “dei delitti e delle pene”. De fato, ao longo dos três séculos seguintes nenhuma mulher restou incólume ao delírio persecutório construído pela Inquisição. Um empreendimento ideológico tão bem arquitetado e alicerçado que, depois do Malleus Maleficarum, até o século XIX, as considerações sobre o crime e o criminoso, salvo referências tangenciais e esporádicas, não mais se ocupou das mulheres. Ou melhor, não mais “precisou” ocupar-se delas, posto que criminosas/pecadoras por essência e condenadas à reclusão, quer fosse em casa ou nos conventos (MENDES, 2014:28-29). A Criminologia nasce com Idade Moderna desde as teorias de Cesare Lombroso em sua obra intitulada o Homem Delinquente. A partir deste texto é construído um novo paradigma segundo o qual seria possível determinar quem era “o criminoso” de acordo com estigmas corporais recorrentes entre os delinquentes .(2) Tal obra de Lombroso é famosa e reconhecida. Todavia, o que pouco é dado a conhecer, é que, em coautoria com Giovanni Ferrero, em 1892, o médico italiano também escreveu La Donna Delinquente, obra na qual descreve aquelas que seriam as características das mulheres criminosas. Para as mulheres, além das características físicas, a periculosidade estava associada a elementos de ordem valorativa tais como a malícia, a capacidade de sedução, a tendência à maledicência, dentre outros estigmas. Isto é, no caso das mulheres, ao lado da conformação física, existiam, segundo Lombroso, uma quantidade de características morais que, por sinal, são as mesmas afirmadas desde a Inquisição. (3) Em síntese, a criminologia nasce e institui-se como um discurso de homens, para homens, sobre homens, para somente em alguns momentos transformar-se em um discurso de homens, sobre homens e para as mulheres. Nota-se, em um recorrido pela literatura criminológica que nunca pareceu ser politicamente relevante considerar as experiências destas enquanto categoria sociológica e filosófica. De maneira que, no discurso criminológico competente atual, as mulheres surgem somente em alguns momentos, contudo, no máximo, como uma variável, jamais como um sujeito.
3 O sistema de custódia como articulador do que está dentro e fora do sistema de justiça criminal Mais do que a memória das fogueiras, um dos principais legados do período medieval é, para as mulheres, um projeto de custódia que fortaleceu institucionalmente e subterraneamente a existência de cárceres, carcereiros e a afirmação de que o gênero feminino constituiria um grupo perigoso. Não é por outro motivo, senão pela necessidade de concretização de um projeto de poder que, ao longo dos tempos, a casa, o convento, o manicômio e a prisão sucederam-se como locais de confinamento . (4) A ideologia em relação às mulheres sempre foi a de custodiá-las, ou seja, de reprimi-las, vigiá-las e encarcerá-las – no público e no privado –, mediante mecanismos de exercício de poder do Estado, da sociedade, de forma geral, e da família. Uma política multifária em atores e formas de atuação, mas monolítica no que tem de vigilante, perseguidora e repressiva (MENDES, 2014: 213). É sempre importante lembrar que não estou afirmando a estrita correlação entre a casa e o convento, como espaços de reclusão feminina, e as prisões existentes do século XIX em diante. Por outro lado, como sempre faço questão de sublinhar, o privar alguém da liberdade de locomoção em decorrência da prática de uma conduta considerada “indesejável” é o que consubstancia o conceito de prisão, em qualquer tempo e lugar (MENDES, 2014: 140). De modo que, considerar este ou aquele espaço, como lócus de encarceramento é uma opção ideológica que varia de acordo com o que, ou quem, se pretende visibilizar (MENDES, 2014: 142). Para as mulheres sempre existiu um sistema penal aparente e um sistema penal subterrâneo. O sistema penal subterrâneo, segundo Lola Aniyar Castro (2005:128), opera nos diferentes níveis do sistema social, isto é, tanto nos mecanismos de controle formal, quanto nos de controle informal, e aparece tanto nos conteúdos como nos não conteúdos do controle social. Segundo Castro (2005), enquanto o sistema penal aparente formula expressamente o que é “mau” nas leis incriminadoras, é o sistema penal subterrâneo que decretará o que é bom. E, consequentemente, quem são os “bons” do sistema social. Me alinho ao pensamento de Castro (2005) quanto ao que entende ser o sistema aparente e o sistema subterrâneo. Entendo, por outro lado, que as mulheres não são controladas, mas, sim, custodiadas, pois não me parece possível analisar os processos de criminalização e vitimização que as envolvam sem que se considere sistemicamente crenças, condutas, atitudes e modelos culturais (informais) em articulação com as respostas apresentadas pelas agências punitivas estatais (formais) para elas. A análise dos processos de criminalização e vitimização das mulheres não dispensa este duplo trabalho. Quero explicar melhor esse ponto. De acordo com Vera Regina Pereira Andrade, entende-se por controle social, em sentido lato, as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticas, ameaçadoras ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e, nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) o próprio desvio e a criminalidade como uma forma específica dele. Conforme a autora: “Daí a distinção entre controle social informal ou difuso e controle social formal ou institucionalizado. A unidade funcional do controle é dada por um princípio binário e maniqueísta de seleção; a função do controle social, informal e formal, é selecionar entre os bons e os maus os incluídos e os excluídos; quem fica dentro , quem fica fora do universo em questão, sobre os quais recai o peso da estigmatização.”(Andrade ,2004 : 267))  Como afirma Andrade (1995), tanto a criminalização secundária insere-se no continuum da criminalização primária, quanto o processo de criminalização seletiva, acionado pelo sistema penal, se integra na mecânica do controle social global da conduta desviada de uma maneira que, para compreender seus efeitos, é necessário apreendê-lo como um subsistema encravado dentro de um sistema de controle e de seleção de maior amplitude. Em síntese, o sistema penal não realiza o processo de criminalização e estigmatização à margem ou contra os processos gerais de etiquetamento que tem lugar no seio do controle social informal, como a família, a escola, o mercado de trabalho, entre outros. Segundo Andrade, nesta perspectiva, fica relativizado tanto o lugar do direito e da justiça penal no controle social formal, quanto o lugar deste em relação ao controle social global. Se de um lado o controle a que estão submetidas as mulheres na família, escola, trabalho, meios de comunicação não é propriamente jurídico, por outro, o sistema penal cumpre também uma função disciplinadora para manter a subordinação feminina. O controle formal e informal, assim, “se alimentam entre si para perpetuar e legitimar a subordinação das mulheres” (OBANDO, 2007: 108). Como arremata Andrade (2004) o sistema de justiça criminal está inserido na mecânica global de controle social, de tal modo que não se reduz ao complexo estático da normatividade, nem da institucionalidade. Ele é concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual concorrem não apenas as instituições do controle formal, mas o conjunto dos mecanismos do controle social informal. Existe, como aponta a autora, um macrossistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle, circundado pelas instituições informais de controle, e nós integramos e participamos da mecânica de controle, seja como operadores formais ou equivalentes, seja como senso comum ou opinião pública. Em uma primeira análise, a concepção
de controle social, tal como definida acima, parece irreparável.
Entretanto, assim como em outros campos do conhecimento científico,
na criminologia a dicotomização entre público e privado
(ou formal e informal) contribui para a invisibilidade do sistema sexo-gênero
nas pesquisas realizadas. Pois, por mais que se afirme a interdependência,
a separação entre formal e informal, no que se refere ao
controle dirigido às mulheres, é elemento primordial para
a não realização de estudos que busquem compreender
as peculiaridades dos processos dos criminalização e vitimização
das mulheres que, necessariamente, ultrapassam o sistema de justiça
criminal como objeto. Assim admitiu Baratta ao tratar dos limites da interdisciplinaridade
interna. Neste mesmo sentido, para a criminóloga Tereza Miralles, a instituição familiar se estruturava ao redor de dois papéis que são o do homem, como produtor de bens, e o de reprodutora, destinado às mulheres. A disciplina social é garantida na família pela figura masculina de pai e marido à qual as mulheres está sujeita. Segundo a autora, ao papel de reprodução se agregam algumas características particulares, quais sejam as referentes à disciplina com relação ao marido que condizem com o papel secundário das mulheres na família e na sociedade. Como ela diz, “[...] la mujer es realmente mujer cuando es femenina, es decir: suave, dulce, dependiente, obediente, obsequiosa, agradable; en resumen cuando dedica su vida a la felicidad de los demás que forman su entorno nuclear familiar. Por ello, la educación que se recibe de la familia se enseña a las hijas un método de socialización propio de su sexo: la niña aprende a ser más controlada, pasiva, doméstica. La mujer ha de pedir protección contra la agresividad, contra la fuerza física. Cuando la mujer posee estas características es valorada por el entorno familiar y por la sociedad (MIRALLES, 1983:134). Contudo, é a constante investigação familiar e social sobre este conjunto de características que torna a família o primeiro mecanismo de controle sobre as mulheres no intuito de garantir que mantenha-se subordinada realizando o trabalho doméstico que não tem valor econômico de troca. Trata-se de uma situação de invisibilidade pública que restringe direitos e estabelece deveres por leis abstratas de conteúdo conceitual “neutro” que esconde a natureza da opressão das mulheres. Para Miralles, tal como para Baratta, o controle social exercido sobre as mulheres é preponderantemente informal. Coerção esta que desempenha um papel fundamental na perpetuação da ordem social existente. E essa é uma das razões para que em todas as análises criminológicas produzidas sob este prisma, a família, por exemplo, seja um dado pressuposto, e não o elemento integrante da própria análise enquanto espaço de relações de poder. Como propõe Alvarez (2004: web), com quem concordo, as pesquisas sobre o controle social precisam ultrapassar uma visão instrumentalista e funcionalista do mesmo, “como uma misteriosa racionalidade voltada para a manutenção da ordem social” e buscar, em contrapartida, formas mais multidimensionais de pensar o problema, capazes de dar conta dos complexos mecanismos que não propriamente controlam, mas sobretudo produzem comportamentos considerados adequados ou inadequados com relação a determinadas normas e instituições sociais. Em meu entender, esse é o caso das mulheres vitimizadas e criminalizadas. De minha parte, concordo com o autor que a noção de controle somente poderá voltar a ser útil caso, entre outros aspectos, seja capaz de: um, indicar a que práticas sociais específicas corresponde; dois, recuperar as diferentes respostas dos agentes submetidos aos mecanismos de controle; três, mostrar que essas práticas podem ser produtivas e não apenas repressivas, já que podem produzir comportamentos em indivíduos e grupos sociais e não somente restringir e controlar as ações; quatro, evitar a dicotomia Estado/sociedade e pensar as práticas de controle social constituindo-se na relação entre as diversas dimensões institucionais da modernidade; e cinco, não cair numa visão por demais finalista da racionalidade dos mecanismos de controle social. Para que se possa compreender todas as maneiras a partir das quais é possível “controlar” um ser humano, e perceber quem se beneficia das distintas nuances como se exerce e formaliza esse controle, é preciso que se estude como se estrutura o poder dentro da esfera privada. Não basta estudar o controle social apenas na esfera pública, porque isso fornece um conhecimento parcial do modo em que se opera o sistema de custódia das mulheres. As mulheres não são controladas, mas custodiadas. Entretanto, para compreender como se dá este processo é necessário saber o que pensam as mulheres sobre os comportamentos socialmente negativos praticados contra elas pelos homens (FACIO, 1995: 65), e, com isso, penetrar na lógica das contradições que a realidade social apresenta, apreender as necessidades dos indivíduos e da comunidade no seu sentido historicamente determinado, e orientar a ação visando a superação dessas contradições e a satisfação dessas necessidades. Para que não se deixe de fora a realidade das mulheres, ou seja, para que não se produza uma análise sexista, é preciso que se incluam conceitos, análises, valores e técnicas de coleta de informação que tenham o gênero em consideração em suas diferentes dimensões. Não é possível analisar os processos de criminalização e vitimização das mulheres sem que se considere crenças, condutas, atitudes e modelos culturais (informais), bem como as agências punitivas estatais (formais). A análise dos processos de criminalização e vitimização das mulheres exige esta dupla tarefa. Lançar luzes sobre esta dicotomia permite compreender o desinteresse da(s) criminologia(s) pela família, não somente como núcleo primário de agregação e convivência, mas, também, das relações de poder. A separação entre o que é “formal” e “informal” decorre de uma decisão política que ideologicamente constrói o campo de pesquisa do que é mais importante, do que é estrutural. E este campo é onde estão os homens, sujeitos ao controle formal. As mulheres estão ocultas, no controle informal, bem menos exigente do Estado e da própria ciência criminológica. A custódia enquanto mecanismo de poder contínuo exercido em conjunto pelo Estado, a família e a sociedade é o que articula o que está dentro e fora do sistema penal (MENDES, 2014). Público e privado são conceitos existentes,
mas, jamais, ou muito pouco, explicitados nos conceitos, categorias e/ou
teorias criminológicas. E a separação, embora reconhecedora
de sua interdependência, entre formal e informal são exemplos
disso. Visto desta maneira, compreende-se o propósito de uma criminologia feminista, sob o aspecto que venho tratando, ser aquele já enunciado por Kate Millet (1974: 39) em sua obra Política Sexual: “o pessoal é político”. Ou seja, público e privado estão interligados e são condicionadores da ação do sistema penal em relação às mulheres.
4 O standpoint e uma criminologia feminista À toda vista, o número de mulheres no cárcere é infinitamente menor em relação aos homens. Mas, ao contrário do caso masculino, em que os critérios de classe e raça são determinantes para o encarceramento, no caso feminino também o esperado papel de gênero é determinante para que seja reprimida, agora, mediante intervenção estatal. Ser mãe, por exemplo, é um fator de razoável peso para, esquizofrenicamente, aplicar uma pena mais dura e, ao mesmo tempo, em fase executória, considerar estas mesmas mulheres “mais recuperáveis”. Seguindo a reflexão de Matos e Machado (2012), as ideias de especificidade dos crimes cometidos pelas mulheres ancoram-se em argumentos advindos das teorias positivistas da criminologia, que destacam os determinantes biológicos do comportamento feminino e os estereótipos associados ao gênero. Ou seja, mais uma vez nos vemos remetidas, como já mencionei, a conceitos medievais-cristãos que construíram os papéis destinados a homens e mulheres em sociedade e, por consequência, também no mundo do crime. Ao longo do tempo construíram-se, sob a égide dos paradigmas até então conhecidos, narrativas criminológicas em relação às mulheres e sua relação com o poder punitivo. Discursos que, com Marilena Chauí (2007), podemos nominar como discursos competentes, isto é, aqueles que podem ser proferidos, ouvidos e aceitos como verdadeiros ou autorizados. Esta construção discursiva instituída
se confunde com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada,
ou seja, é um discurso no qual os interlocutores já foram
previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, e os lugares
e as circunstâncias já foram predeterminados para que fosse
permitido falar e ouvir. E, enfim, no qual o conteúdo e a forma
já foram autorizados segundo os cânones de sua própria
competência (CHAUÍ, 2007: 19). Por mais que a questão da subordinação de classe, tal como afirmado pela vertente da criminologia crítica, esteja mascarada no discurso científico da criminologia tradicional, não é possível desconhecer que a própria narrativa crítica não seja também um discurso instituído, ou da ciência institucionalizada. E que, como discurso instituído, também dissimule, sob o manto da crítica, a existência da real dominação (CHAUÍ, 2007: 23). O processo de produção do conhecimento em quaisquer dos vieses da criminologia não se afasta do paradigma do interrogatório. Isto é, de uma fórmula na qual o sujeito do conhecimento se coloca em posição de inquisidor, sempre em um plano superior ao objeto interrogado. O conhecimento sob este paradigma, resultado do avanço do saber mediante o interrogatório e a tortura ou violência (indagação e experimento) tem uma particularidade que lhe marca: o sujeito pergunta ao objeto para dominá-lo. O objeto responde com toda sua profundidade. Mas o sujeito não está preparado para escutar a resposta dada com toda a profundidade do ser perguntado. Porque só está preparado para escutar o que busca dominar. A parte não escutada de todas as respostas se acumula sobre os sujeitos e lhes esmaga (ZAFFARONI, 2001: 60). É um dominus que pergunta para exercer poder. Desse modo, a discriminação hierarquizante entre os seres humanos é um pressuposto e uma consequência desta forma de saber do dominus. Inconscientemente, ou não, o conhecimento criminológico se constrói em uma lógica de descobrimento(5) que apresenta resultados marcadamente sexistas. Sob o prisma epistemológico do standpoint, a assunção do paradigma feminista significa uma subversão da forma de produzir conhecimento, até então dado sob parâmetros epistemológicos distanciados das experiências das mulheres, e da compreensão do sistema sexo-gênero. O paradigma feminista implica uma radicalização completa na medida em que a perspectiva de gênero não é um “aditivo”, como ocorre em análises criminológicas realizadas sob o paradigma da reação social. O reconhecimento do processo de custódia, construído ao longo de séculos, e vigente até nossos dias, torna impossível a adoção do sistema de justiça criminal como o objeto principal (no mais das vezes único) do campo de conhecimento. O objeto é, agora, toda a articulação entre Estado, sociedade e família em quaisquer momentos em que as mulheres são vítimas, rés ou condenadas. É bem verdade que, em estudos mais atuais, o sexismo não é tão rudimentar quanto no período lombrosiano. Contudo, o discurso competente que oculta as mulheres como sujeito no campo da criminologia não é campo reservado a esta ou àquela corrente. De etiológicos a críticos, todos incorrem em alguma forma de sexismo. Para Baratta (1999: 46), por exemplo, [...] o direito penal é um sistema de controle específico das relações de trabalho produtivo, e, portanto, das relações de propriedade, da moral do trabalho, bem como da ordem pública que o garante. A esfera da reprodução, da troca sexual de um casal, da procriação, da família e da socialização primária em outras palavras, a ordem privada, não é objeto de controle exercitado pelo direito penal, ou seja, do poder punitivo público". O sistema de controle dirigido exclusivamente à
mulher (no seu papel de gênero) é o informal, aquele que
se realiza na família.
Ou seja, a diferença sexual inscrita nas práticas e nos fatos é sempre construída pelos discursos que a fundam e a legitimam, não sendo um reflexo das relações econômicas. É, portanto, questionável a tese de que a industrialização provocou uma separação entre o trabalho e o lar, obrigando as mulheres a escolher entre o trabalho doméstico e o assalariado. Em verdade, o discurso masculino, que estabeleceu a inferioridade física e mental das mulheres, foi que definiu uma partilha que conferiu “aos homens, a madeira e os metais” e “às mulheres, a família e o tecido”. É essa narrativa que provoca uma divisão sexual da mão de obra no mercado de trabalho, reunindo as mulheres em certos empregos, substituindo-as sempre por baixo de uma hierarquia profissional, e estabelecendo seus salários em níveis insuficientes para sua subsistência. Como já escreveu Lola A. Castro (2010: 70), reduzir a opressão às condições materiais de vida, ao funcionamento das instituições ou às ideologias foi (afirmo eu, que ainda é) um erro. As repressões se estendem a todas as instâncias, a todos os níveis, incluindo os da vida sexual e afetiva. Como nos ensina a professora venezuelana, é chegado o momento de também lançar luzes sobre os poderes que se ocultam na intimidade, pois estes são ainda mais arbitrários e incontroláveis. Alessandro Baratta (1999: 23) afirmava que a aplicação do paradigma de gênero é uma condição necessária para o sucesso da luta emancipatória das mulheres no campo da ciência e da política do direito. Por outro lado, sustentava que uma criminologia feminista somente poderia desenvolver-se, de modo oportuno, na perspectiva epistemológica da criminologia crítica (BARATTA, 1999: 39). Em minha perspectiva, adotar o ponto de vista feminista significa um giro epistemológico, que exige partir da realidade vivida pelas mulheres (sejam vítimas, rés ou condenadas) dentro e fora do sistema de justiça criminal. E, sob este prisma, ouso afirmar, que a criminologia crítica somente poderá sobreviver na perspectiva epistemológica de uma criminologia feminista (MENDES, 2014:163). 6 Considerações finais                Sandra Harding nos ensina ser preciso que nós, acadêmicas feministas, aprendamos a ver nossos projetos teóricos como acordes claros que se repetem entre os compassos das teorias patriarcais, e não como releituras dos temas de quaisquer delas, que, só aparentemente, são capazes de expressar o que achamos que queremos dizer no momento. Daí porque entender que experiência das mulheres não deve constituir-se como um critério homogêneo e estereotipado, ou como uma “consciência atual”. Pelo contrário, é a partir da experiência das mulheres que se definem as condições teóricas para que alternativas sejam criadas (1993:11). Os paradigmas extraídos do mundo masculino das ciências sociais redundam na negação da humanidade das mulheres. Penso, com Pimentel (2002), que a emergência de um ponto de vista feminista (feminist standspoint) revela como a divisão sexual do trabalho extrapola o campo das relações corriqueiras e produz efeitos no próprio mundo acadêmico. E, por fim, entendo, com Facio e Camacho (1995), que somente quando conseguirmos demonstrar isto, será possível conjuntamente, homens e mulheres, criar modelos, parâmetros e paradigmas que respondam a uma concepção de mundo, e de nosso papel nele, mais harmonioso, pacífico e enriquecedor. No mundo inteiro as mulheres insistem na importância de suas experiências como mulheres, e não como indivíduos diluídos dentro de classes, ou quaisquer grupos de gênero invisível. Assim, uma criminologia feminista brasileira, da qual pretendo ser parte, necessariamente será marcada pelas experiências históricas específicas, pelo contexto socioeconômico, pelos necessários recortes de raça e etnia, dentre outros aspectos inerentes à realidade vivida pelas mulheres no Brasil, ou na América Latina (MENDES, 2014: 215).
Notas (1)Em 2017, também fruto de reflexões do processo de doutoramento foi publicada a magnífica obra também denominada Criminologia Feminista, de autoria de Carmen Hein Campos (2)Mendes (2014, p. 37), nos remete aos estudos de Lombroso, os quais identificava o delinquente nato com anomalias no crânio (enorme fossa occipital e uma hipertrofia do lóbulo, análoga à encontrada nos vertebrados inferiores), fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supra-ciliais, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occipital, orelhas em forma de asa, maçãs do rosto proeminentes, braçadas superior à estatura, entre outros sinais. (3)Mendes (2014, p. 37), Em uma breve nota, vale mencionar que, para Lombroso, a beleza, por exemplo, proporcionava ao gênero feminino uma capacidade muito maior de ludibriar e enganar as pessoas. Segundo ele, as mulheres mentiam por instinto, sempre se dizendo inocentes, mesmo ante “provas irrefutáveis”. Assim como também são incapazes de manter o sigilo, daí por que acabarem sendo vítimas de sua propensão natural à fofoca (2004, p. 191). Apesar de as teorias de Lombroso e as demais que lhe seguiram terem sido predominantes em uma época específica, nota-se que temos ainda muito delas arraigado no pensamento criminológico. Além disso, penso e ouso dizer que muitos dos conceitos trazidos e chancelados como científicos a partir da Antropologia Criminal remontam ao cristianismo, em sua época mais obscura, que foi a Inquisição, e ainda permanecem. Basta notar o quanto ainda são recorrentes os discursos de que a mulheres são mais emocionais que os homens, que é levada pelos encantos ou pelas benesses do crime, ou de que muitos de seus crimes se explicam por laços de afetividade, como por exemplo, o crime de tráfico de drogas. Não é raro que para o senso comum (e, algumas vezes até mesmo para a academia) a maioria das mulheres envolvidas com entorpecentes o estejam em razão de seus maridos, companheiros ou namorados. O que, conforme nossas pesquisas vêm demonstrando, não corresponde à realidade prisional feminina brasileira. Entendo, em uma análise ancorada na perspectiva de gênero, existir mais do que “amor” ou a “incapacidade” quase irracional de autodeterminar-se nas situações que envolvem as mulheres e o crime. A realidade imposta às mulheres é muito mais complexa, sendo impossível desconsiderar fatores como o papel que o sistema de domínio patriarcal lhe impõe e o histórico de violência, física e/ou psicológica a que são submetidas. (4)Instituições totais, assim definidas por Goffman (1999, p. 11) como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. Um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal, como que a “estufa para mudar as pessoas” (GOFFMAN, 1999, p. 22). Como nos ensina Goffman (1999), as instituições totais podem ser enumeradas em cinco agrupamentos, quais sejam: um primeiro no qual estão as instituições criadas para cuidar de pessoas consideradas incapazes e inofensivas (casas para idosos, órfãos ou indigentes); o segundo grupo no qual estão os locais destinados para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional (sanatórios, manicômios, hospitais); o terceiro segmento é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais (cadeias, penitenciárias, campos de concentração); o quarto é composto por instituições destinadas a realizar tarefas de trabalho (quartéis, escolas internas, campos de trabalho); e o quinto, no qual estão os estabelecimentos destinados ao refúgio do mundo (mosteiros, conventos). Goffman (1999) deixa claro que esta classificação não é exaustiva, e que não tem uso analítico imediato. Ela tão somente fornece uma definição a ser tomada como ponto de partida, de maneira que definir uma instituição total depende de seu enquadramento em diferentes características gerais. Neste sentido, de tudo o que se pode recolher na literatura nacional e estrangeira, os conventos femininos, pós-século XIII, se enquadram muito mais no terceiro tipo do que no quinto onde estão hoje classificados (MENDES, 2014, p. 142). Na historiografia são muitas as menções aos conventos como locais de encarceramento. Não eram somente como locais de expiação de culpas, mas de cumprimento de penas de caráter perpétuo, sustentadas em uma compreensão de crime e do agente criminoso e da periculosidade (MENDES, 2014, p. 143). (5)Segundo Harding (2002, p. 19-20), a lógica do descobrimento implica fazer somente aquelas perguntas acerca da natureza e da vida social que os homens (brancos, ocidentais, burgueses) desejam que se respondam. Desta perspectiva, são válidas perguntas como as seguintes: como podemos “nós, os humanos”, conseguir maior autonomia? Que política legal se deve seguir em relação aos estupradores e às mulheres vítimas de estupro, deixando ao mesmo tempo intactas as normas estabelecidas de comportamento sexual masculino?
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labrys,
études féministes/ estudos feministas
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