Prefácio
Esta é uma leitura
indispensável
tanto
para os que
trabalham com
relações
de gênero como
para os que
querem se iniciar nesta
área
difícil e
fascinante. A autora é dotada de
sensibilidade arguta para o trabalho de interpretação
histórica que
persegue. Imbuída da convicção de que somente o histórico desmistifica
preconceitos, a autora nos
apresenta uma pesquisa minuciosa
e sofisticadamente articulada, fundamentando-se na
documentação de experiências de vida
das mulheres, que
aconteceram, no mais das vezes, num processo recôndito e não
determinante da
história. Essas experiências
pertencem ao seu lugar e tempo, porque são singulares
e têm, acima de
tudo, a especificidade histórica aliada ao tempo,
às mudanças e ao devir. Não se revelam, a não
ser a um olhar crítico, capaz de enxergar nas entrelinhas o que
passou despercebido
e nunca foi registrado na
memória da sociedade
mais ampla
a que pertencem .
Infelizmente, o que têm
permanência
na memória são
os preconceitos e as representações do imaginário
e da cultura,
sempre fundamentados
em valores misóginos, enfim,
os conceitos
genéricos
que oprimem as
mulheres. Beth Rago escolheu um caminho sinuoso
e cheio de
peripécias, dificultado por
fontes
lacunares, em
busca
de pistas e
indícios
os mais dispersos
sobre a vida
de duas mulheres
revoltadas e lutadoras, surpreendentemente originais
e corajosas para
seu tempo.
Trata-se de uma pesquisa
que envolve duas
mulheres,
mãe e filha,
nascidas na Bahia, no
período
que vai de 1836 a 1931,
que
hoje se nos
afiguram casos
fascinantes,
por terem vivido
sob a luz
de uma extraordinária consciência do que
significava ter nascido
mulher
na sociedade de sua
época. Suas trajetórias foram diferentes,
pois Francisca Rosa,
a mãe, nasceu em
Cachoeira, no
tempo
da luz de
querosene
e começou a escrever depois
dos filhos já
criados, aos quarenta anos de idade, quando se mudou para Salvador. Atuou como jornalista e escritora, empolgada em
trabalhar sua
revolta contra
a ignorância a que
ficavam relegadas as criaturas do seu sexo. Sua filha
Francisca Praguer Fróes formou-se na Faculdade de Medicina de Salvador em 1893 e dedicou sua
vida como
ginecologista,
obstetra
e escritora, a demandar os
direitos
à saúde das
mulheres
infectadas por
doenças
sexualmente transmissíveis. Militou como médica e jornalista nos movimentos feministas
de seu tempo,
reclamando por
leis
que restringissem o
poder
excessivo dos maridos
sobre as esposas,
contra
o estado de
tutela
a que ficavam reduzidas as mulheres casadas, vale dizer, por reformas urgentes do Código
Civil de 1916. As
mulheres
deveriam ter direito
à educação e a
trabalhos
ou carreiras
que as tornassem
independentes
dos maridos. Deveriam
atuar
na sociedade e na política
para poderem introduzir mudanças na vida
íntima e familiar,
das quais os
políticos
responsáveis
pelos
novos tempos
republicanos descuidaram completamente,
continuando imersos no autoritarismo de antigos
senhores de
escravos.
O empenho persistente da historiadora em
reunir dados que explicassem tais
trajetórias, foi estimulado pela vontade de
resgatar suas
experiências do
silêncio
e do esquecimento,
certa
de quanto suas
vidas foram
expressões
importantes de
resistência
cultural. Ao viverem sentimentos de revolta contra
diversas formas de
opressão,
como a falta
de trabalho e de espaço
público para
as mulheres dos
fins
do século XIX e primeiras décadas do século
XX, abriram caminhos
para
as gerações
seguintes,
pois inauguraram novas
estratégias de
luta
contra a autoridade
despótica de homens
pouco
atentos ao
bem-estar
de sua prole.
Francisca Praguer Fróes trabalhou em prol de políticas
públicas voltadas para a
educação
feminina, lutando
em
nome de direitos
reprodutivos e de
direitos
femininos à saúde,
desde 1893 a 1931,
ano
em que
faleceu.
Com impecável consciência feminista,
a historiadora foi urdindo, no correr deste trabalho, a trama social e política
que envolveu a
vida
dessas mulheres.
Rigorosamente
atenta às
conjunturas
temporais que
demarcaram essas duas gerações de mulheres, a historiadora concentrou-se em relacionar pormenores,
arduamente coligidos do seu quotidiano,
aos processos
mais
amplos de urbanização, do abolicionismo, de inovações
de transporte,
como
as ferrovias e os
primeiros
bondes, da
iluminação
da cidade, da
política
republicana, tanto
quanto
dos novos
conhecimentos
científicos importados do exterior.
A mãe, Francisca
Rosa, nasceu em Cachoeira, em 1836. O pai
trabalhara no Recôncavo como administrador
de engenhos e acabou adquirindo uma propriedade de açúcar
mediana e um
número suficiente
de escravos para
tocar a lavoura.
Morreu cedo e a
viúva
passou a administrar
pessoalmente
o trabalho da lavoura,
auxiliada pela
jovem
filha que
se encarregou da contabilidade. Francisca
Rosa foi educada por professores
particulares e adquiriu, como autodidata
e leitora ávida,
conhecimentos
bastante amplos
para o meio social em que viveu. Aprendeu francês,
tinha uma boa
cultura
literária, admirava a crítica feminista
de Mary Wollstonecraft e do casal
Harriet e John Stuart Mill. Era contra o casamento e os enormes riscos contra a integridade
física e moral
com que
a vida conjugal ameaçava as mulheres. A historiadora fez uma
pesquisa
minuciosa da sociedade
e da mentalidade do
Recôncavo, a fim de
inserir
a família de Francisca Rosa entre as elites mais
medianas. Estudou o sistema de propriedade e também
dos dotes e das
estratégias
de casamento das elites
sempre voltadas para
recuperar, na geração
seguinte, o que
os direitos de
herança, estendidos a todos
os filhos, custava às propriedades
de cada família.
Não seria difícil
entender por que motivos
Francisca Rosa,
já
próxima dos trinta
anos, havia cogitado,
finalmente,
depois de muita
insistência do noivo,
em casar-se com
um jovem
engenheiro judeu,
estrangeiro,
croata,
certamente mais
educado e culto do
que
os possíveis
noivos
que as elites
locais poderiam
lhe
oferecer. Deixaria de lado
a sua formação
escravocrata para
alforriar escravos
e compartilhar com
seu marido
idéias liberais.
Além de trabalhar
na construção de ferrovias,
o engenheiro
croata
também realizou inúmeras reformas
modernizadoras na cidade de Salvador. É o que leva a historiadora a um
trabalho de história
das mentalidades para
situar o feminismo
de Francisca Rosa nas idéias renovadoras de sua
época, sementes
esparsas de inspiração
liberal,
mas também
positivista e cientificista.
É de se ressaltar o cuidado de Beth Rago em
matizar e
perseguir
as diferentes nuanças tanto das posições
feministas de
suas
personagens,
quanto
as distintas vertentes do pensamento eugenista da época.
Certamente por
isso é que
resultou deste trabalho um
amplo e
cuidadoso
estudo dos modos
de pensar de duas gerações
e de dois momentos
diferentes da sociedade
baiana e
brasileira.
Nunca é demais
realçar a importância do estudo
das relações
entre
gerações para
aprofundar a história
das relações de
gênero
e do pensamento
feminista.
Importa também
destacar
a hermenêutica abrangente e elucidativa, que
traçou do meio
intelectual
de Salvador na República
Velha e das
teorias
eugenistas vigentes num meio excessivamente conservador
de médicos
baianos
ligados à Faculdade de Medicina.
Ao estudar a formação
intelectual da
médica
Francisca Praguer Fróes, que se deu, em parte, graças à educação
que recebeu de
sua
mãe e, em
parte, ao
pensamento
eugenista de sua época,
resgatou os caminhos progressistas que
escolheu, bastante
avessos
aos preconceitos
raciais
do seu meio.
Embora trabalhasse na mesma escola e
escrevesse na mesma
revista
Gazeta
Médica
da Bahia, onde Nina Rodrigues
divulgava suas
teorias racistas, é de se
admirar que
os rumos da jovem
médica não
chegassem a se cruzar com os dele. Nunca em seus textos
Francisca Praguer Fróes sequer se referiu
ao destacado médico e antropólogo
baiano. Seus estudos seguiram a preocupação
higienista da época, porém
numa outra vertente,
que militava em
prol da cidadania
feminina ligada
à afirmação dos seus direitos reprodutivos
e ao saneamento dos
costumes
conjugais.
Alerta para os muitos obstáculos opostos
ao seu estudo
de medicina, desde
ter de ser acompanhada
diariamente às classes por um irmão, soube fazer seu caminho
enfrentando preconceitos de todo tipo, sem largar um momento de suas convicções
e de seus
projetos.
Como relatava para
um professor que havia se preocupado
com as dificuldades que
teria de enfrentar: “Mestre,
vou desassombradamente seguindo meu caminho, sem olhar para traz ou para os lados, completamente
indiferente aos
reparos
que por
ventura possa
despertar
a minha passagem.”
(cap. 2, p.31)
Neste trabalho minuciosamente elaborado, Beth Rago nos conta as dificuldades enfrentadas por
outras mulheres pioneiras do estudo universitário
e da medicina. Dificilmente, teria Francisca Praguer
conseguido fazer carreira
em qualquer
outra
especialidade
que não
a de obstetra.
Graças
à vivacidade das fontes
reunidas, podemos acompanhar os
primeiros
anos de sua
prática no Hospital Santa Isabel, que
pertencia à Faculdade de Medicina
e as péssimas condições de trabalho que
Francisca Praguer enfrentou. Por meio de suas anotações, acompanhamos os atendimentos que fazia às mulheres
mais pobres
de Salvador. A historiadora pesquisou
nos arquivos do hospital dados sobre as pacientes, moças muito
jovens, ex-escravas
em
sua maioria,
lavadeiras, costureiras, cozinheiras,
muitas delas com
sífilis,
tuberculose ou
distúrbios
mentais.
Cerca de 42% das
mulheres, nessa época, morriam
antes
dos 36 anos de
idade. (cap. 2, p. 36)
Nos prontuários estavam registrados os parcos bens com que se
internavam e também
significativamente
acompanhados da anotação ”nenhuma roupa para a criança”.(cap. 2, p.41)
Beth Rago acompanhou sua prática e suas publicações que
deixavam bem clara
a sua intenção
de atuar entre
seus pares,
de igual para
igual. Somente
em 1911, foi inaugurada a Maternidade Climério de
Oliveira,
com melhores
condições de atender
as mulheres grávidas.
A autora nos
informa com
pormenores
as práticas médicas da
época, e, em
particular, as dificuldades
de se introduzirem inovações na belle époque de
Salvador, onde
os médicos e as
elites
se mantiveram aferrados aos costumes do passado. A política
saneadora e higienizadora de combate à sífilis, ao alcoolismo
e às epidemias caminhou
para a institucionalização de uma polícia
dos costumes, por volta de 1916. A moral
da época culpava o corpo
feminino. Francisca Praguer, por sua vez, voltava-se contra
a falta de moderação e a deslealdade dos maridos
com relação
a seus deveres
conjugais e em
prol
da obrigatoriedade de um exame pré-nupcial para proteger as jovens
das doenças
sexuais.
A historiadora discute detalhadamente as
contribuições
de Francisca Praguer Fróes à obstetrícia e ao tratamento de doenças
venéreas, aprofundando o estudo do discurso médico
da época. Faz o mesmo
empreendimento
quanto
à militância feminista da jovem médica,
acompanhando suas
atuações
e suas
intervenções,
mediante a construção
de um amplo
panorama dos feminismos
de seu tempo.
A autora nos brinda
com
uma teia elaborada de discursos e contra-discursos de
revistas
feministas e
mulheres
conscientizadas e atuantes, a fim de situar as diferenças e as nuanças do
pensamento
das duas Franciscas.
A última parte do livro acena com um verdadeiro
processo de conscientização das leitoras, na
medida
em que
as insere num universo multifacetado de informações sobre
as diversas tendências feministas, que
se alternavam nas cidades brasileiras, entre 1880 e 1930.Confronta
as críticas de Francisca Praguer aos maridos infiéis com
a postura mais
candente de Maria Lacerda de Moura, mineira,
que defendia o
amor plural
e o direito das
mulheres
de terem e criarem filhos fora do casamento. Da mesma forma, destaca as
idéias
de Francisca sobre a necessidade da emancipação
econômica das
mulheres, suas raízes,
em
correntes
feministas
do século XIX.
Além disso, nos
informa sobre as
críticas
que Francisca Praguer Fróes dirigia a
outras feministas
baianas,
como Amélia Rodrigues, Anna Ribeiro e Edith Mendes da Gama
e Abreu, que permaneciam
presas
à Igreja Católica,
advogando uma militância das mulheres,
restrita a associações
filantrópicas da Igreja.
(cap. 4, p.28) Francisca
também fez campanha contra
o casamento e em
prol do divórcio
juntamente com
muitas feministas de outras regiões do Brasil, como
Josefina Álvares de Azevedo, a advogada
Myrtes de Campos, a escritora baiana Inês Sabino Pinho
Maia,
abolicionista, a romancista
Júlia Lopes de Almeida, Emília Moncorvo
Bandeira
de Melo (cujo
pseudônimo
era Carmem Dolores) e Andradina América
Andrada de Oliveira, editora de um jornal no Rio Grande do Sul. Em 1931, Francisca Praguer Fróes foi parte integrante
do núcleo
formador
da Federação
Baiana
pelo Progresso
Feminino, passando a
militar
ao lado de Bertha Lutz. A luta pelo direito ao voto
e à participação política das mulheres reuniu pessoas
das mais diversas
correntes
feministas, assim
como de
diferentes
concepções de
vida
e variadas inserções na
sociedade.
O cuidado em nuançar
a posição de mãe
e filha nas lutas
feministas de
suas
épocas e em
mostrar a diversidade
de posições adotadas enriquece este livro inovador, extraordinariamente bem
documentado, cuja
leitura
prazerosa envolve os leitores numa profusão de
experiências
e, sobretudo, de modos
diferentes de
problematizar
a inserção das
mulheres
na sociedade baiana
e brasileira das primeiras décadas do século
XX. Ficamos enriquecidas por nos enfronharmos nas
experiências
de vida inovadora das duas Franciscas e,
principalmente,
mais
informadas da diversidade de vanguardas de conhecimento
abertas pelos
feminismos
contemporâneos,
que a autora expõe e discute. Este livro de
Beth Rago nos
deixa
mais esclarecidas
sobre nossas próprias inserções
nas lutas
feministas
de hoje.
São Paulo, 6 de dezembro
de 2006
Maria Odila Leite
da Silva Dias
Autora de Quotidiano e Poder e
outros
estudos teóricos
feministas.
Professora titular de História do Brasil do Departamento
de História da FFLCH da USP,
aposentada
Professora associada
do Programa de
Pós-graduação
em História
da PUC-SP