labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007

As mulheres artistas e os silêncios da história: a história da arte e suas exclusões

Ana Paula Cavalcanti Simioni

Resumo:

            O presente artigo analisa alguns exemplos concretos de práticas de exclusão da participação feminina na história da arte brasileira, sobretudo no que tange às artistas classificadas como “acadêmicas”. Procura-se incitar uma reflexão crítica sobre a suposta neutralidade das fontes com que, usualmente, se (re)constrói a memória das práticas culturais e artísticas. Nesse sentido, o texto aborda particularmente três tipos de práticas constitutivas da institucionalização da história da arte enquanto disciplina: a montagem dos arquivos; as seleções museais e o modo com que os valores de época presentes na crítica de arte acadêmica impregnaram os estudos posteriores, procurando demonstrar como em cada uma delas as artistas mulheres foram sistematicamente negligenciadas e, por fim, colocadas à margem do cânon.

No início dos anos 1970, Linda Nochlin publicou um consagrado artigo que, até hoje, suscita reflexões sobre a ínfima participação das mulheres na história da arte. Em “Why there have been no great women artists?” a autora colocava uma questões perturbadoras:  existiram mulheres artistas no passado? Se sim, por que não as conhecemos? Refutando por completo qualquer tipo de determinismo biológico que culpava as incapacidades criativas desiguais entre os sexos, argumento usual no século XIX, a autora localizava nas práticas excludentes de formação, sobretudo na proibição de que as mulheres cursassem as Academias de arte, a principal causa para o obliteramento de suas carreiras (Nochlin, 1971). De lá para cá, pode-se dizer que uma história da arte feminista ou, como outras sugerem, intervenções feministas na história da arte, desenvolveram-se com apreciável qualidade (Pollock, 1994ª; Broude & Garrard, 1982). Mas, no que tange à história da arte brasileira, muito pouco ainda se sabe sobre as artistas atuantes anteriormente às consagradas modernistas. É como se, antes dos idos de 1920, simplesmente não tenham existido mulheres artistas no país.

A “redescoberta” das artistas do sexo feminino atuantes ao longo do século XIX passa pela investigação das fontes com que, habitualmente, alimentamos as pesquisas acadêmicas. A leitura ou releitura de documentos constitutivos dos universos artísticos, como diários, jornais, cartas, livros de matrículas, manuais, tratados, esboços de obras, ou seja, toda uma infinidade de “detalhes significativos” que colaboram na compreensão das práticas e valores de períodos determinados, necessita ser realizada a partir de uma postura interpretativa, balizada por hipóteses norteadoras da investigação.

Isso porque a história da arte pode ser compreendida como uma narrativa constituída a partir de escolhas e exclusões, a despeito da defesa acadêmica de sua suposta “objetividade” (Alpers, 1982: 184). O direito a figurar entre os sujeitos que fazem a história da arte não é, nesse sentido, evidente ou determinado apenas por critérios puramente formais, como a “qualidade e genialidade” das produções de indivíduos dotados, como usualmente acredita-se; mas depende, em grande parte, daqueles outros sujeitos responsáveis pela escrita da história, a saber, o historiador da arte, o crítico, o museólogo e o curador, personagens determinantes na construção de um destino para obras de arte e seus criadores, aquilo que se denomina “cânon”.

Tal perspectiva, no caso das artistas mulheres é ainda mais evidente posto que sua exclusão da história da arte passa por variados processos de institucionalização daquilo que Perrot denomina por “silêncios da história” (Perrot, 2005: pp 9-14). A própria lógica de constituição de alguns fundos documentais é inextricavelmente “política”, revelando o quanto a desigualdade entre os gêneros perpassa o próprio acesso desigual às fonte e, conseqüentemente, invade as possibilidades da interpretação e da escrita da história.

Femmes artistes au XIXème? Ça n´existe pas!: arquivos franceses e exclusões femininas

Em 2002, tive a oportunidade de realizar um estágio de pesquisa na França. O objetivo principal a recuperação das condições de formação artística disponíveis para mulheres artistas, particularmente brasileiras, em Paris na transição do século XIX para o XX. O estudo da Academie Julian, principal escola privada, em nível internacional, a acolher mulheres como discentes a partir do último quartel do XIX era central para minha tese, na medida em que lá possibilitava-se o estudo do modelo vivo com mestres consagrados o que, no Brasil, só se efetivou no final do século XIX, após a abertura dos cursos superiores ao sexo feminino, em 1892 (Simioni, 2004: 57-64).

Com efeito, as artistas brasileiras que passaram pela escola (Berthe Worms, Nicolina Vaz, Julieta de França, Nair de Teffé, Georgina de Albuquerque, entre outras) foram capazes de estabelecerem carreiras mais bem sucedidas do que as suas congêneres que jamais saíram do Brasil. Ou seja, a hipótese de que os ensinamentos da escola haviam sido relevantes para a formação de tais artistas estava embasada em dados sociologicamente pertinentes (como as premiações obtidas nos salões, a reputação no campo e os vínculos institucionais posteriormente conquistados). Mas era preciso entender o que a escola lhes oferecia: quais tipos de conhecimentos, quais habilidades, que tipo de valores estéticos eram ali engendrados. Em suma, o que significava exatamente a passagem pela Academia Julian, essa escola que acolheu tantos e tantos brasileiros naquele momento e que, do ponto de vista da historiografia, é sempre obscurecida quando comparada a Ecole des Beaux Arts.

Ao chegar a Paris eu já sabia que os documentos relativos a Academie Julian encontravam-se nos Archives Nationales.  Fiz o que todo investigador faria: reservei um assento na seção de microfilmes e comecei a leitura, sistemática, das fontes. A lista de matriculados por ano (entre 1870-1922) me permitiu recuperar a quantidade de brasileiros que passaram pela escola; em seguida consultei as fichas dos ateliês dos professores (Jean Paul Laurens, W. Bouguereau, entre tantos outros) e cruzei tais informações com a lista anterior, obtendo um mapeamento sobre os ateliês mais cursados por brasileiros (Simioni, 2005).

Mas havia um grande problema que me afligia: não havia encontrado um único nome feminino em todas aquelas longas listas. Onde estavam as mulheres? Eu sabia, pela bibliografia internacional já lida, que as classes femininas existiram, foram muitas e relevantes (Feher, 1994; Weisberg & Becker, 2000). Mas, onde estavam as fontes? Algo era claro: os Archives Nationales só possuíam a documentação relativas às classes masculinas, e ninguém lá sabia explicar o que havia ocorrido com as fontes sobre as artistas mulheres. Comecei então um périplo pela cidade. Descobri que havia uma escola particular, fundada, ou melhor, refundada nos anos de 1980, chamada Academie Julian. Pensei que, evidentemente os arquivos estariam ali.

Em uma reunião com o diretor, ao narrar o que me levava a procurá-lo, o interesse na recuperação das trajetórias das alunas da escola do século XIX, escutei: “Femmes artistes au XIX ème?! Ça n´exite pas!”. Argumentei que existiram, mas rapidamente percebemos que tal existência não estava preservada nos atuais arquivos da escola. Voltei então aos meus livros, escritos por norte-americanos que haviam investigado exatamente o mesmo que me interessava: a formação das artistas mulheres na França do XIX, mas com ênfase em suas compatriotas (Weisberg and Becker, 2000). Em uma nota de agradecimento de um dos livros encontrei a informação:

“Any study of Académie Julian today owes a great debt to [...]André Del Debbio, whose Académie Julian Del Debbio continues the activities of Julian women´s atelier. Mr. Del Debbio and his son Christophe-Emmanel have generously allowed this material – student-prize drawings and sketches, photographs, and caricatures […]” (Weisberg and Becher, 2000: xiv)

Ou seja, as fontes encontravam-se com um particular, O Sr. Del Debbio. Quem era ele? E pior: como localizá-lo em Paris? Por vários meios prosaicos acabei por descobrir seu endereço. Enviei-lhe uma carta; 15 dias depois, boa surpresa, o senhor havia respondido, também por correio dizendo-me que sim, a documentação sobre as classes femininas estava em suas mãos, em seu ateliê particular, e que eu poderia ir visitá-lo na semana seguinte.O simpático senhor, um escultor de aproximadamente 80 anos, recebeu-me cordialmente e permitiu-me a consulta a uma pequena parte de seu vasto arquivo: os cadernos de matrícula das classes femininas. Lá encontrei o suficiente para confirmar algumas hipóteses. Mas não pude deixar de me maravilhar e entristecer por observar, de longe, nas paredes uma série de desenhos e telas realizados pelas ex-alunas da instituição, desde o XIX até os idos de 1940. No segundo andar do estúdio, caixas e caixas guardavam desenhos, cadernos, e mais outras muitas fontes sobre a história da formação de artistas mulheres da França, Itália, Polônia, Argentina, entre tantas outras nacionalidades, que estagiaram na célebre instituição. Material esse que permanecia em estado “bruto”, praticamente desconhecido, logo, não investigado ou catalogado, descrito, interpretado, com a honrosa exceção da documentação sobre as norte-americanas, analisada no livro citado.

Mas, afinal, por que a documentação sobre as mulheres estava ali, em mãos de um particular, e não nos Archives Nationales? Ao indagar exatamente isso ao sr. Del Debbio recebi a seguinte explicação: a de que, quando ele comprou a marca, Academie Julian, devido a importância já conhecida dos alunos homens que passaram pela instituição, decidiu-se por doar toda a documentação para o arquivo nacional. No entanto, no que tange às mulheres, essas eram tão pouco conhecidas e consideradas, que junto com a marca, o novo proprietário acabou “ganhando” uma vasta gama de caixas, desenhos, e até mesmo telas realizadas pelas antigas alunas.

Tal história, aparentemente ordinária, estimula algumas reflexões. Primeiramente, podemos nos indagar o que significa o fato de que os documentos relativos aos artistas homens estejam disponíveis em uma instituição pública ao passo que os femininos encontram-se aos cuidados de um particular. Para além de mais uma vez evidenciar o quanto, historicamente, as artistas do sexo feminino foram consideradas excluídas do cânon, a divisão dos arquivos traz implicações práticas para a própria revisão da história da arte. Como reavaliar os critérios de pertencimento e exclusão dos artistas se, no que tange a tais discípulas, sequer o acesso às fontes nos é permitido de modo igualitário? Enquanto a visibilidade das trajetórias masculinas é amplamente garantida por todo um conjunto de aparatos institucionais, como os museus, e, conforme sugiro aqui, pelos próprios arquivos, o que em muito facilita as pesquisas e, assim, o conhecimento; no caso das mulheres sequer o desejo, em si já raro, de investigá-las pode obter o mesmo êxito, uma vez que o acesso às fontes é dificultado, posto que privatizado.

Assim, parece-me necessário ao se trabalhar com a história das artistas mulheres, que não apenas realizemos sistematicamente uma postura crítica em relação às fontes, mas também que as próprias práticas institucionais de seleção, organização e conservação da memória, por meio de documentos – aqui considerados de modo livre e abrangente, incluindo telas, papéis, ofícios, livros, diários etc – levadas a cabo e cristalizadas pelas instituições artísticas merecem ser colocadas em questão pelos pesquisadores. Ou seja, é preciso refletir sobre a própria idéia da “existência” ou “inexistência” de documentos como um critério para atestar as supostas “verdades” com que se trabalha em história da arte. 

A institucionalizando a exclusão: um exemplo de prática museal

Um outro caso concreto pode ser tomado como paradigmático do modo com que valores impregnam práticas institucionais. Trata-se de um museu, talvez o mais relevante de todos por seu acervo e exposições no que tange à perpetuação e divulgação da arte acadêmica no Estado de São Paulo: a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Nele existe uma sala dedicada ao (ou melhor, inspirada no) Salão de 1884.  Na entrada do recinto, um pequeno texto afirma:

  “Última exposição realizada pela Academia em tempos do Império, a XXVI Exposição Geral de Belas Artes abriu-se no Rio de Janeiro a 23 de agosto de 1884, na presença do Imperador Dom Pedro II, da Princesa Isabel e do Conde D´Eu. Dela participaram 75 expositores com 399 obras- inclusive 53 pintores que formava um conjunto insuperável, no qual se destacavam Firmino Monteiro, Augusto Rodrigues Duarte, Pinto Bandeira, Belmiro, Décio Villares, Vasquez, Rouéde, Grimm, Castagneto, Estevão, Hilarião Teixeira, Caron, Aurélio da Rocha, Facchinetti, Oscar Pereira da Silva, Pedro Américo, Pedro Peres, Rafael Frederico, Driendl, Amoedo e Vitor Meirelles [...]”

O texto cita os artistas premiados na exposição de 1884, com a inexplicável exceção de Abigail de Andrade. Justamente ela que foi a primeira mulher a obter, no Brasil, a medalha de ouro em uma exposição geral e exatamente naquele salão (Simioni, 2004: 194-223). Por que seu nome foi simplesmente omitido? Não há como responder com certeza, porém, talvez se tenha incorporado, inadvertidamente, as palavras do célebre crítico Gonzada Duque que, em seu fundamental livro, A Arte Brasileira, ao comentar a atuação das artistas mulheres as englobou mediante o termo, ambíguo, de “Amadoras”.

“Mme. de Stäell dizia a Napoleão que ‘o gênio não tinha sexo’ frase provada inúmeras vezes e que, entre nós, a Sra. D. Abigail de Andrada acaba de corroborar com o seu valioso talento. 

Creio que a Exma. Pintora começou os estudos artísticos com o simples intuito de completar a sua educação, porém, a paixão pela pintura dominou- a.

A sra. Abigail rompeu os laços banais dos preconceitos e fez da pintura a sua profissão, não como outras que, acercadas dos mesmos cuidados paternais, aprendem unicamente a artezinha colegial, pelintra, pretensiosa, hipócrita, execrável de fazer bonecos em papel Pellee e aquarelar paisagens d’aprés cartons; não para dizer que sabe desenhar e pintar cetins de leques, não para reunir à prenda de tocar piano e bordar a retrós a de martirizar pincéis, mas por índole, por vontade, por dedicação.

É que a sra. Amadora possui um espírito mais fino, mais profundamente sensível às impressões da natureza e sabe, ou por si ou inteligentemente guiada, aplicar o seu talento a uma nobre profissão que há de, senão agora, pelo menos em breve tempo, colmar-lhe a vida de felicidades (Gonzaga Duque, 1995: 213)”.

O termo amador era usado indiscriminadamente para mulheres artistas e, raramente, para alguns homens. Dizia respeito àqueles que não passaram pelos ensinamentos da Imperial Academia de Belas Artes. Mas, também, era um modo elástico de se referir às artistas do sexo feminino, conforme procurarei mostrar nas próximas páginas. Ao se tomar o termo usado por Gonzaga Duque em um sentido categórico, sem se questionar o que significava à época, corre-se o risco de simplesmente descartar as produções femininas de avaliações mais sérias, ou mesmo, relegá-las a um nicho inferiorizado no campo artístico.

É ainda plausível que, o fato de Abigail de Andrade ter sido aluna e amante de Ângelo Agostini – um reconhecido artista, crítico e caricaturista atuante no Rio de Janeiro na segunda metade do XIX – em escândalo na época, tenha se tornado mais relevante do que o caráter propriamente artístico de sua trajetória (Oliveira, 1993).  O fato é que seu nome não aparece ombreado aos de colegas que hoje figuram na sala da Pinacoteca do Estado de São Paulo e, distinguindo-se deles, cujas pinturas encontram-se expostas em museus, ou resguardadas em seus acervos, as telas de Abigail que ainda restam estão dispersas entre colecionadores particulares, sendo raramente apresentadas ao público. Mais um exemplo do quanto as artistas ainda encontram-se prisioneiras do ambiente que o século XIX lhes constitui como “apropriado”: o privado.

As mulheres artistas... essas amadoras : da crítica à historiografia

Esses dois exemplos citados, embora pontuais, são indicativos do quanto os valores de época perpassam as práticas de institucionalização e consolidação de determinados cânones artísticos. Tanto a constituição dos fundos documentais, dos arquivos, quanto as práticas museais refletem e perpetuam determinados juízos de valor que lhes antecedem e, constituem, muitas vezes de modo velado, o próprio desenvolvimento da história da arte enquanto disciplina.

No que tange as trajetórias e obras realizadas por artistas mulheres ao longo do século XIX e inícios do XX, um fator foi decisivo para seu obscurecimento: o modo com que a crítica de arte as compreendeu e os desdobramentos de tais escritos sobre a historiografia posterior. O argumento que pretendo demonstrar aqui é o de que a visão de época dos críticos, profundamente marcada pela crença de que as mulheres eram naturalmente inferiores do ponto de vista intelectual, impactou não apenas seus escritos, mas boa parte da produção bibliográfica posterior, “contaminando” as fontes com que usualmente contamos para reconstruir a história das mulheres artistas.

O interessado em conhecer as artistas do passado, provavelmente iniciará suas buscas em dicionários especializados. Em minha pesquisa de doutoramento, ao realizar tal procedimento, cheguei a aproximadamente 90 nomes femininos atuantes entre as primeiras décadas do XIX e as duas primeiras décadas do século XX (Simioni, 2004). Tal dado, por si só, já invalida a crença recorrente de que não existiram artistas brasileiras anteriores ao Modernismo ou, quando existiram, eram vistas como “heroínas melancolicamente frustradas aquelas artistas que arrostavam incompreensões, preconceitos e caipirismos, numa época em que não havia salões nem galerias e em que os seus pendores habituais se limitavam à arte aplicada das almofadas, rendas, bordados, flores artificiais etc”(MAM, (Contribuição das mulheres às artes plásticas do país, 1960-1961). 

Embora os dicionários sejam fontes indispensáveis, não são inquestionáveis, nem tampouco exclusivas. Vale lembrar que são leituras, recortes, levados a cabo por escritores que operaram seleções, logo, escolhas e exclusões. Nesse sentido, busquei em outras fontes, primárias, informações sobre as trajetórias de mulheres artistas. Os catálogos das exposições gerais de belas artes (com a República denominados Salões Nacionais de Belas Artes) revelaram um número bastante diverso daquele que arrolado por meio dos dicionários: mais de duas centenas de mulheres artistas participaram de tais mostras, as mais importantes no cenário acadêmico, entre os idos de 1840 e 1922, período compreendido pela investigação. Como um contingente tão significativo, simplesmente, desapareceu da história da arte?

Eventos e processos históricos não podem ser pensados sob o signo, simplista, da monocausalidade. Decerto, foram vários fatores que contribuíram para o esmaecimento da participação feminina no cenário artístico nacional. Dentre eles, o modo com que os críticos julgaram as obras femininas na época mesma em que foram expostas merece especial destaque, particularmente porque foram os seus escritos as principais fontes a alimentarem toda a produção bibliográfica posterior.

Os primeiros balanços sobre a produção artística nacional foram realizados no último quartel do século XIX. Em 1885, Felix Ferreira, empreendeu um dos primeiros esforços de uma sistematização da história da pintura no Brasil, publicado como Belas Artes: estudos e apreciações. Ao comentar o Salão de 1884, a última mostra organizada pela Academia a ocorrer sob o jugo do Império, o autor mencionou algumas expositoras do sexo feminino: Abigail de Andrade, Guilhermina Tollstadius, Baronesa de Araújo Godim, Rosa Meryss e Julieta Adelaide dos Santos. O autor distribuía os produtores do que denominava “a grand attraction da exposição”, a saber, “mais de duzentos e cinqüenta quadros a óleo”, como objetos “expostos por seis amadores, onze alunos e trinta artistas”. Os três termos traduziam os modos pelos quais os artistas eram classificados. A hierarquização seguia critérios objetivos, como o do nível de seus estudos e as consagrações anteriormente obtidas, mas também trazia um outro crivo, mais subjetivo e sutil, que era o do gênero.

Naquele contexto, o termo artista era utilizado estritamente para os homens já formados pela Academia, geralmente detentores de trajetórias bem sucedidas, com destaques em exposições anteriores. Já o termo aluno era aplicado literalmente, abarcando todos os inscritos na escola oficial ou a ela ligados em função dos prêmios de viagem ao exterior em curso. É importante ressaltar que apenas homens poderiam ser compreendidos por tal categoria naquele momento, uma vez que foi somente no ano de 1892, após a proclamação da República, que a Escola Nacional de Belas Artes passou a aceitar discípulas entre seus membros. Assim, durante todo o período imperial as mulheres foram oficialmente excluídas dos ensinamentos legados pela instituição. Já a terceira categoria, a de amadores, embora aparentemente conjugada em um plural universal era, na realidade, usada para abarcar as mulheres artistas:

“Mais de duzentos e cinqüenta quadros a óleo foram expostos por seis amadores, onze alunos e trinta artistas, entre os quais se contam os nossos melhores mestres. Dos amadores, seis são senhoras; e este maior número prova que amam elas mais as artes que os homens desocupados, que entre nós não são poucos, ou, pelo menos, que sabem elas empregar melhor as suas horas de repouso”.  

Como se depreende do texto, todos os expositores denominados amadores pertenciam ao sexo feminino[1]. A noção de amadorismo compreendia uma gama de sentidos. Por um lado havia um fato objetivo: acoplava todos aqueles artistas que não cursaram a Academia, condição em que se encontravam, obrigatoriamente, todas as mulheres e alguns poucos homens. Por outro, a noção embutia alguns preconceitos que cabiam como luvas para as mulheres, o próprio texto traz um deles: a idéia de que era um passatempo para desocupados.

Assim, ao se empregar o rótulo de amadoras para as artistas mulheres, acabava-se por desvalorizar suas produções. Elas estavam condenadas a serem vistas como indivíduos “pouco profissionais” quando comparadas aos homens, isso porque, objetivamente, considerava-se que não tiveram acesso às instâncias de formação artística, logo, que não possuíam as habilidades necessárias para se verem ombreadas a eles[2]. Além disso, o termo trazia consigo uma poderosa e nefasta imagem: a de que para as mulheres a arte era um passatempo, um diletantismo erudito, mas não uma atividade séria (Simioni, 2006).

Um outro exemplo das conseqüências da crença nessa suposta frivolidade do exercício artístico feminino nos é dado por Ângelo Agostini, em seu jornal Illustração Brasileira, que, ao comentar o sucesso das exposições realizadas no ano de 1888, omitiu, “por cortesia”, as participações femininas. Ao fazê-lo, negava um dos bens mais preciosos no campo cultural para todos os indivíduos nele envolvidos: a afirmação do nome próprio, da autoria (Bourdieu, 1996).

“Com verdadeiro prazer vejo que o público já não se mostra indiferente pela arte, entre nós, como notava-se antigamente. As exposições já são concorridas: os nomes dos Bernardelli, Zeferino, Amoedo, Décio Villares, Almeida Junior, Peres, Driendl, Caron, Vasquez, Duarte, Parreiras, Ribeiro, Gensonlen, Hilarião, Belmiro, Monteiro, e muitos outros cujos nomes não nos ocorrem n´este momento, são amiudadas vezes pronunciados nos grupos dos amadores que, cada vez mais, se vai engrossando, discutindo sobre o mérito de tal ou qual artista, amador ou amadora, pois que entre estes contam-se alguns verdadeiramente notáveis: citarei o nome de França Junior, mas calo o das senhoras, para não ofender a suscetibilidades com algum esquecimento (Agostini, 1888: 6).”

 A relação artista x amador manteve-se como uma categoria relevante para a crítica de arte nacional em textos posteriores. Conforme já foi dito, Gonzaga Duque a reutilizou em seu célebre livro A arte brasileira, publicado em 1888, referência indiscutível para todos os atuais pesquisadores dedicados ao século XIX brasileiro. Na obra, as artistas são acopladas no subcapítulo intitulado “Amadores” que, muito sugestivamente, está localizado após os “Esquecidos” e os “Mortos”, um bom indício do espaço marginal que ocupavam na ótica do crítico. Mas a tradição não acabou aí, antes, foi se reatualizando, adquirindo novas formas.

Em 1916, Laudelino Freire editou um ambicioso compêndio, Um século de pintura. Apontamentos para a história da pintura no Brasil, de 1816 a 1916. Nele, o autor absorvia certos valores e categorias utilizadas anteriormente por Gonzaga Duque, a esta época já uma bibliografia indispensável nas prateleiras dos estudiosos do academismo. Muito embora o autor mencionasse as mulheres quando se tornavam expositoras premiadas nos salões, não lhes dedicava sequer uma linha nas notas biográficas ao final de cada capítulo, bem diferente do que ocorria com os artistas pertencentes ao sexo masculino os quais, sendo ou não ilustres, mereciam um tratamento individualizado. Somente no final do texto, mais especificamente na página 519, compreende-se o motivo de tal tratamento dessemelhante. Seguindo parâmetros estabelecidos anteriormente, Laudelino Freire as arrolava, em bloco, no grupo dos “novos” e “amadores”, indistinguíveis no texto:

“O grupo dos novos, finalmente, seguido do de amadores, vem assim formado:- Guttman Bicho, Paulo do Valle, Paulo Leão, Miguel Cappolch, Argemiro Cunha, Antonio Jose Marques Junior, Henrique Cavalleiro, Watts Rodrigues, Otto Bungner, André Vento, Adelaide Gonçalves, Beatriz Camargo, Fedora Monteiro, Georgina de Albuquerque, Iracema Orosco Freire, Julieta Bicalho, Maria Pardos, Rachel Boher, Regina Veiga, Sylvia Meyer, Luiz Cordeiro, Leopoldo Gottuzzo [...] e outros (Freire, 1916: 519)”.

Novos e amadores equivaliam na visão de Freire, tratando-se em ambos os casos de artistas que não poderiam ser considerados plenos ou maduros. Uns por serem ainda excessivamente jovens, em fase de aprendizado do ofício, outros porque não serem satisfatoriamente formados nos saberes, teóricos e técnicos, exigidos pelas grandes e belas artes. O fato de as mulheres, independentemente da geração a que pertencessem estarem ali alocadas, naquele nicho dedicado aos artistas ainda não completamente educados, dizia muito acerca do que se entendia por suas capacidades intelectuais natas. Se para algum homem a condição de jovem ou amador era algo transitório, para as mulheres era, no mais das vezes, uma situação dada por sua natureza e, como tal, permanente e definitiva. 

  O amadorismo, no Brasil, equivalia tanto simbolicamente como funcionalmente a noção de “arte feminina” inventada ao longo do século XIX na França (Garb, 1989). Era um modo de se enquadrar a produção das artistas mulheres como um todo,  mediante critérios que obedeciam muito mais à situação de gênero de suas produtoras do que, propriamente, a análises calcadas nas qualidades puramente artísticas. Como bem analisou Tamar Garb, nesse sentido, a invenção do Salon des Artistes Femmes Peintres et Sculpteurs, fundado em 1881, por um lado teve o inegável mérito de abrir um espaço para que as mulheres mostrassem suas produções, por outro contribuiu para a cristalização da imagem de que as artistas do sexo feminino teriam, independentemente de suas obras, uma situação comum: sua arte seria, sempre, a expressão da feminilidade natural de seu sexo (Garb, 1994).

As artistas – condenadas a não terem outra opção expressiva que não tais atributos supostamente “espirituais” derivados de sua condição biológica – foram sendo afastadas das comparações com as obras de outros artistas, particularmente dos homens, que continuavam a ser os expoentes centrais do sistema. Cotejar artistas umas com as outras, buscando nas obras os efeitos expressivos das qualidades de seu sexo (doçura, sensibilidade, perfectibilidade, detalhismo, etc) foi um modo prático, porém com conseqüências perversas, de se criar um nicho para a produção das mulheres, alocando-as ao lado, mas não ao centro, do campo em que desejavam se inserir.

O amadorismo, no Brasil, teve efeitos muito semelhantes. A sua articulação, aparentemente neutra e natural, com a prática artística feminina, anunciada pelos críticos do século XIX e absorvida pelos escritores posteriores, conferiram conseqüências evidentes às trajetórias femininas. Ainda que, na época, ao utilizar o rótulo de amadoras os críticos pretendessem circunscrever apenas aspectos objetivos da produção das mulheres, isto é, as obras; seu emprego atrelava-se à crença em supostas qualidades essenciais ao sexo e, com isso, impingiam à expressão conseqüências políticas. Por serem consideradas amadoras, tais artistas foram inscritas em espaços diferenciados nos textos, ocupando as notas de rodapé, as páginas finais dos livros, geralmente agrupando-as, coletivamente e em separado das apreciações mais pormenorizadas dos salões oficiais. Com isso, tais escritos que são partícipes da própria constituição da história da arte enquanto disciplina, contribuíram para a perpetuação e institucionalização de um lugar marginal para tais autoras dentro do campo artístico. O que ecoa ainda nos dias atuais.

Revendo o mito do amadorismo feminino: as mulheres nos salões

Um dos significados implícitos ao termo “amadorismo” era o de que para as mulheres a arte era um passatempo, algo feito, como foi dito, “nas horas de repouso”, isto é, de modo frívolo, assistemático, sem um empenho metódico como era o caso da prática artística profissional masculina. Entretanto, ao se observar a real participação das pintoras e escultoras brasileiras ao longo das exposições gerais realizadas durante o século XIX e primeiras décadas do século XX, percebe-se que muitas delas demonstraram uma notável constância, evidenciando investimentos nas próprias carreiras equiparáveis aos dos artistas homens.

As exposições gerais de belas artes constituíram o principal evento artístico realizado durante a vigência da Imperial Academia de Belas Artes (1826-1890). A primeira realizou-se durante a gestão de Felix Emile Taunay, em 1840, a partir daí efetivando-se ao final de cada ano. Tais mostras eram a grande ocasião para exibição dos trabalhos realizados em âmbito nacional, tanto pelos alunos da IABA quanto daqueles que estavam “fora” da instituição, na medida em que as inscrições eram abertas a todos os interessados[3]. Mas, além de representarem uma significativa vitrine da produção nacional, eram ainda o momento central de estabelecimento e de consagração de carreiras. Isso porque eram nesses eventos que as premiações eram outorgadas pelos júris acadêmicos, investidos do poder simbólico de distinguirem e notabilizarem as futuras reputações artísticas. Por tais motivos, a participação em tais eventos era um momento de acentuada relevância para os e as artistas.

As primeiras participações femininas ocorrem já em 1844. Naquele ano, foram duas pintoras a mostrarem suas obras, Mme. Emma Gabrielle Pieltegrin Gros de Prangey, que compareceu com 5 telas, enquanto Mme. Saint de Julian enviou 2. No ano seguinte verificou-se um aumento no continguente, passando para 6 o número de artistas, embora tal crescimento não tenha se mantido de modo constante. Em praticamente todas as exposições realizadas ao longo do período imperial notou-se a presença feminina, mesmo que discreta (2 em1847; 1 em 1848; 1 em 1850; 1 em1852; 4 em 1859; 3 em 1860; 7 em 1864; 1 em 1866; 5 em 1867; 4 em 1868; 3 em 1870; 4 em 1872; 3 em 1875; 2 em 1876; 10 em 1879; 5 em 1884[4]. Praticamente todas as artistas dedicaram-se à pintura e ao desenho, não se localizando, até o período republicano, a existência de escultoras. No que tange às modalidades artísticas predominantes ressaltam-se os retratos, as naturazas-mortas, as cópias de telas consagradas ou de desenhos de obras canônicas; paisagens (em óleo e, sobretudo, pastéis) e ainda telas, ou cópia de telas, religiosas. As pinturas históricas, gênero máximo dentro da hierarquia acadêmica, não parecem ter sido objeto das práticas artísticas femininas (Simioni, 2003).

Mesmo durante o período imperial, quando as portas da AIBA estavam cerradas para as mulheres, tais artistas ousaram participar do evento central do campo artístico acadêmico. Algumas delas o fizeram com sistematicidade, como é o caso da já citada sra. Emma Gabriele Pieltegrin Gros de Prangey que compareceu 4 vezes a tais mostras (em 1844,1845,1847 e 1848). Outras, como Julia Labourdonais Gonçalves Roque expôs apenas duas vezes, em 1870 e 1879, mas distinguindo-se em ambas, primeiramente com a menção honrosa e posteriormente com a medalha de prata. Lauréis foram conferidos também a: Áurea de Melo (menção honrosa em 1859); Elvira Airosa (menção honrosa em 1876); Guilhermina Tollstadius (menção honrosa em 1879 e 1884); Josefina Houssay (menção honrosa em 1864); Julieta Adelaide dos Santos (menção honrosa em 1884); Julieta Guimarães (medalha de prata em 1870); Abigail de Andrade (primeira medalha de ouro em 1884); Luisa Hosxe (medalha de prata em 1867); Matilde de Bosísio (menção honrosa em 1867); Raquel Hadock Lobo (menção honrosa em 1879) e a mais condecorada artista do período: Joana Teresa de Carvalho (1859, 1860, 1867, 1872, 1875) que obteve a medalha de prata e a segunda medalha de ouro.

O número de expositoras cresceu consideravelmente com a chegada da República. Em 1890, entre 62 participantes apenas 3 eram do sexo feminino; dez anos mais tarde o número passava para 20 em um total de 50 expositores, assinalando uma variação de 4,8% para 40% em sua representação. A partir da virada do século o número absoluto de artistas femininos oscilou entre 15 e 30, enquanto o relativo alterou entre 16 e 31% dos participantes nos salões (Simioni, 2004: 15-19). Em parte tal aumento deveu-se à abertura da Academia para as alunas do sexo feminino, ocorrida em 1892. Desde aquele momento as matrículas femininas na instituição, particularmente nos cursos de livre-freqüência, fizeram-se notar: eram 13 entre os 44 matriculados em 1892; 9 entre 65 em 1893; 7 entre 62 em 1894; 21 entre 120 em 1895 e 17 entre 84 em 1896, tendência que permanece nos anos posteriores (Simioni, 2004: 57-86).

A conjuntura institucional inaugurada com a República contribuiu para a viabilização da formação artística feminina nos moldes dominantes, o que se traduziu em uma ampliação da participação feminina nos salões, posto que se passava a englobar as discípulas da ENBA. Mas como tais mudanças estruturais afetaram as percepções e os juízos dos críticos? Ou, colocado de uma outra maneira, era ainda possível rotular a produção feminina por meio da categoria de amadoras, a qual pressupunha objetivamente uma situação de exclusão institucional?

O fato de que algumas dessas artistas tenham participado das mostras reiteradamente[5], parece-me contrastar significativamente com o “mito” de que para as artistas do sexo feminino a empreitada artística era um simples passatempo, um modo de ocupar as horas ociosas de suas vidas, usualmente dedicadas às confortáveis tarefas domésticas, tal como os escritos dos críticos sugeriam até então. A participação sistemática nos salões envolvia um árduo trabalho, que cobrava uma dedicação rigorosa à elaboração de obras novas, de pesquisas artísticas metódicas, na medida em que, anualmente, tais concorrentes precisavam submeter-se ao crivo dos jurados. Nada mais distante das representações subjacentes ao amadorismo como condição feminina.

As conquistas institucionais e as freqüentes participações femininas acarretaram paulatinas transformações na imagem das mulheres artistas. A palavra “amadora” praticamente desapareceu dos escritos de Gonzaga Duque em seu segundo livro, Contemporâneos, publicado em 1929, como coletânea de críticas sobre exposições realizadas em inícios do século XX. As artistas foram arroladas no mesmo espaço simbólico que os homens, a partir das modalidades artísticas a que se dedicaram (pintura, desenho e escultura) e não de sua condição de gênero, o que significava um notável avanço quanto ao reconhecimento de suas habilidades “profissionais”.

Mas equivale isso a afirmar que as conquistas institucionais foram suficientes para alterarem os julgamentos valorativos perpassados pelas assimetrias de gênero? Se sim, porque, até hoje, tão pouco sabemos sobre as artistas atuantes na virada do século XIX para o século XX, naqueles anos iniciais de República? Novamente, é difícil apontarmos uma única causa para o obscurecimento das trajetórias femininas, até mesmo porque, pesquisas mais aprofundadas evidenciam as particularidades de seus percursos biográficos, irredutíveis a explicações generalizantes. Mas valeria a pena ressaltar um dos aspectos centrais para o (re)conhecimento da participação feminina na história da arte brasileira: o da necessidade de se realizar uma análise que seja, concomitantemente, de recuperação de fontes e crítica às mesmas.

A operação de “resgate” de produtoras esquecidas – que tem o mérito de ampliar o conhecimento disponível sobre as artistas e suas produções – é em si insuficiente. Primeiramente porque, como várias autoras apontaram, deixa incólume o cânon que perpassa a historiografia da arte e que, por suas hierarquias subreptícias, foi responsável pelo obscurecimento e desvalorização das produções femininas (Pollock, 1994b). E, em segundo lugar, como procurei problematizar ao longo deste artigo, as fontes que dispomos para a escrita da história não podem ser tomadas como dados objetivos. As apreciações dos críticos, as matérias veiculadas por jornais de época, as coleções e exposições que caracterizam as práticas museais e mesmo o modo com que os arquivos selecionam e guardam determinados documentos (e não outros) são o resultado da cristalização de reiteradas práticas artísticas, impregnadas por valores de época. Assim, a subrepresentação das artistas mulheres na história da arte não é um indicador pacífico de sua parca relevância ou de sua inexistência concreta, mas sim um sinal de que as práticas culturais institucionalizadas por meio das fontes com que usualmente contamos, estão permeadas por valores que deixam efeitos, de poder, concretos.

A história da arte, cujo caminho, inegavelmente fecundo e controverso de perceber-se como um saber tão autônomo quanto seus próprios objetos, a não atentar para tal dimensão, corre o risco de enclausurar-se em uma redoma, bela e competente, porém, isolada das práticas, muitas vezes questionáveis, que a ajudaram a consolidar-se enquanto tal. As “intervenções feministas” na história da arte (Pollock, 1994 b; Broude, 1982), ao provocarem deslocamentos de objetos e focos, bem como ao cobrarem uma postura crítica com relação às balizas que sustentam a própria construção e institucionalização da disciplina, constituem aqueles ruídos incômodos e necessários para novos reencontros com o passado, os quais assinalam práticas menos excludentes para o futuro.  

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Nota biográfica

Ana Paula Cavalcanti Simioni. Mestre e Doutora em Sociologia pela FFLCH-USP. Docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas na área de arte e poder, com ênfase nas relações entre história social da arte e gênero. Dedica-se particularmente à recuperação e compreensão das trajetórias e produções das artistas brasileiras atuantes na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX.


 

[1] Com efeito, ao longo do texto dedicado à participação dos “amadores” na Exposição de 1884, Felix Ferreira concentra-se nas produções dos seguintes artistas: Abigail de Andrade, Guilhermina Tollstadius, sra. D. C. F Machado, Julieta Adelaide dos Santos, Baronesa de Araújo Godim, Rosa Meryss e, um único homem: Sr. França Jr. A este respeito ver: Felix Ferriera, op cit, “Exposição Geral de Belas Artes, 1884-VII. Amadores e Alunos”.

[2] A que se considerar, porém, que algumas artistas cursaram ateliês particulares, recebendo lições dos mestres consagrados pelo próprio sistema acadêmico, o que poderia atenuar a desigualdade da formação artística recebida.

[3]  É importante ressaltar as inscrições para os envios às exposições gerais eram facultadas a todos, e não apenas aos alunos da instituição. Com isso as mulheres artistas, excluídas da possibilidade de acessarem a escola oficial, podiam, todavia, participar das exposições organizadas pela Academia .

[4] Dados extraídos do livro de Carlos Maciel Levy, 1990.

[5]  Alguns exemplos de artistas que participaram constantemente dos salões entre 1890 e 1922:  a mais fecunda foi Georgina Albuquerque, notabilizando 16 presenças; seguida por Irene Ribeiro França, com suas 12 participações;  Nicolina Vaz Assis Pinto do Couto e Regina Veiga e Adélia Marques Saldanha participaram 11 vezes dos salões no período discriminado; as irmãs aquarelistas Anna da Cunha Vasco e Maria da Cunha Vasco foram 8 vezes aceitas no evento, tal como Silvia Meyer, após elas, com 7 participações estiveram Beatriz Pompeu de Carmargo, Dinorá Enéas e Fédora do Rego Monteiro. Dados obtidos por meio de pesquisa realizada nos catálogos dos Salões Nacionais de Belas Artes, entre 1890 e 1922 (Simioni, 2004: apêndice 1).

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007