labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2017- junho 2018 /juillet 2017-juin 2018

Transativismo e tutti quanti

tania navarro swain *

  É desanimador ouvir sem cessar a palavra “gênero”, [1] cuja significação e emprego tornaram-se fluidos e sinônimos de “mulher”, de “sexo”, de “sexualidade”.

Não é mais uma categoria de análise crítica da realidade binária, mas um utensílio domesticado e sem força. O patriarcado, em um movimento que não é novo nem original, toma as categorias que o ameaçam e as transforma em seu favor.

É o caso da expressão “ideologia de gênero”, que passou a designar a homossexualidade. A análise da heterossexualidade como meio de coerção e estrutura social de criação do feminino – o diferente – desaparece para dar lugar a um ataque feroz contra a homossexualidade, reforçando desta maneira o “natural” biológico, ligado à procriação.

A divisão binária do social fica assim preservada e a palavra “gênero” gera uma áspera disputa para sua exclusão das escolas. No Brasil [2]  o debate sobre a inclusão ou não da categoria “gênero” no currículo mínimo das escolas de primeiro e segundo graus, tem sido  intenso, orientado principalmente pelas pressões religiosas, cujo argumento reside no perigo de naturalizar a homossexualidade entre crianças e adolescentes.

A “ideologia de gênero” reduz assim a discussão à polaridade heterossexualidade / homossexualidade. Deste modo, as práticas societais que constroem os gêneros são substituídas pelas práticas sexuais no discurso social.

Nesta ótica, as questões relativas à divisão binária do social, da inferiorização e dominação do feminino, baseadas no biológico, são desviadas. Esta manobra patriarcal é ainda mais significativa, pois a educação é o ponto crucial para erradicar as representações sociais binárias e a hierarquia sexuada.

Esta passagem da análise da construção dos corpos sexuados à “ideologia do gênero” marca o desaparecimento do feminismo do debate social, para concentrar-se na diversidade das práticas sexuais. O perigo de se questionar o sistema binário heterossexual, que cria, explora e domina as mulheres, é assim afastado.

É evidente hoje que a categoria “gênero” perdeu sua função de designar a construção social dos sexos, presa de todas as reivindicações identitárias.  Se, por um lado, as feministas utilizam esta palavra para indicar o sexo social, por outro seu uso de maneira acrítica e universal não serve senão a afirmar o sistema binário baseado no sexo.

O gênero, enquanto categoria de análise viu reduzido seu alcance heurístico, pois ignora  a diversidade das relações humanas no curso da história, já que nada pode provar que o sistema sexo/ gênero tenha sido dominante de maneira a-temporal e universal nas formações sociais ao longo dos milênios.

Os estudos de gênero não contemplam outras realidades, pois se curvam ao sistema sexo/ gênero, constituído na heterossexualidade e desta forma, suas pesquisas não encontram nada a dizer, senão repetir o Mesmo.

Não me refiro aqui às relações sexuais, mas às relações humanas que não seriam organizadas necessariamente pelos genitais. É esta diversidade que os discursos sociais/ acadêmicos tentam esconder para melhor salvaguardar o binário hierárquico, “natural”, fundado nos órgãos genitais.

Assim sendo, o “gênero” cessa de denunciar a naturalização dos corpos, pois se apresenta sempre acoplado ao sexo. Este último funda os valores que outorgam importância desmesurada ao masculino; entretanto, como sublinha Butler, (1990:29) não existe gênero fora de práticas de gênero e finalmente é este que cria o sexo em sua importância e fixidez binária.

 A análise do sistema sexo/gênero, tal como é feita atualmente, desvia o objetivo último dos feminismos, isto é, a mudança das relações sociais com a desconstrução do binário heterossexual, instrumento de poder, criador dos corpos e identidades sexuadas.

A difusão  da categoria “gênero” dobrou-a à demanda identitária sempre baseada nos genitais e suas representações sociais. Dá-se assim o ressurgir do destino feminino, definido pela procriação e pela sedução, para glória maior do pênis.

 É desta forma que, sob o beneplácito patriarcal, os “estudos de gênero” foram aceitos na academia e substituíram os estudos feministas,  já que seu uso não perturba a ordem patriarcal nem as hierarquias que o apoiam. Descritivos, os estudos de gênero não conseguem descolar da ordem do pai, das narrativas soberanas que, ao cria-la, instituem um patriarcado universal e “incontornável” em todas as esferas, indo da ciência à religião.

As análises baseadas no “gênero” insistem sobre o lado relacional das práticas generizadas, o que abre o caminho, nos colóquios e conferencias feministas aos “masculinismos” queixosos (nós também fomos construídos) e também aos “trans” que pretendem ir além dos limites dos gêneros.

Todavia, os masculinismos se esquecem de mencionar a instituição do masculino como modelo e referente da estrutura patriarcal; os transgênero/sexo tentam marcar seu lugar “fora” do sistema, porém apelam ao binário sexual para poder se definir. Mudar de sexo é sempre se dobrar ao sexo e se inserir em um mundo binário É um recuo desconstrutor das teorias feministas que preconizam a extinção dos gêneros enquanto demarcador societal. E não a transposição de um para outro, como se isto fosse elemento transformador das estruturas binárias sociais.

Transgêneros e masculinistas

Assim, se as feministas buscaram mostrar a arquitetura do “natural”, hoje os masculinismos, os trans (gênero ou sexo) se dedicam a reafirmar a ordem do sexo enquanto chave identitária. É ainda o biológico que toma posse dos corpos construídos, pois não se desfazem dos liames em relação ao sexo e à sexualidade. Ou seja, trocar para se espojar no Mesmo. Nada a ver com os objetivos do feminismo que almeja decompor as relações humanas fundadas no sexo e na sexualidade.

Em uma perspectiva de resistência, sob o pretexto de “desconstruir” o gênero, o que se tem visto nos colóquios, na academia, na web, nos discursos múltiplos do social, é uma nova manifestação de identidades, permeáveis entre sexo e gênero, ao mesmo tempo em que reivindicam sua dispersão.

Se a denominação ou o ativismo transgênero, transexual e/ou travesti são performances de um não-conformismo com a imposição social e normativa do sexo, o eixo da questão é, entretanto, o mesmo: é em torno do sexo biológico, da sexualidade, da dicotomia heterossexualidade / homossexualidade  que se desenvolvem as problemáticas da diversidade.

Os transativistas tem tido uma atuação lamentável em relação às feministas e ao feminismo. Querem, pela agressão e pela violência ser considerados “mulheres”, ignorando que as teorias feministas contemporânea tem lutado para extinguir as categorias “mulher” / “homem”.

Brandindo uma identidade “mulher” não desconstroem o binário, não expõem a performatividade da construção do sexo social, não apresentam propostas de transformação social, não percebem a profundidade da desconstrução identitária. Não se interessam pela argumentação e sim pela imposição de uma presença, com atitudes tipicamente masculinas, de ódio, de ameaças, de tentativas de dominação.

Os transativistas necessitam abrir um espaço próprio, criar suas próprias análises das relações sociais, expor sua argumentação em termos de transformação de uma realidade onde sua inserção é problemática. De toda forma, não é se imiscuindo nos encontros feministas sem nada aportar, a não ser um translado de um sexo para outro, em torno da sexualidade, a mesma utilizada para dominação das mulheres.

Os transativistas querem manter o mundo tal como é, dividido em homens e mulheres, apenas reivindicando um lugar para melhor serem aceitos pelos homens. Porque não fazem seus próprios colóquios, suas próprias publicações, já que necessitam uma fixação identitária? Não são capazes?

Ameaças de bomba em colóquios feministas, agressões físicas, violência generalizada para impedir sua realização, os transativistas mostram bem sua face masculina.[3] 

Nesta ótica, Janice Raymond comenta:

“Homens que sustentam ser mulheres e seus defensores consagraram uma enorme energia para assegurar que um homem  quer tenha ele feito uma cirurgia transexual ou simplesmente se identifica como mulher, é aceitável como corpo de mulher, em seus eventos, encontros, festivais de música , etc. Inclusive a cama das lésbicas passou a ser um tópico atual da imprensa transgênero e blogosfera. Alguns fóruns  de  transgeneros foram organizado especificamente para discutir e criar estratégias para pressionar encontros sexuais com aquelas identificadas como translésbicas. Como sugere um transativista ‘ Os corpos de mulheres-trans são corpos de fêmeas, tenham ou não um pênis.’ Talvez a essência desta incongruência seja que os homens que se declaram lésbicos passem a declarar que tem um pênis lésbico, como disse um transativista, um ‘pau feminino’. Deste modo, lésbicas que os rejeitam como tal, são agredidas como transfóbicas.”[4]

Enquanto feministas não podemos admitir mais estes abusos, vindos de homens que se autodenominam “mulheres”  porque “ se sentem mulheres”. Ou seja, nada aprenderam ou absorveram das teorias e práticas feministas, pois ser mulher na realidade do sexo social é uma construção representacional e imagética e não um “sentimento”.

Vejo esta intrusão e estes atos de violência como a reprodução da dominação masculina, que ao se travestir, invade espaços do feminino para melhor exercer seus impulsos de dominação.

De fato, se a vida quotidiana exige uma identidade, mudar de gênero não significa nada, pois ainda uma vez, há a submissão ao binário e à preeminência desmesurada dada ao sexo. E este só deve seu status à importância que se lhe dá.

Estruturas de poder

Desta forma, as questões quanto à diversidade sustentam o debate ainda no modelo binário, tais como definição de família, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Entretanto, a reivindicação do casamento gay não faz senão reforçar esta instituição fundadora da heterossexualidade; seria necessário dissolvê-la, em vez de nela acomodar outras categorias. Porque teríamos necessidade dos ritos da heterossexualidade para encontrar um lugar no social? A tarefa é transformar o social em suas estruturas e não a elas se integrar.

A desconstrução das estruturas de poder baseadas sobre os corpos sexuados é assim esquecida sob as reivindicações identitária ainda baseadas sobre o sexo. Por outro lado, a força das hierarquias de poder instaladas na anatomo-política que divide o humano em duas categorias é voltada a uma ortopedia do sexo, reinstalando-o no binário e na heterossexualidade reprodutiva. O sexo continua a ser central no embate entre o “natural”, a heterossexualidade e a “ideologia de gênero”, ou seja, pretenso arauto da homossexualidade.

Ora, o feminismo, a partir de uma afirmação do lugar “mulher” enquanto sujeito, tomou consciência dos limites desta posição identitária, pois a afirmação de um feminino político continua em um quadro de iteração do binário.

A luta pela igualdade, sem dúvida necessária em um primeiro momento, torna-se obsoleta para os objetivos transformadores do feminismo: a igualdade que supõe uma “diferença” construída, não é mais aceitável, já que depende do referente masculino.

Não se é “diferente” senão em relação a alguma coisa ou alguém. E a igualdade nominal não transforma as imagens e representações de um feminino assujeitado. De toda maneira, quem quer ser igual a um homem, referente negativo do humano, cadinho onde fermenta a violência, a crueldade, a ânsia de poder?

Portanto, o pertencimento identitário “mulher”, mesmo tomado como lugar de fala para afirmar a ação no político, não modifica  em profundidade as relações sociais. Para o feminismo, assim, é preciso sacudir os cânones identitários a fim de escapar aos limites impostos ao “ser mulher”.

Identidades fluidas, então? Não, pois a transferência de uma posição identitária a outra não muda nada à perspectiva binária. O movimento não transforma os esquemas de poder, de hierarquia, de organização do mundo tal como se apresenta.

A hipersexualização não é senão uma resposta patriarcal aos apelos feministas pela liberdade dos corpos.  A reivindicação de corpos livres no feminismo resultou, na dinâmica do patriarcado, em um assujeitamento ainda maior aos desejos dos homens, pois a atividade sexual precoce e constante tornou-se sinônimo de liberação. O aborto, por sua vez, continua criminalizado na maioria dos países, pois não interessa ao sistema patriarcal liberar o controle da procriação às mulheres.

Assim, em lugar de voltar-se para a construção de si enquanto sujeito político e de ação no social, as jovens se veem ainda hoje em projetos de sedução, de maneirismos, de provocação sempre com cunho sexual o que é reforçado pela mídia. A “liberação” dos costumes tornou-se um novo assujeitamento aos desejos dos machos.

Sheila Jeffreys explicita:

“Considero a sexualização como um termo infeliz pois sugere que ‘sexo’ pode ser algo ruim em si. O problema é a pornificação da cultura e da sexualidade e dos corpos das mulheres ou a criação de culturas de prostituição. A indústria do sexo constrói a sexualidade na qual as mulheres são buracos ou telas para a ejaculação masculina. São consideradas como subordinadas sexualmente por natureza  and abusadas em nome do amor. Os códigos desta indústria – mulheres apresentadas parcial ou completamente nuas,  calçadas  com platafromas de putas ( saltos altos são instrumentos de tortura e excitam o sadismo dos homens) vestindo também couro negro, brincos, piercings, são extensivos agora para a música, o entretenimento e a indústria da moda, fazendo do porn um imenso sucesso industrial”[5]

Toda uma nova geração busca sua liberdade nos jogos sexuais, nova forma de coerção “livre”. Neste oximoro, nada muda em relação à dominação patriarcal. Enquanto o sexo e a sexualidade estiverem no centro das relações humanas, o patriarcado encontrará a maneira de impor – pelo convencimento ou pela violência - seus grilhões ao feminino, pois disto depende sua própria força.

Desconstruir o gênero não significa instaurar outras normas de sexualidade ou de práticas sexuais, mas reduzir a importância dada ao sexo para transformar as relações sociais. Descontruir o gênero não é apenas a grande  orgia de todas as práticas sexuais, a grande festa de acolhida a todas  as trocas e mudanças corporais. Desconstruir o gênero não é também inserir o “diferente”, o “desviante”  nos cânones da normalidade.

   Desconstruir o gênero é, ao contrário, desmontar a partir do interior o sistema criado pela biopolítica que faz da “diferença” dos sexos o motor do sistema binário sexo/ gênero. Desconstruir o gênero  é usar a in-diferença em relação às categorias “normais”, tais como a família, o casamento, a procriação. Onde o sexo e a sexualidade permanecem como centrais à vida, identidade, inserção no social, vetores por excelência das relações sociais, a heterossexualidade não deixará de reivindicar seus direitos “naturais”.

É nesta perspectiva que se afirma a “ideologia de gênero”: as críticas e análises feministas do social desaparecem sob esta denominação, para dar lugar apenas à dicotomia heterossexual / homossexual, como já assinalei.

A subordinação das mulheres retoma sua invisibilidade no quadro onde o “natural” se impõe, pois, de fato, a heterossexualidade é um sistema de dominação e de criação não somente dos gêneros, mas igualmente do sexo.

Ou seja, as categorias mulher/homem fundadas sobre os genitais, tornam-se incontornáveis no social e o discurso da diferença não é senão o carimbo que sela o assujeitamento das mulheres. E falo aqui da metade da humanidade, não apenas de grupos minoritários que reivindicam sua inclusão.

Já foi sobejamente descrito e analisado o papel da heterossexualidade [6]  na divisão hierárquica das tarefas sociais e do político. Urge, portanto, ultrapassar o estado do genital para se repensar as relações sociais.

Transformar não é retomar os mesmos e mudar os lugares ou inserir novos elementos. Transformar é esquecer os caminhos cimentados das normas e seus desvios para criar e percorrer novas trilhas.

Para além das metáforas e das ficções políticas, fixar uma identidade em um leque mais amplo da sexualidade não muda estritamente nada à importância dada ao sexo, à genitália como marco de valor e poder dado ao masculino. Quer seja o “desviante” que aspira à normalidade ou que reivindica seu desvio em novas “figurações”, ou ainda o “normal” que enraíza seus direitos no “natural”, não vejo hoje grandes mutações nas relações humanas.

É ainda o aprisionamento ao sexo, à recusa ou à afirmação do binário e do biológico que desfilam nas relações sociais. Mudar os papéis individuais “mulher/ homem” ao sabor da inspiração do momento não modifica nada. Ao contrário. Reinstala o binário. Negar seu pertencimento a um ou outro sexo é algo puramente retórico, já que o sexo se mantém como o eixo da contestação.

Grupos que não tem nenhum objetivo comum se formam sempre em relação às sexualidades e identidades: LGBTT [7], por exemplo, é uma sigla que representa simplesmente a formação de um bloco de resistência ao “normal”, mas a definição de suas partes é a reatualização do sexo e da sexualidade no centro do palco.

Em uma perspectiva heurística, somente o desejo de se integrar à sociedade, de uma aceitação enquanto “diverso” poderia reagrupar pessoas que não tem nada em comum. Sobretudo nada a ver com as feministas, com exceção das lesbianas que sempre estiveram presentes nas práticas e teorias feministas, apesar das reticencias heterofeministas.

Se o gênero é cultural nada pode assegurar sua correspondência exata ao sexo biológico, explicita Butler, desarticulando o binômio inseparável sexo/gênero. Explicita que, neste caso, o gênero passa a ser um significante flutuante, (Butler, 1990:6) capaz de conter diferentes biologias. Neste caso, filosófica e historicamente, a construção dos gêneros deve ser vista em suas condições de produção, de inteligibilidade e de imaginação;

Ou seja, o sexo biológico, considerado inquestionável, pré-existente, superfície prédiscursiva, aparece enfim como um sentido imposto ao social pelo próprio regime de verdade no qual se apoia e institui, pelas constelações de sentido que criam uma evidência social. E decidem da importância vital relativa ao sexo e à sexualidade.

Nesta leitura, fica claro que se os gêneros são múltiplos historicamente, mas ao insistir em se classificar enquanto “mulher” os transativistas estão fazendo recuar as propostas de transformação do social, em lugar de criar novos lugares de atuação, pois fazem apenas reafirmar a ordem estereotipada do binário.

Nesta perspectiva, inventam-se na atualidade relações sexuadas e sexuais que invertem e subvertem duplamente os papéis de gênero: primeiramente escolhendo a homossexualidade e a partir desta experiência, remanejando seu universo de práticas heterossexuais, como a figura do “trans-homem lésbico”, que insiste em fazer parte de grupos de lesbianas. O que faz, de fato, é impor uma heterossexualidade travestida: mais uma intrusão, mais uma tentativa de imposição de uma sexualidade abusiva.

Não é a declaração “mudei de gênero” que faz de um homem construído socialmente no masculino, uma mulher. Gênero assim tem sido utilizado para desmontar a agenda feminista de transformação das relações sociais.

A construção social do masculino, mesmo sob sedas e saltos altos retém seu contorno de arrogância, de intrusão, de violência simbólica ou material em relação às mulheres e às feministas. Qualquer reação hoje às violências transativistas leva o epíteto de “transfobia”. Sinto dizer, transgeneros masculinos são homens e como tal os vejo, e como tal tem se mostrado.[8] Como de habito, quando mulheres dizem “não” os homens fazem questão de força-las a dizer sim. Isto fazem os transativistas que se impõem às feministas. Afinal, a prática da violência é constitutiva do sexo social “homem”.

As combinações que surgem não estão modificando radicalmente as representações sociais ou embaralhando seus termos, invertendo ordens e valores. Pois mudar de gênero à vontade não cria matrizes desestabilizadoras de uma ordem que não cessa de se rearticular já que a base, o fundamento continua a ser o sexo, a sexualidade, o corpo que se insere em novos esquemas binários, com a carga de poder e violência que os sustentam.

Ou seja, estas novas articulações de identidades em movimento não deixam de ser identidades e não se desfazem do binarismo. Aliás, restritas a um número reduzido de ativistas, não trazem nenhuma modificação ao esquema patriarcal de hierarquia e dominação.

As performances masculinas em encontros feministas não indicam a performatividade dos papéis, ao contrário, tornam-se caricaturais. O que se percebe hoje é um retorno agressivo às figurações identitária.

Caroline Norma observa que:

“O transgenderismo desvirtua o núcleo do insight feminista que [ser] ‘mulher’ é politicamente definida como categoria social gerada pela violência masculina e a exclusão, expropriação e colonização de seres humanos femininos. Tomado como uma agenda de esquerda, este insight é distorcido com a proposição que ‘mulher’ é uma ‘identidade’ flexível do humano com a qual qualquer indivíduo pode se associar [...] Em lugar de designar um ser de uma classe social subordinada, ‘mulher’ passa a ser um sentimento que cada homem pode abrigar em seu peito. Agindo segundo este emoção, podem adotar um modo de ser e de vestir estereotipados e muitos passam a considerar estas caricaturas com agrado. Pronomes femininos devem ser usados, política e leis devem mudar para reconhecer mulheres não como um grupo social e historicamente vulnerável, mas como o produto de pensamentos e sentimentos internos de um homem.” [9]

Quanto à transformação de mulheres em homens, pode ser considerada como uma negação do papel subalterno das mulheres ou apenas uma ascensão ao lócus de pode social, o masculino.

Desta forma, os que reivindicam a liderança no que diz respeito à diversidade, não tem um projeto de desconstrução de gêneros capaz de abalar as estruturas baseadas no sexo. De fato, a sexualidade persiste no centro da questão e suas teorias não estilhaçam o biopoder do patriarcado. A heterossexualidade permanece ainda o referente ao qual se conecta a “norma” e contra a qual se manifesta o desejo de diversidade.

Para onde foi a desconstrução? As práticas sociais concretas das subjetivações permanecem em um projeto distante de um quotidiano modelado em poder.

Originado pelas teorias feministas, o “queer” que pregava o desaparecimento das formas binárias biológicas tornou-se apanágio de grupos de ensaio sexual e / ou de performance identitária sobre o eixo da instabilidade. A performance tomou o lugar da desconstrução da performatividade, aquela  estrutural, que constrói os corpos, pois estes transitam em torno do sexo biológico para negá-lo ou afirma-lo.

Em que desvão foram abandonados os profundos desejos de dissolver a ordem patriarcal?

A categoria “gênero” que fora um instrumento  importante para os feminismos, com sua difusão acrítica tornou-se um bazar de banalidades e ponto de resistência do patriarcado. Com efeito, a “ideologia do gênero” transmutou-se em uma arma patriarcal para conter toda transformação radical das relações sociais. Se o alvo do binário fundador do “natural” eram anteriormente os feminismos, hoje é a “ideologia do gênero” que se espalha, apoiada sobre a profunda ignorância do conteúdo heurístico da categoria, mas também sobre a percepção da força que poderia ter para solapar as bases do patriarcado “natural”, energia que se perdeu na medida de sua domesticação acadêmica, em uma utilização  descritiva, no melhor dos casos.

Assim, o feminismo se estilhaça sob os golpes do “gênero” acrítico, sob as estocadas dos “masculinismos”, sob a intrusão vindicativa dos transativistas que não tem compromisso com a transformação das relações humanas e exacerbam os estereótipos.

Os “transativistas” que não encontram seu próprio lugar de expressão  se imiscuem aos encontros feministas, às vezes de forma misógina, agressiva e violenta[10]  e não se acanham ao atacar o feminismo radical, sob pretextos indigentes. [11] Talvez por falta de uma teorização e argumentação próprias.

O feminismo que adoto e que vivo não almeja a integração das “acomodações possíveis” com religiões, masculinismos, transativismos, que transitam em torno do “natural” e do sexo/ sexualidade, que não permitem uma mudança radical da sociedade, e sim a permeabilização às investidas do patriarcado. Ao contrário, desintegrar os papéis e quebrar a importância identitária dada ao sexo e à sexualidade é função do feminismo para eliminar a ordem patriarcal.

 Se o binário “mulher” / “homem” foi instituído pela noção de “diferença”, a diversidade pregada pelo feminismo foi, aos poucos, restringindo-se às práticas sexuais, abandonando o impulso para a transformação radical das estruturas regidas pelo patriarcado, uma vez que o sujeito social é ainda afirmado enquanto sexual pelas práticas de gênero.

E o sexual é político. Sua importância desmesurada para categorizar o humano faz parte integrante do poder  biopolítico, alicerce maior do patriarcado.

O “gênero” domesticado, desvinculado do feminismo tornou-se, por conseguinte, sinônimo de homossexualidade e de incitação à desordem,  dando origem a polêmicas acerbas. O patriarcado pede sua exclusão das escolas, por dois motivos: por um lado porque a educação é o motor de toda mudança  societal, logo é necessário investi-la para reiterar a norma e reinstalar em altos brados a “diferença” dos sexos. As portas da diversidade se fecham assim, mais uma vez, o que incita o ódio e a eliminação dos “desviantes”.

Por outro lado, “ideologia do gênero” marca a eliminação do feminismo dos bancos da escola e dos discursos sociais. De fato, é o feminismo o verdadeiro perigo para o patriarcado, não os grupos homossexuais ou as análises descritivas e acríticas sobre a construção dos gêneros.

A diversidade nas relações sociais torna-se novamente a “diferença”, que faz apelo a outro referente – a heterossexualidade- instalado na exclusão e no repúdio aos “diferentes”. É o caminho aberto a todas as infâmias engendradas pelos religiosos, os machistas, os fanáticos, as mulheres assujeitadas, os adeptos da força e da coerção para assegurar seu poder sobre outrem. 

A “Ideologia do gênero” ignora todas as análises feministas sobre a instituição do binário com a dominação do masculino que cria e alimenta o ódio do outro, neste caso, o feminino. Pois “gênero” tornou-se  o “outro” da heterossexualidade.

O feminismo e a crítica da hierarquia homem/mulher em seu papel “natural” desaparece da cena do político para dar lugar à luta contra os “desviantes” aqueles que vão contaminar as crianças e adolescentes com suas mudanças de gênero ou sua homossexualidade.

Assim, o feminismo foi infectado por uma nova onda de relegação, não somente pela sociedade “normal”, mas também pela entrada intrusiva dos “transativistas” que se consideram a ponta de lança do fim da hegemonia da heterossexualidade. Desta forma  perdem-se os objetivos comuns aos feminismos: a transformação de um social unicamente estruturado sobre a sexualidade como divisão do humano.

Considero que o feminismo nada tem a ver com as reivindicações identitárias que, por definição fixam os contornos dos sexos e da sexualidade, mesmo se há uma perspectiva de transumância de um a outro. Desfazer os gêneros não é refazê-los. Ao contrário, é esquece o biológico enquanto linha de partilha e inventar novas maneiras de expressão. É aí que se intensifica o perigo para a ordem patriarcal.

Foucault indicava o “sexo rei”[12] como o novo eixo da servidão do humano. A sexualidade, portanto,  sendo esta uma das manifestações do humano, não tem razão de ser o centro e o objeto central das relações sociais. A menos que se decida tomar como verdade absoluta os discursos religiosos ou aqueles dos “mestres”, como Freud ou Lacan, que constroem a sexualidade como essência do humano, tal como a criam e representam.

O feminismo nos fala de liberdade. Liberdade de costumes, das normas, das ideias preconcebida, das referencias universalizaras, dos discursos que criam o feminino submisso e assujeitado.

 O feminismo nos aponta também a liberdade de dizer “não”: não à força, à intrusão, às exigências de mixagem sob pretexto de inclusão.

Basta de aceitar os discursos de “discriminação” quando as feministas desejam colóquios e reuniões não mistas. No mundo tal como é, os homens nos eventos feministas não se acanham em tomar a palavra e nos ensinar o que é e como deve ser o feminismo.

Segundo Janice Raymond,

“O debate sobre transgênero conseguiu dividir muitas feministas. Mas se não conseguimos sequer um acordo com a definição de ‘mulher’ como podemos incorporar esta questão? Como podemos defender os direitos das mulheres se cedemos o feminino para os homens? Hormônios, cirurgia e auto identificação fazem uma mulher? A tragédia é que muitas mulheres não tem noção que ter nascido fêmea carreia uma história comum e uma vida de significação biológica, social e política. Quando organizações de defesa de direitos ao aborto são pressionadas a não mais utilizar a palavra mulher sobre aquelas que querem abortar e incluir em sua literatura que os homens também podem estar grávidos (pessoas que são trans-homem) o que houve com as feministas? [13]

O feminismo, em meu ponto de vista, não representa o lugar de fala de todo mundo, as portas abertas, o coração na mão para todas as manifestações. Esta atitude faz, sem nenhuma dúvida, parte de um feminino submisso, doce e acolhedor. Um feminismo totalmente “mulher”, assujeitado.

Enquanto isso, a metade da humanidade continua a sofrer as violências e sevícias de sua definição biológica e é de sua liberação que se ocupa o feminismo. Vendidas, trocadas, usadas, traficadas, mercantilizadas, presas a todas as violências, das quais a morte não é a pior, as mulheres não descobriram ainda a liberdade num mundo dominado pelas religiões, fanatismos e por seus próprios discursos submissos à ordem do falo.

 O feminismo se curva ao “politicamente correto” quando sua função seria de estilhaça-lo em mil pedaços.

As mulheres representam ainda corpos à venda, sexos disponíveis para qualquer um: a prostituição, este estupro repetido se tornou trabalho, o tráfico de mulheres se transforma em tráfico de “pessoas”, retirando de sua significação que a esmagadora maioria é composta de meninas e mulheres.

 O casamento forçado de meninas, sua prostituição na beira das estradas, tudo é banalizado, justificado para assegurar a manutenção do patriarcado, baseado na dominação, no desejo, nas necessidades masculinas  que exigem o assujeitamento das mulheres, transformadas em sexo, cascas vazias preenchidas pela soberania do falo. Pois não há liberdade de escolha na prostituição, há uma submissão profunda à ordem do pai e do pênis, à condescendência social em relação à violência que as levou até lá.

É, sem dúvida, a importância dada ao sexo masculino, à representação reinante do falo que ordena o discurso social sobre a banalização e naturalização da prostituição.

As violências contra as mulheres são um fato quotidiano; o assujeitamento continua a exercer seu poder de persuasão sobre um feminino reduzido à sedução ou ao dispositivo amoroso.[14] Isto já foi estabelecido.

Meu feminismo é um feminismo radical, que vai às raízes da dominação, que não tem nada de doce e amável e responde sem hesitação à agressividade misógina. Pois não se elimina a violência material e simbólica contra as mulheres com sorrisos.

Ainda não houve até agora um tsunami para destruir os papéis hierárquicos sociais, que os erradique da cena do político, que quebre o tabuleiro, em lugar de mudar os peões de lugar. A categoria “gênero”, domada, não significa mais um suporte ao feminismo. O domínio patriarcal, cujo novo alvo é a “ideologia de gênero” torna invisíveis as lutas feministas e o sexo – masculino – retorna como signo por excelência  da ordem “natural” e da normalidade.

Do ponto de vista político strictu sensu o sujeito “mulher” está ainda muito longe da igualdade com os homens no Ocidente, em termos de renda, de participação nas decisões, sem falar da absurda desigualdade existente no resto do mundo, principalmente lá onde o islamismo se alia à pobreza extrema.

O feminismo parece haver perdido sua bússola, seu rumo, seus objetivos principais e urgentes submersos nas águas turvas das e do “politicamente correto”.

Para onde se escoaram as forças feministas?  O biopoder impera em todos os setores sociais e o patriarcado se regozija.

Basta de transigência, basta de  “acomodações possíveis”.  Estudos feministas e  práticas radicais são prioritárias.[15]


 

[1] Categoria discutida igualmente mais adiante

[4] Raymond, Janice G. 2015.Radical feminist activism in the 21ST century https://www.labrys.net.br/labrys27/radical/janice.htm  Tradução livre.

[5] Jeffreys, Sheila. 2018. Interview with SHEILA JEFFREYS by tania navarro swain .https://www.labrys.net.br/labrys%2018/entrevistas/sheila.htm

[6] Ver por exemplo ,Monique Wittig .La Pensée straight, u Balland, coll. Modernes, 2001  et Adrienne Rich .(Summer 1980). “Compulsory heterosexuality and lesbian existence”. Signs: Journal of Women in Culture and Society (University of Chicago Press via JSTOR) 5 (4): 631–66

[7] Lésbicas, Gay, Bissexuais, transgênero, transexuais, travestis. Aliás, Gay foi encampado pelos homens, acredito que para se desfazer da pecha de “pederasta”, já que os significados tem um peso incontornável. Lésbica, entretanto, apesar do mesmo conteúdo pejorativo é terminologia mantida.

[8] Muito Interessante e esclarecedora esta página bem pessoal sobre a questão: https://lilaseluta.wordpress.com/category/transativismo/

[12] Foucault, Michel,1988,  Microfísica do poder, RJ:Graal

[13] . Raymond, Janice G. 2015.Radical feminist activism in the 21ST century

https://www.labrys.net.br/labrys27/radical/janice.htm  Tradução livre.

[15] Ver, por exemplo, Radical Feminism https://spinningspinsters.wordpress.com/5/  ,  betty mcllan  http://www.radfemcollective.org/news/2015/8/15/an-interview-with-betty-mclellan  , Labrys, estudos feminisas/ etudes feminists http://www.labrys.net.br/labrys27/sumarios/radical.htm

* capítulo do livro "Feminismo radical: muito além de identidades e gênero", tania navarro swain. Amazon.com.br

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2017- junho 2018 /juillet 2017-juin 2018