labrys, études féministes/ estudos feministas
juin/ décembre 2006/ junho/ dezembro 2006

Feminilidades na pós-modernidade1

            Guacira Lopes Louro

 

Resumo

Este texto tenta construir uma espécie de “mosaico” de feminilidades na pós-modernidade. O quadro, assumidamente incompleto, sugere a multiplicidade de formas de viver o feminino na contemporaneidade e foi montado a partir de teses e estudos desenvolvidos em universidades brasileiras, recentemente. O eixo comum desses estudos é, precisamente, sua referência a práticas pedagógicas difusas que se exercitam na mídia, na televisão, no cinema, livros, bares, ruas para a produção de gênero e sexualidade.

Palavras-chave: feminilidades, pós-modernidade, pedagogias, mídia

 

Plural, pluralidade, diferenças. Parece ingênuo falar, hoje, da feminilidade, do feminino ou da mulher como se houvesse alguma essência ou uma forma singular de viver essa condição. Há muito o movimento de mulheres e as teorizações que a ele se articulam tornaram evidentes as distinções e as fraturas no interior do movimento e do pensamento feministas. Somos mulheres de muitas formas e jeitos, somos mulheres de diferentes raças, idades, classes, orientações sexuais; de diferentes culturas, religiões; talvez até seja possível dizer que somos mulheres de diferentes tempos, ainda que estejamos todas vivendo numa mesma época. Essas distintas posições supõem e constroem uma diversidade de destinos ou expectativas, restrições e interditos, possibilidades e projetos. As formas de enfrentamento ou os modos de subordinação a essas circunstâncias certamente são múltiplos. Queria ser capaz de acenar para essa multiplicidade, mas é claro que, desde logo, estava consciente da impossibilidade de dar conta de um quadro completo.

         Decidi, então, ensaiar aqui uma espécie de mosaico, recorrendo a algumas referências “concretas” para pensar feminilidades na pós-modernidade. O máximo que posso tentar construir é (assim espero!) um recorte instigante e sugestivo de ser alargado. Mas, antes de buscar  peças esparsas para produzir este mosaico, vale a pena falar um pouco sobre essa tal de pós- modernidade.

Pós-modernidade e pós-modernismo (expressões aparentadas, ainda que carreguem algumas especificidades) vêm sendo usadas nos mais diferentes campos: na arte, na arquitetura, na mídia, na filosofia, na cultura, enfim… Em alguns casos, para se referir a uma época que viria após a modernidade; em outros casos, para denominar uma tendência estética ou artística que promove uma ruptura com os modelos clássicos e com as formas modernas; ou ainda, na voz de outros estudiosos, para sugerir um determinado modo de estar no mundo e de dar sentido ao mundo; nesse caso, as expressões caracterizariam um determinado ethos ou uma nova episteme. Em qualquer uma dessas acepções, parece ser possível perceber dois movimentos: de um lado, acentua-se a idéia de ruptura com o modernismo ou com a modernidade e, de outro, chama-se atenção para a continuidade. Não dá para esquecer que o prefixo pós supõe o que vem a seguir. Daí que, obviamente, não poderia existir pós-modernidade sem modernidade. A conexão e, portanto, a referência e também algum tipo de continuidade, provavelmente, devem existir entre ambas. Mas parece lógico supor que aquilo que se denomina pós-modernidade implica, ao mesmo tempo, um rompimento, uma transformação em relação à modernidade. Uma série de desafios marcam esse momento e essa situação.

Um dos principais desafios, segundo Linda Hutcheon, uma teórica canadense, foi o desafio à noção de centro, em todas as suas formas.  “Se o centro não vai continuar”, diz ela, “viva as margens!”

Ao falarmos em centro, teriamos de pensar, aqui, em todas aquelas formas de cultura e de sujeito que ocupam o lugar central, o lugar que serve de referência para os demais – e essa posição foi ocupada, historicamente, pelo homem branco ocidental, heterossexual e de classe média urbana. Em seguida, teríamos de pensar no conjunto de movimentos sociais e também teóricos que, na contemporaneidade, vêm desafiando essa posição, ou seja, os movimentos empreendidos por aqueles grupos que, tradicionalmente, foram colocados nas margens: as mulheres, os negros, as chamadas minorias sexuais e minorias etnicas, os jovens.  O que parece muito expressivo na pós-modernidade é justamente esse voltar-se na direção das margens e das fronteiras, um certo afastamento em relação à posição central e às ideias que lhe são associadas, tais como as idéias de origem, de universalidade ou de unidade.

Um outro modo de dizer tudo isso seria afirmar que na pós-modernidade quem ganha realce são os sujeitos excêntricos, aqueles que estão fora do centro. Até muito recentemente apenas a ciência, a arte, a estética, a política ou a justiça articuladas ao sujeito central eram reconhecidas como legítimas. Essas foram (e, em muitos casos, ainda são) as formas que detiveram (ou detêm) a autoridade para indicar o que é (ou não é) normal, sadio, legal, bom ou justo. Tudo que ocupa a posição central é considerado não-problemático, são os outros (os outros sujeitos e suas práticas), que são vistos como derivações ou desvios dessa posição e que são vistos, muitas vezes, como problemáticos.

Contudo, de uns tempos pra cá, as coisas vêm mudando: os movimentos promovidos pelos grupos que estão fora deste centro passaram a contestar a universalidade dessas afirmações. Talvez seja razoável pensar que eles são excêntricos não por que sejam, exatamente, esquisitos ou extravagantes, mas porque têm um outro centro.

Tudo isso que estou dizendo não significa afirmar que, nesses tempos pós-modernos, o centro tenha deixado de ser atraente ou tenha se tornado desimportante, de modo algum. Ele continua lá, reconhecido e sedutor, mas o que acontece agora é que se passa a acentuar o seu carater de ficção. Passa-se a reconhecer que a posição central é uma invenção, não  é uma posição “naturalmente” dada, é, sim, uma posição historicamente construida como tal. A noção de centro passa a ser desafiada e contestada, na contemporaneidade, por muitas frentes. Não se trata propriamente, ou não se trata somente, de pôr em questão o sujeito masculino, branco, heterossexual. É mais do que isso: o que se passa a questionar é toda uma noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação que, associada a esse sujeito, usufruiu, ao longo dos tempos, de um modo praticamente inabalável e abrangente, a posição privilegiada em torno da qual tudo mais gravita.

Este pode ser um modo de se dar sentido às profundas transformações que vivemos desde a segunda metade do século XX.  Linda Hutcheon diz que

…é para a década de 60 que nos devemos voltar se quisermos encontrar as raízes dessa mudança, pois foi nesses anos que ocorreu o registro, na história, de grupos anteriormente “silenciosos” definidos por diferenças de raça, sexo, preferências sexuais ... Na década de 60, muitas (...) questões foram bruscamente trazidas à tona, quando o político e o estético se fundiram na chamada contracultura.... Os negros e as feministas, os etnicistas e os gays, as culturas nativa e do “terceiro mundo” não formam movimentos monolíticos, mas constituem diversidade de reações a uma situação de marginalidade e ex-centricidade percebida por todos (Hutcheon, 1991, p.89-90).

A contestação da posição central se fez e se faz, portanto, a partir de várias “frentes”: de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, e o embate que é promovido por essas frentes algumas vezes se articula e se reforça, em outras não.  A palavra chave desses movimentos ou dessa época é diferença.

É nesse contexto que me disponho a olhar as feminilidades. E, como já disse antes, gostaria de me valer de algumas “peças” ou situações “concretas” para esboçar um mosaico. Inicialmente, trago aqui um programa de TV no qual jovens mulheres e homens se encontram e buscam parceiros amorosos. Refiro-me a um programa da MTV, chamado Fica Comigo. A emissora e também o programa se apresentam como veículos contemporâneos, “descolados” e por isso podem servir aos propósitos dessa fala. Mas, para além dessas características, devo dizer que escolhi este programa por ter acompanhado, como orientadora, a feitura da tese de doutorado de Rosângela Soares, recentemente defendida no Programa de Pós-graduação da UFRGS e que se intitulou Namoro MTV – juventude e pedagogias amorosas/sexuais no Fica Comigo (SOARES, 2005).

         Rosângela analisou um conjunto de edições deste programa para demonstrar como aí se exercita o que ela denomina de pedagogias amorosas/sexuais, como esse programa apresenta e institui práticas de aproximação e conquista, comportamentos e atitudes empreendidas por jovens que estão em busca de um par. A MTV é uma emissora que se espalha pelo mundo todo e que assume como público alvo a juventude (na verdade, dirige-se e atinge um certo tipo de juventude).  Ela tem algumas marcas globais bastante expressivas: muita ênfase na música, nos vídeo-clips e uma linguagem toda “sua”. Mas a emissora também carrega algumas marcas locais e o Fica comigo é representativo disso: o programa foi produzido no Brasil, construído por e para jovens brasileiros. O programa foi ao ar a partir do ano de 2000 e durou cerca de quatro anos, conduzido, quase sempre, por Fernanda Lima, com uma boa audiência para os padrões da emissora. Pode-se dizer que o Fica comigo se constituiu numa versão contemporânea, bem humorada e, sob certa ótica, quase paródica, dos antigos programas de namoro na TV e no rádio. 

Em cada edição, tinha-se um protagonista (homem ou mulher), denominado de querido ou querida que, através de uma série de jogos e situações, escolhia (sem ver) uma parceira ou um parceiro dentre quatro interessados. Esses interessados já haviam sido selecionados, pela produção do programa, entre um número imenso de jovens que se candidatara para o tal querido ou querida através do site da emissora, numa etapa que antecedia o programa de TV.

Não vou me estender expondo a dinâmica do programa, mas vou tomar emprestado da tese de Rosângela Soares alguns argumentos que me parecem interessantes para explorar aqui.

Logo que a MTV colocou o Fica Comigo no ar, alguns críticos comentaram que tudo se parecia com uma espécie super-mercado sexual; o programa seria um exemplo ou uma amostra expressiva do caráter consumista da sociedade contemporânea, uma vez que cada jovem era instado a fazer seu marketing pessoal para conquistar o coração do querido ou da querida do dia. Por outro lado, houve quem valorizasse o fato de que se colocava em evidência, ali, algumas das novas formas de aproximação e de relacionamento que vêm sendo praticadas pelos jovens e, principalmente, que se promovia a alternância de garotos e garotas nos diferentes papéis do relacionamento amoroso (ou seja, em um determinado dia as garotas eram as pretendentes e tomavam a iniciativa da cantada, em outros elas ocupavam o lugar de quem era paquerada ou cortejada e vice-versa). Enfim, para alguns comentaristas, isso sugeria que o programa evidenciava algumas transformações significativas que estariam acontecendo nas tradicionais hierarquias de gênero. 

Em sua tese, Rosângela percorre todos os blocos do programa e um dos pontos recorrentes de sua análise é a combinação ou a mistura de elementos do amor romântico tradicional com práticas contemporâneas do ficar. Ela observa que, ao mesmo tempo em que se evidencia a provisoriedade e um certo imediatismo nas relações ensaiadas ou sugeridas pelos/as participantes, também há um apelo constante às formulas mais tradicionais de conquista e, mais do que isso, expressa-se o anseio pelo amor duradouro, pelo encontro da outra “metade” que vai completar o individuo.

Acho que é possível dizer que uma determinada forma de feminilidade é colocada em tela neste programa: as jovens que ali se apresentam e que figuram como personagens desse romance televisivo são ou pretendem ser todas bonitas, malhadas, decididas, dispostas a expor, publicamente, seus desejos e suas preferências no terreno amoroso/sexual. Quer ocupem o lugar da “querida” do dia quer ocupem o lugar de pretendente, devem parecer “descoladas”, ágeis nas respostas, pouco ou nada tímidas. Parecem à vontade com seus corpos e, geralmente, sugerem ou anunciam erotismo e sensualidade. São capazes de apreciar o corpo masculino, elogiam e tocam os músculos dos braços ou do peito, apalpam a barriga “sarada”, dão mordidinhas especiais no pescoço dos rapazes. Disputam umas com as outras, sem disfarce, a atenção e a preferência do querido. Não têm ou não mostram pudor ou timidez para inventar fantasias ou para realizar os fetiches que, eventualmente, possam vir a agradá-lo... Cantam (literalmente), dançam, afirmam que são capazes de viajar ou partir para qualquer lugar inesperadamente, no meio da noite, sem planos. Enfim fazem de tudo para corresponder ao que parece ser um certo ideal de garota urbana pós-moderna.

Mas dizer isso não é dizer tudo o que acontece no programa. Essas mesmas garotas assumem-se como românticas, adoram bichinhos de pelúcia, esperam ser conquistadas com flores ou que seu pretendente seja capaz de “buscar flocos de nuvens no céu e compor as mais diversas canções de amor”, descrevem-se como carinhosas, colocam a fidelidade e a sinceridade como fundamentais. Neste espaço, seu jeito de ser feminino não é apenas construído pelo que elas dizem ou fazem, mas também, é claro, por tudo o que dizem e fazem os outros na direção delas (especialmente os rapazes, mas também a apresentadora, a platéia, os programadores). Assim é interessante notar que os garotos as presenteiam com pijaminhas bem comportados e caixas de bombons, expressam com veemência sua intolerância a uma eventual traição, exigem fidelidade e, por vezes, mostram-se desconfortáveis com a posição supostamente passiva de cortejados. A platéia, com gritos, vaias e aplausos, aprova ou desaprova atitudes e os programadores e a apresentadora compõem um texto heterogêneo, que tanto instiga as garotas à ousadia e à inovação quanto repete e reitera fórmulas usuais do feminino.

Qual deveria ser, então, o nosso veredicto diante desse quadro? Afinal essas garotas representam a “nova” mulher do século XXI ou carregam as marcas e os vestígios do “eterno feminino”?  Parece-me que pergunta está mal formulada. A pós-modernidade sugere que abandonemos os dilemas, que deixemos de lado a lógica do ou isso ou aquilo e nos convida a pensar que as coisas, os sujeitos e as práticas – neste caso, os sujeitos femininos – podem ser, ao mesmo tempo, isso e aquilo. Antes de lidar com dicotomias, pensemos na pluralidade. As diferenças não são binárias, são múltiplas.

         A pergunta central deste programa – Fica comigo? – e o desenlace esperado – o encontro do par – podem ser sugestivos para refletirmos sobre outra aparente contradição contemporânea. Um conjunto variado de condições vem produzindo, nos últimos tempos, uma nova representação da mulher só, ou melhor, do indivíduo só; uma representação que difere bastante daquela de antigamente. Ser uma mulher solteira, o que se constituía, até alguns anos atrás, em motivo para lástima ou para vergonha (lembram-se da solteirona, a “tia” virgem e encalhada?), passou a ser, agora, sinônimo de mulher independente, desimpedida, autônoma. Pode-se supor que quem vive sozinho (homem ou mulher) tenha escolhido voluntariamente essa condição e não tenha sido relegado a ela. Ser solteiro ou estar solteiro passou a ter glamour.  A condição é associada com maior possibilidade de consumo e de mobilidade e, o que é muito importante, não implica, de modo algum, ausência de vida amorosa ou sexual ativa. (Tudo isso valendo agora para as mulheres tanto quanto valeu antes para os homens). No entanto, apesar de todo o charme que possa estar associado a essa posição, é curioso observar o quanto os programas de TV, os filmes, a mídia e os livros (muito especialmente os livros de auto-ajuda) insistem que a felicidade se encontra no par. A tese de doutorado de Vera Lúcia Pereira Alves, Receitas para a conjugalidade: uma análise da literatura de auto-ajuda, defendida na UNICAMP, em 2005, tratou dessa temática e mostrou a ênfase nas habilidades e estratégias que alguém deve desenvolver para encontrar e manter o parceiro.

Seu trabalho revelou que esta literatura é, fundamentalmente, voltada para mulheres o que poderia nos levar a pensar que, apesar de todas as evidentes conquistas femininas em muitos terrenos (no trabalho, na política, na educação, etc.), a união estável continua sendo repetida como uma tarefa ou um destino que nós, mulheres, deveríamos valorizar. No seu estudo, Vera Lúcia acentua que “a conjugalidade é a meta” e “a individualização é o meio, o instrumento com que ela opera”. Na ótica deste tipo de literatura, tão influente hoje em dia, a máxima seria: “para casar, cuide de si; para cuidar de si, case-se” (ALVES, 2005, p. 249).

Vamos fazer um corte rápido e completa mudança de cenário. Trago agora uma outra peça para compor o tal mosaico: a figura de Darlene, personagem vivida por Regina Casé no filme Eu, tu, eles de Andrucha Waddington, lançado no ano de 2000. A história se passa numa região isolada, quente e árida do nordeste brasileiro, na qual uma mulher comum vive com três homens e vários filhos, sob o mesmo teto. Mais do que o filme o que me pareceu interessante trazer aqui foram alguns recortes de uma entrevista realizada com Marlene Silva Sabóia, a mulher que viveu efetivamente esta história e que inspirou a narrativa de Andrucha. Ela é descrita por quem a conheceu como uma mulher sofrida e corajosa, que enfrentou o machismo do nordeste e viveu durante 17 anos com três maridos no interior do Ceará. O repórter, Marcelo Bartolomei, da Folha Online (2000), registra a fala de Marlene. Ela diz:

“Peguei uma amizade com o pai do meu filho mais velho, do Vicente, hoje com 27, daí eu pedi a meu pai para cuidar do meu filho enquanto eu ia para Fortaleza trabalhar porque eu não tinha condições e precisava dar dinheiro pra minha mãe. Já viu: não tinha marido. Passei uns seis meses lá e voltei, pelo menino. Cheguei aqui e minha mãe disse: - Marlene, sabe quem vai casar? O Oscar. Daí eu perguntei quem era o Oscar e ela me disse: - Claro que você sabe, é aquele rapaz velho, rico. E eu vinha vindo entregar um presente para minha concunhada aqui pra estes lados quando encontro com ele e ele ficou muito admirado. Eu era gorda, bonita neste tempo, tinha um cabelo comprido, era forte, mais preta porque vivia na praia. E ele perguntou se eu queria casar com ele. Eu disse que não. Vou deixar de viver na minha vida que vivo em Fortaleza, trabalhando, ganhando meu dinheiro, livre e desimpedida, passeando, usando o que eu quero, pra casar com você para depois viver aqui? Daí eu sai de lá e fui embora. Quando eu cheguei aqui ele veio atrás e chegou junto. Ele tinha 42 anos. Eu já tinha 19 anos...”

     Adiante, ela conta que Oscar procurou o padre e perguntou-lhe quanto ele queria para casá-lo com Marlene. O padre respondeu que não cobrava nada, mas disse: sendo eu no seu lugar eu não casava com esta menina não, porque ela é uma doida.  Marlene completa: Ele já sabia das minhas presepadas lá.

         Ela conta muitas coisas, por exemplo, que nunca teve amor por ele, mas que casou atender um pedido do seu pai. Na noite do casamento, o marido perguntou se ela não ia no forró. E ela retrucou:

Me casei com você hoje e tu já está me mandando pra um forró? E, continua ela, ele disse para que eu fosse mesmo. Eu então destranquei minha mala, me arrumei, me perfumei, eu tinha um brilho neste tempo e passei na boca, escovei bem escovado meu cabelo e fui. Passei na frente de uma casa e a mulher disse para outra que estava junto: - Olha lá a Marlene, mulher do Oscar, já brigou com ele! E eu fui lá e disse que ele que tinha me mandado ir. Fui, dancei a noite toda, nem lembrei que tinha me casado. Voltei para casa no outro dia bem cedo. Cheguei aqui e disse que queria almoçar carne. Ele mandou matar um bode e vivemos três anos em paz.

         A vida da Marlene de verdade só podemos conhecer pelo que ela conta. Diz ela que todos os seus maridos se completavam, e que gostou mais do Zé, porque ele era bonito e forte. A história da Darlene do filme é a de uma mulher que trabalha pra caramba, na roça e em casa, cuida dos filhos, alimenta-os e brinca com eles e consegue, de um jeito ou de outro, manter seus três homens em paz. Ela também sabe tirar prazer do seu corpo, dançando forró, transando e engravidando. A personagem diz, num momento do filme, que não sabe o que acontece, mas quando pega barriga fica assim, mais quente. Sua sexualidade parece ser, nesta história, espaço de libertação, de gozo e também de opressão. 

         Não há glamour na sua vida. Nossa experiência urbana nos faz rejeitar as agruras de sua casa isolada e pobre, a secura e o pó da região, o calor constante. No entanto, é preciso reconhecer que Marlene/Darlene também vive, do seu jeito, a feminilidade. Embora distante de toda a tecnologia e confortos, sem televisão para acompanhar as modas e os comportamentos do momento, ouso dizer que sua vida também foi tocada, de algum modo, mesmo que muito sutilmente, pelas transformações contemporâneas. Não estou afirmando que a Marlene tenha ouvido falar de feminismo ou que tenha precisado que alguma teórica autorizasse suas “presepadas”. Ela era “danada”, como diz, por conta própria. No entanto, acredito que todas essas transformações culturais mais amplas e distantes devem ter, de algum modo, contribuído para produzir fissuras nas relações de gênero, mesmo naquele lugar perdido do mundo. Mas, ainda que nada disso tenha ocorrido, estou convencida de que, há alguns anos atrás, a história de Marlene não teria sido contada como foi neste filme. Se um diretor de cinema da cidade grande, lá pelos idos de 1940 ou 1950, tivesse sabido desta história e resolvesse traduzi-la para a tela, provavelmente construiria seu filme de modo a que a figura de Darlene fosse merecedora de um castigo exemplar: mais sofrimento, uma boa dose culpa e, ao final, quem sabe, a morte para punir suas ousadias.

Quero agora propor um retorno ao urbano. Ao mosaico de feminilidades, acrescento aquela que é vivida por mulheres que buscam parceria amorosa com outras mulheres.  Como parte integrante da noção de centro, a heterossexualidade também se pretendeu inquestionável. Representada, historicamente, como a única forma de sexualidade normal e, mais do que isso, representada como a forma “natural” de viver a sexualidade, a heterossexualidade parecia “estável”. Não deveria ser contestada, quer como prática quer como conceito. Contudo, já há algumas décadas, ela vem sendo posta em xeque, cada vez mais decisivamente.

Movimentos organizados das chamadas “minorias” sexuais, bem como campos de estudo teóricos (os estudos gays, os estudos lésbicos, a teoria queer) têm denunciado os processos de submetimento e marginalização que homens e mulheres homossexuais experimentaram e experimentam, bem como têm demonstrado o caráter construído dessa e de todas as demais formas de sexualidade. Acentua-se, agora, a idéia de que a heterossexualidade é apenas uma das muitas possibilidades de sexualidade – ainda que ela seja aquela que compulsoriamente se pretende que todos, homens e mulheres, devam viver. Como já disse antes, o centro continua exercendo seu poder de atração. E aqueles e aquelas que dele se afastam são desviantes.  É claro que esses já existiam em outras épocas, mas hoje eles e elas estão mais organizados e, evidentemente, muito mais visíveis.

O grande entretenimento nacional, as novelas da Globo, se constitui num bom exemplo dessa visibilidade. O casal de lésbicas glamourosas de Torre de Babel, novela levada ao ar em 1998, causou polêmica e, afinal, o autor resolveu matá-las; em 2003, em Mulheres apaixonadas, o par feminino voltava ao horário nobre, agora por meio do romance muito doce de duas garotas de colégio e, então, um beijo quase casto foi o recurso utilizado para dizer que elas iam “ficar juntas”; mais recentemente, em 2005, de novo um casal de mulheres bonitas e certinhas viveu um romance de amor, na novela Senhora do Destino, com direito até à maternidade. Novelas, sim; ficção, mas muito “reais”, em termos de suas representações e efeitos culturais. De qualquer modo, prefiro trazer aqui outras mulheres apaixonadas ou em busca de paixão, jovens que estão circulando, hoje, “ao vivo”, nos bares, clubes, escolas e ruas de minha cidade, Porto Alegre. Para isso, valho-me de um estudo realizado por Nádia Meinerz para sua dissertação de mestrado em Antropologia Social, defendida em 2005, na UFRGS, e intitulada Entre mulheres: estudo etnográfico sobre a constituição da parceria homoerótica feminina em segmentos médios.

As mulheres com quem Nádia conviveu provavelmente não eram todas glamourosas e não eram, absolutamente, todas iguais. Na verdade, a pesquisadora construiu ou identificou algumas redes entre essas mulheres: havia aquelas que tinham se aproximado porque tinham em comum algum envolvimento político, outras saiam juntas em grupo porque tinham filhos, outras ainda porque tinham uma experiência acadêmica semelhante e, por fim, aquelas que tinham a mesma atividade profissional. Vários grupos de amigas que acolheram Nádia e aceitaram compartilhar com ela suas histórias, o cinema, o choppinho. Essas mulheres jovens e de classe média circulavam por muitos espaços na cidade, tinham suas preferências, mas usualmente não se fixavam em guetos homossexuais tradicionais.

Não havia entre elas a preocupação política de anunciarem sua condição de lésbicas, ainda que algumas tivessem participado de grupos ou de eventos de militância homossexual. Numa cultura como a nossa, em que a amizade entre mulheres se expressa com gestos de afeto mais explícitos e desembaraçados, é tênue a linha que separa a amizade da parceria sexual. Tudo pode ser mais ambíguo. Nesses grupos, a sedução e a conquista era menos marcada pela exposição explícita dos corpos e muito apoiada na erotização das conversas e da troca de olhares. É claro que elas reconheciam que os corpos importam. Para essas mulheres, a aparência e o investimento no corpo eram importantes. Buscavam parceiras bem cuidadas, diziam quase todas, ainda que expressassem de muitos modos suas preferências:

Geralmente eu atraio mulheres femininas, eu gosto, não precisa ser uma barbie, pode ser um estilo mais alternativo, mais despojado assim. Mas mulheres masculinas, que se vestem como homem, de maneira alguma ...

Eu jamais ficaria com uma mulher que, se eu olho eu não vejo se é mulher ou se é homem. Não precisa ser magérrima, mas também não pode ser um balão. E, de jeito nenhum eu ficaria com a mulher caminhão, que usa pochete, corta o cabelo assim e separa o lado, usa camisa social. Olha tem muito homem bonito que eu pensaria em sair antes de sair com uma mulher dessas.

Eu não gosto de mulheres femininas demais, que traduzam uma conformidade com padrões, eu gosto de pessoas que transgridam um pouco essa diferença de masculino e feminino (...) eu jamais ficaria com mulheres assim muito marias, sem atitude, conformadas às situações de opressão que vivem.

Um feminino perturbador, uma certa preferência pelo andrógino, pode ser o desejo expressado por algumas Nem caminhoneira nem perua, parece dizer a maioria. A construção do feminino, neste grupo específico de mulheres, se faz numa constante negociação entre esses extremos, afirma Nádia. Para elas, a transgressão da sexualidade não implica, necessariamente, um rompimento com as fronteiras de gênero. 

Vou concluir meu jogo de mosaicos com uma figura mais transgressiva: uma drag queen. Com sua ousadia, ela nos desafia a pensar de outro modo a feminilidade. Nela tudo é over, exagerado, apelativo. Seu corpo é, assumidamente, um corpo construído como imitação e paródia. Não, ela não pretende se fazer passar por uma mulher, seu objetivo é uma criação deliberadamente superlativa do feminino. Anna Paula Vencato acompanhou os sonhos, as tristezas e as alegrias de um grupo de drags, em seu mestrado de Antropologia Social, na UFSC. Em sua dissertação “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina, defendida em 2002, ela nos permite chegar mais perto de suas vidas. E isso é um privilégio, pois a drag é, fundamentalmente, uma figura “pública”, isto é, uma figura que se apresenta e surge como tal apenas no espaço público.

Seu camarim e sua intimidade são, usualmente, interditados aos curiosos. No camarim ela se “monta”, produzindo com cuidado a transformação de seu corpo, através de um processo minucioso cheio de técnicas e truques (como uma cuidadosa depilação, a dissimulação do pênis ou, ainda, por exemplo, o uso de seis pares de meias-calças para “corrigir” as pernas finas); em seguida, ela coloca sua exuberante vestimenta, muita purpurina, sapatos de altas plataformas e, finalmente, completa o quadro com pesada maquiagem (corretivo, base, batom, muito blush, cílios postiços e perucas). Ao executar, por fim, seus últimos movimentos, retocando o batom ou o delineador dos olhos, a “drag ‘baixa’” – conforme diz uma delas. É neste momento que a drag efetivamente incorpora, que ela toma corpo, que ela se materializa e passa a existir como personagem. Ela está, agora, pronta para ganhar a rua, para se apresentar num show, para “fazer” o carnaval ou simplesmente para se divertir. Anna Paula reproduz a fala de uma drag, já montada e maquiada, numa noite de carnaval, tentando convencer a colega que resistia a se produzir, porque “já não tinha mais corpo”: “Corpo? Corpo se fabrica... eu não fabriquei um agora?” (Vencato, 2002, p.46).

Ela assume, explicitamente, a fabricação de seu corpo: intervém, esconde, agrega, expõe. A drag propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, exorbita e acentua marcas corporais, comportamentos, atitudes, vestimentas culturalmente identificadas como femininas. Ela imita e exagera, se aproxima, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. Ela encena uma feminilidade e, portanto, põe em destaque o que é suposto como uma “essência” feminina. Nesse processo, ela realiza uma paródia do gênero. E, para os teóricos e teóricas contemporâneos, nada mais atual do que a crítica paródica (cf. Louro, 2004). Nesses tempos pós-modernos, a paródia não pode ser compreendida como uma simples imitação ridicularizadora, mas como um movimento em que há, simultaneamente, identificação e distanciamento em relação ao objeto que é parodiado. Ao repetir as supostas marcas do feminino, a drag estabelece, então, ao mesmo tempo, uma distância em relação a elas, deixando visível o caráter artificial de sua imitação. Com ironia, ela aponta a diferença em meio à exagerada semelhança. Por isso, é possível pensar que ela tem uma relação ambivalente com o feminino: ela o admira e, em alguma medida, o apropria; mas o modo como realiza esses movimentos implica e supõe a crítica e a subversão.

A drag assume, portanto, que a sua feminilidade é deliberadamente fabricada. Nela fica evidente o caráter construído do gênero. E entre as outras mulheres? Nas figuras de todas nós e também das jovens do Fica Comigo, das leitoras dos livros de auto-ajuda, das Marlene/Darlene do interior do Brasil, das apaixonadas garotas que buscam outras garotas, o que se passa? Seremos, todas, “naturalmente” femininas? Ou fabricamos, cada uma a seu modo, com os recursos e marcas de sua cultura, de suas “tribos” particulares, nossas feminilidades? 

Nota:

1. Este texto baseia-se em palestra apresentada no Espaço Cultural CPFL, em Campinas/SP, em novembro de 2005, no contexto do projeto “Novas identidades” (curador Luiz Paulo Moita Lopes).

Referências bibliográficas

ALVES, Vera Lúcia Pereira. Receitas para a conjugalidade: uma análise da literatura de auto-ajuda. Tese de doutorado, PPG Educação Unicamp. Campinas, 2005.

Bartolomei, Marcelo. Folha on-line, 17 agosto 2000.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LOURO, Guacira. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MEINERZ, Nádia. Entre mulheres: estudo etnográfico sobre a constituição da parceria homoerótica feminina em segmentos médios. Dissertação de mestrado, PPG Antropologia Social UFRGS, Porto Alegre, 2005.

SOARES, Rosângela.  Namoro MTV. Juventude e pedagogias amorosas/sexuais no Fica comigo. Tese de doutorado, PPG Educação UFRGS. Porto Alegre, 2005

VENCATTO, Ana Paula. Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina. Dissertação de mestrado, PPG Antropologia Social UFSC, Florianópolis, 2002.

            Outras referências

Eu, tu, eles, filme de Andrucha Waddington, Brasil (2000)

Fica Comigo? programa da MTV, Brasil (2000-2004)

Mulheres Apaixonadas, novela de Manuel Carlos, TV Globo, Brasil (2003)

Senhora do destino, novela de Aguinaldo Silva, TV Globo, Brasil (2004)

Torre de Babel, novela de Silvio de Abreu e Alcides Nogueira, TV Globo, Brasil (1998)

Guacira Lopes Louro é gaúcha, formada em História pela UFRGS e Doutora em História da Educação pela UNICAMP. Professora titular aposentada da UFRGS, trabalha atualmente como professora colaboradora voluntária no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS. Tem várias publicações na área de gênero e sexualidade, destacando-se os livros Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista (Ed. Vozes, 8a edição) e Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer (Ed. Autentica, 2004).

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juin/ décembre 2006/ junho/ dezembro 2006