labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro2007- juillet/décembre 2007

 

Heroínas de Celulose: uma Abordagem Interdisciplinar do Cinema de Animação

Liliane Machado

Resumo:

O artigo aborda o processo metodológico interdisciplinar para a análise dos filmes A Bela e A Fera, Mulan e Shrek. Articulam-se diferentes teorias, entre as quais a análise de discurso; os estudos feministas e de gênero; as teorias das representações sociais e de gênero. Observa-se que as mulheres são representadas de formas diversas. Assim, elegeram-se como categorias de análise aquelas referentes à inteligência/perspicácia e coragem; amor romântico e casamento. Destaca-se que as representações acerca das mulheres expressam tanto valores arcaicos — como o referente à “verdadeira mulher” —, quanto inovadores — como os que fazem eco às reivindicações feministas. Portanto, não são produtos que se restringem a repetir fórmulas e padrões; ao contrário, negociam com o público de forma que o resultado seja lúdico e prazeroso.

Palavras-chave: Metodologia; interdisciplinaridade; cinema; mulheres.

 

Meu propósito, neste artigo, é apresentar os procedimentos metodológicos que adotei na escrita de minha tese de doutorado—realizada no departamento de História da Universidade de Brasília—, a qual versa sobre a análise de filmes e desenhos animados. Considero-a uma experiência importante, já que me possibilitou o exercício da interdisciplinaridade que, eventualmente, é contestada por pesquisadores especialistas da comunicação, sob o argumento de que esta disciplina deve ser teorizada por comunicadores, de preferência atrelados a pós-graduações específicas da área. Discordo, primeiramente, porque a interface com outras áreas não desqualifica o trabalho dos comunicadores, e ainda porque, dado o avanço tecnológico das mídias e sua expansão a um número cada vez maior de usuários, urge ampliar nossos horizontes de análise. Mas, afinal, o que disciplinas como a História, por exemplo, tem a oferecer-nos?

De antemão, é preciso observar que o estudo da história passou, desde o surgimento da Escola dos Anais[2], por um processo de renovação quanto a seus métodos, objetos e fontes, levado a frente por pensadores como Ferro, Duby, Le Goff, Hutcheon, Fraisse, dentre muitos outros. De maneira bem resumida, poderíamos afirmar que houve uma lenta e contínua insubordinação desses historiadores aos pressupostos positivistas que englobam noções de objetividade, neutralidade e imparcialidade, no que concerne à escrita da história. Ruíram certezas seculares e, em contrapartida, surgiram novas possibilidades de encaminhamentos de pesquisas.

O que se chama de realidade ganhou novos contornos, graças à inclusão de elementos como os sonhos, as fantasias, os medos, as angústias e as ações cotidianas — dentre as quais os lazeres. Acrescentaram-se novos objetos à pesquisa histórica, como as mulheres, os negros, as crianças dentre outros segmentos tradicionalmente excluídos da história oficial praticada até então. Para dar conta dessa realidade tão ampla, e ao mesmo tempo, sedutora e difícil de ser captada, os pesquisadores precisaram mirar além de suas próprias bases teóricas. Foram encampadas discussões perpetradas no seio de disciplinas como a geografia, a teoria literária, a antropologia, a geografia, dentre outras[3]. Surgiram novas teorias, como a dos imaginários e das representações sociais e do cotidiano. Reinventou-se a História: novos métodos, novas abordagens, novas possibilidades de escrita.

Portanto, não há dúvidas de que, quando falamos atualmente de um arsenal teórico fornecido pela história, referimo-nos a uma gama ampla de conhecimentos e perspectivas. Elas possibilitaram-me compor um quadro multidisciplinar, o qual inclui três eixos: estudos feministas e de gênero; teorias do imaginário e das representações sociais e análise de discurso, vertente francesa.

Escolhi essas teorias para analisar os seguintes produtos: os filmes de animação A Bela e A Fera; Mulan e Shrek com suas respectivas continuações — A Bela e A Fera: O Natal Encantado; Mulan II: A Lenda Continua e Shrek II — e os desenhos animados As Meninas Superpoderosas e Três Espiãs Demais. Elegi um corpus que contempla duas mídias, cinema e televisão, que trabalham as imagens em movimento, portanto com uma linguagem próxima, ainda que articulando diferentes gramáticas visuais. O meu objetivo central era levantar e analisar as principais matrizes discursivas referentes aos filmes e desenhos escolhidos, buscando encontrar os sentidos que propiciam a construção dos gêneros.

Não há espaço suficiente neste artigo para abordar todos os produtos eleitos para compor as fontes da tese, por isso restringir-me-ei aos filmes de animação. O que chamou minha atenção para eles foi o fato de trabalharem com novas imagens acerca das mulheres. Por exemplo, a heroína de A Bela e A Fera, Bela, é corajosa, perspicaz, leitora assídua. Muito diferente do modelo tradicional de personagens femininas contidas em adaptações anteriores de contos de fadas, tais como Branca de Neve (de Branca de Neve e Os Sete Anões) ou Aurora (de A Bela Adormecida), ambas frágeis donzelas, à espera de um príncipe que as salve de maldições e morte iminente.

Mulan é uma personagem singular, uma camponesa que abandona a família para transformar-se em uma heroína de guerra, posteriormente reconhecida pelo imperador da China como uma estrategista, uma possível conselheira da corte, caso não tivesse recusado o convite para viver entre os nobres signatários do poder.

Fiona, por sua vez, a heroína de Shrek, guarda características de uma modernidade desconcertante, já que é despojada, bem humorada, intolerante para com a mediocridade e praticante de artes marciais. Seus talentos como lutadora livram-na e a seus companheiros de perseguidores e eventuais assaltantes.

  Entretanto, essas mesmas heroínas também têm características que poderíamos identificar como pertencentes às da verdadeira mulher - noção criada por feministas para explicar a idéia de que a mulher é um ser unívoco, dotado de uma essência biológica que a levaria a adotar atitudes específicas e recorrentes. Fiona, Bela e Mulan são belíssimas, românticas e casadoiras. Também são bondosas, meigas e carinhosas no trato com velhos, crianças e animais domésticos.

Estava diante, portanto, de múltiplas imagens, o que, a meu ver, não permitia uma análise precipitada dos estereótipos trabalhados pela indústria cultural. Não se tratava meramente de uma repetição de clichês, como Horkheimer e Adorno[4] classificaram os elementos narrativos recorrentes utilizados nos produtos artísticos feitos em escala industrial. Não seguiria a cartilha de análise oferecida pelos frankfurtianos, mesmo sem desconsiderar o fato de que a lógica da produção em série — obtida por meio da reprodução das cópias das obras — e a intenção de obter sucesso comercial são características inquestionáveis dos produtos. Entretanto, se parasse por aí, cairia na armadilha dos conceitos fetiches[5].

Generalizar as características das heroínas e descartar a importância simbólica das imagens trabalhadas era o caminho mais fácil a ser trilhado, entretanto, insuficiente para responder a indagações específicas, tais como: De que maneiras a mídia constrói o gênero feminino? O que ela mais valoriza? Por quê? Haveria um propósito nas discrepâncias sobre as formas de representação das mulheres?

Partia, assim, do princípio de que os gêneros, como afirma Lauretis (1994, p. 208), não são um dado a priori, fornecido pela natureza: e sim, produto de diferentes tecnologias, inclusive o cinema. No artigo “A Tecnologia do Gênero”, a autora (1994, pp.208/209) propõe questões importantes para que pensemos sobre o processo de engendranento: gênero é uma representação, a representação do gênero é a sua construção, a construção do gênero continua em andamento, a construção do gênero também se faz por meio de sua construção. Assim, propus-me a compreender como o cinema e a TV representam os gêneros em produtos dirigidos prioritariamente às crianças.

Paralelamente, surgiam outras questões: Como tratar os objetos que elegi para a análise? Eles realmente expressariam uma ruptura na representação acerca das mulheres em relação a obras anteriores? Ademais, filmes e desenhos animados podem ser considerados objetos importantes para o historiador?

A noção de ruptura

Começo pela questão referente à idéia de que os produtos que escolhi para análise — todos realizados a partir dos anos 90 do século XX e nos primeiros anos deste século — podem ser tomados como uma ruptura na forma de as mídias representarem as meninas/garotas/mulheres. A idéia de ruptura dos discursos é uma criação de Michel Foucault (1995, p. 04), que descarta as vastas unidades de tempo como princípio norteador para o historiador. Segundo ele, “é preciso renunciar a todos os temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso (...) é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos”. (Foucault, 1995:28).

Abre-se a perspectiva de uma escrita dinâmica da história, que adquire uma faceta singularmente ágil, identificada — como no caso da minha pesquisa — com a história do presente ou do imediato, como a define Jean de la Couture[6]. É uma história que trata de assuntos que estão ocorrendo no nosso tempo, permitindo-nos vivenciá-la e experimentá-la como a nossa história, fruto de nossas indagações e de nossas preocupações.

Foucault foi um dos grandes articuladores das mudanças ocorridas no seio da história. Em uma das críticas que fez a história tradicional afirmou:

Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos – decisões, acidentes, iniciativas, descobertas – o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história. (Foucault, 1995: 09/10).

O que me interessou nas obras escolhidas foi a percepção de que os discursos acerca das mulheres apresentavam uma descontinuidade do ponto de vista representacional, o que não significa afirmar que se registraria um rompimento radical ou mesmo uma guinada espetacular, relativos, por exemplo, a uma nova ordem na representação do sistema de sexo-gênero, o qual, segundo Lauretis, “é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social, etc.) a indivíduos dentro da sociedade”. (Lauretis, 1994:212).

Não se tratava de um filme ou de um desenho isolados, mas de vários, realizados em um período de tempo próximo e destinados a diferentes veículos (além da TV e do cinema, verifiquei o fenômeno ocorrer também nos quadrinhos, entre os quais a revista Witch, de origem italiana e muito popular entre as crianças acima de dez anos), e produzidos em diferentes continentes. Dessa forma, ao invés de tentar diminuir a importância do descontínuo, valorizei-o, destaquei-o.

Considerando, portanto, as possibilidades oferecidas pela história do presente bem como a noção do descontínuo, resta observar até que ponto é válida, sob a perspectiva da epistemologia da história ou da comunicação, a escolha de objetos como desenhos e filmes, na busca de compreender como se articulam as significações imaginárias. As teorias dos imaginários e das representações sociais, ambas intimamente ligadas e interdependentes, indicam a existência de uma realidade ampla, na qual os desejos, os sonhos, as realizações políticas e as questões econômicas, são igualmente importantes para a compreensão da dimensão social. Tal visão é fruto de um lento e gradativo trabalho de historiadores, antropólogos e sociólogos, para romper com o império da racionalidade.

A historiadora feminista Navarro-Swain observa:

“não mais se visa encontrar o âmago do real, a essência da natureza, mas compreende-se a realidade em diferentes níveis de concretude, em dimensões diversas não excludentes, ao contrário, constitutivas do real como um todo, em gradações não hierarquizadas”. (Navarro-Swain, 1994, p.45).

Investigar a realidade, sem considerar a relação que as pessoas estabelecem com filmes, novelas, desenhos e revistas preferidos, é destituir a realidade de uma parcela importante, quiçá fundamental, visto que o imaginário midiático integra concretamente a vida da pessoa, principalmente a habitante dos centros urbanos, de uma forma intensa e muito importante do ponto de vista psíquico.

Pode-se afirmar, portanto, que o imaginário é dinâmico, contém diversas realidades, não se confunde com imaginação, ainda que a contenha, e pode ser apreendido nas representações que enseja. Baczko e Navarro-Swain[7] afirmam que os imaginários contêm representações que, ao serem identificadas, permitem ao pesquisador adentrar o funcionamento e a manifestação do mesmo.

Foi essa estratégia que segui para captar o imaginário midiático, referente às meninas/garotas/mulheres. Busquei identificar as imagens que apareciam com mais freqüência em minhas fontes, selecionando-as por categorias. Jodelet define as representações sociais como imagens, suportes mentais em nossa busca por nos relacionarmos com a realidade. Tentamos apreender e entender o mundo por meio de representações, que não são exatamente as coisas elas mesmas, mas significações que atribuímos às coisas representadas.

As representações sociais, segundo Jodelet, circulam “nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em organizações materiais e espaciais” (Jodelet, 2001, p.18). A valorização das mídias como espaço de circulação e constante atualização das representações é realçada por Navarro-Swain. Segundo ela,

o domínio da comunicação, a mídia, em nossa época, são um lócus privilegiado de produção do imaginário social e seu corolário, o poder, em suas mais diferentes modalidades – jornais, rádio, televisão, vídeo, cinema, música, etc. -, criando todo tipo de representação/imagem/sentidos, reelaborando ou ressemantizando enunciados, ou introduzindo novos valores/costumes/esperanças/ideais. (Navarro-Swain, 1994:  56/57).

Discurso: palco de disputas de poderes

Elegi diferentes categorias de representações presentes nos filmes de animação, privilegiando, de acordo com o objetivo que traçara inicialmente, aquelas referentes às mulheres. Destaco as relativas ao amor romântico, ao casamento e às noções de coragem/heroísmo/perspicácia. Eleitas as matrizes, passei à realização da análise de discurso, vertente francesa, articulando-a com os estudos feministas e de gênero, rumo ao objetivo final: compreender o processo de construção dos gêneros.

 A análise de discurso prioriza a materialidade dos discursos, sem se importar quanto a possíveis sentidos ocultos ou subliminares. Detectar e destacar os principais temas abordados não indica, todavia, uma tarefa de mera classificação. Dessa forma, um dos meus objetivos principais foi apontar as condições de possibilidade de determinadas representações, e não de outras. Tal questão suscita a necessidade de uma abordagem histórica acerca da circulação dos enunciados. Esta é justamente uma das características principais da AD (forma abreviada para a vertente francesa da análise de discurso): estabelecer que relação os enunciados mantêm com a época histórica à qual pertencem, ou seja, suas condições de produção.

Maingueneau (2002:12) afirma que é impossível dissociar a organização textual e a situação da comunicação. Ainda segundo ele, (Maingueneau, 1997: 13/14) é preciso considerar que os textos são produzidos no quadro de instituições que restringem a enunciação e nos quais se cristalizam conflitos históricos e sociais. Dessa forma, filmes e desenhos ganham uma dimensão simbólica ampla, já que são apreendidos como repletos de valores, normas e ideais de uma dada sociedade. Em outras palavras, são testemunhos de uma época, e analisá-los possibilita inteirar-nos do que mais se valoriza ou, ao contrário, do que se menospreza. Permite-nos compreender as classificações sobre o certo e o errado, o belo e o feio, o desejável e o desprezível, sobre o que é ser uma mulher e o que é ser um homem.

Essa idéia também é reforçada pelo fato de que o enunciador é, na visão da AD, uma posição substituível. A visão romântica de autoria é deixada de lado, para que sobressaia a de uma função vazia. Tal idéia foi fortemente influenciada por Foucault. Para ele:

o sujeito do enunciado é a posição absolutamente neutra, indiferente ao tempo, ao espaço, às circunstâncias, idêntica em qualquer sistema lingüístico, em qualquer código de escrita ou de simbolização, e que pode ser ocupada por qualquer indivíduo, para afirmar tal proposição. (Foucault, 1995:107).

Por fim, também é preciso lembrar que os discursos são um palco de lutas e disputas de poderes. Segundo Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz a luta ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. (Foucault, 1996:10). Diante disso, o autor observa que há uma ordem que rege os discursos, impedindo-se que qualquer um fale o que quer, como quer, quando quer.

Romance e matrimônio

A matriz do amor romântico aparece nos seis filmes que analiso. Restringir-me-ei, neste artigo, somente às referentes aos filmes originais, sem deter-me nas seqüências, já que não haveria espaço suficiente. De um modo geral, as personagens femininas empunham a bandeira do romantismo em situações diversas, como na guerra ou quando são feitas prisioneiras, tornando-se autênticas guardiãs do sentimento.

Sem dúvidas, trata-se de um tema grandemente valorizado, principalmente no caso de A Bela e A Fera, graças a uma série de cenas específicas, compostas de cenários românticos (como um jantar à luz de velas, uma conversa no jardim, à noite, sob o luar, ou ainda por um piquenique realizado em um campo coberto de neve), pela trilha sonora (cujas canções enaltecem o amor) e por jogos de câmera e enquadramentos (que realçam a aproximação que se estabelece entre os namorados).

O conflito central de A Bela e A Fera repete-se nas demais obras: o casal de protagonistas trava contato, apaixona-se, entretanto é impedido de vivenciar o sentimento avassalador que sentem um pelo outro. Destaco duas cenas de A Bela e A Fera (dentre as várias encontradas), para analisar como o amor é um objeto de desejo valorizado e acalentado pela heroína.

A primeira mostra Bela andando pela aldeia onde mora, imersa em hábitos cotidianos – comprar pão, pular corda com a s crianças, ir à livraria e, por fim, abrir um livro e lê-lo, esquecendo-se de tudo ao redor. Neste momento, ela está sentada à beira de uma fonte, rodeada de ovelhas e carneiros. A câmera aproxima-se do livro revelando em primeiro plano a figura de um nobre casal de namorados. Bela começa a cantar, como se explicasse aos animais à sua volta o que acontece na história:

Bela: Oh!

Mas que lindo quadro quando eles se encontram no jardim

É o príncipe encantado

E ela só descobre quem ele é

Quase no fim!

O romantismo da cena literária contagia Bela, pois seu olhar torna-se sonhador e distante. A figura do príncipe é um ícone do amor eterno, verdadeiro, o qual, por sua vez, remete ao casamento, ao lar e à maternidade, representações tradicionais acerca das mulheres. A imagem da mulher que lê — culta, inteligente e capaz de tirar conclusões por sua própria conta — está intimamente associada à de uma garota que aprecia romances e que sonha vivenciá-los.

Esta mesma associação ocorrerá em duas outras cenas do filme: quando a Fera oferece de presente à Bela a biblioteca do castelo — um cômodo suntuoso, de pé direito altíssimo, e coberto de livros do chão ao teto —, o que ocorre justamente no momento em que os dois se apaixonam e, também, quando Bela lê para a Fera Romeu e Julieta, de Shakespeare. Ler romances e apaixonar-se, conhecer histórias de casais famosos da literatura e, ao mesmo tempo, vivenciar um grande amor, originam uma rede discursiva nítida, que associa as mulheres ao amor. Para percebê-la, não são necessárias interpretações subliminares ou coisas do gênero, o sentido está impresso na materialidade discursiva da obra.

Possivelmente, a cena mais eloqüente no que concerne ao amor romântico ocorre durante um jantar à luz de velas, oferecido ao casal pelos serviçais do castelo. Todos os elementos de um clássico do gênero são utilizados: figurino de gala — ela está de longo, penteada, maquiada e laboriosamente ornada; enquanto ele está de fraque —, cenário luxuoso — mesa de refeição enfeitada por candelabros, salão ricamente decorado —, trilha sonora convidativa — violinos tocando ao redor do casal, que se põe a valsar — e um jogo de câmera que propicia a relativização da noção pragmática do espaço/tempo, lançando o casal em uma outra dimensão, na qual só existem os dois.

A canção de fundo é entoada pela governanta:

Madame Samovar:

Sentimentos são

Fáceis de mudar

Mesmo entre quem

Não vê que alguém

 Pode ser seu par.

(............................)

E numa estação

Como a primavera

Sentimentos são

Como uma canção

Para a Bela e a Fera

Sentimentos são

Como uma cançãu

Para a Bela e a Fera.[8]

As palavras “sentimentos”, “par”, “primavera” e “canção” são repetidas como um mantra, ligando o amor ao mundo idílico. O fato de uma voz feminina cantar a música é bastante expressivo, visto que o filme realça o forte sentimento que as mulheres nutrem pelo amor, como se isso fizesse parte de sua natureza, e não fosse fruto de uma construção sócio-histórica.

Reafirma-se, portanto, a noção de naturalização dos sexos, a qual está impregnada de misoginia, além de ser marcada por uma visão binária do mundo, na qual homens e mulheres são seres opostos e complementares. Segundo Gubin,

“Na distribuição de qualidades e de papéis respectivos, o homem se atribui, na partilha a razão, a força teórica e criativa, já a mulher a sensibilidade, a intuição e o instinto de re-produção, ou seja, a negação de toda a criação autônoma”.  (Gubin, 1998:11).

Navarro-swain, ao observar o processo de subjetivação[9] das mulheres afirma que:

como efeito, o processo de subjetivação das mulheres é imposto por um dispositivo amoroso, composto de traços anunciados como femininos, valores morais específicos: o dom de si, a abnegação, o cuidado com o outro, a realização amorosa como coroação de uma existência. O processo de subjetivação, portanto, não se faz em busca de si, senão do outro, em um quadro histórico que lhe dá significação. (Navarro-Swain, 2007:  12).

O cuidado com o outro e a abnegação, aos quais se refere a teórica feminista, podem ser observados em Bela, mas são mais relevantes no caso de Mulan. Guerreira disfarçada de homem, fugitiva que largou a família para proteger o pai e para obter honra e reconhecimento pessoal,Mulan, entretanto, não esquecerá seus atributos femininos, segundo o modelo essencialista imposto às mulheres: romântica e altruísta, principalmente quando se relaciona com Li Shang, o comandante da tropa à qual pertence e pelo qual se apaixona.

Observe que a primeira cena que deixa claro o amor de Mulan pelo capitão ocorre quando ela ouve Shang receber uma repreensão do conselheiro do rei. Ela quer ajudá-lo, mas não sabe como e, assim, diz-lhe palavras de incentivo:

Mulan: Mas, se quer saber, eu acho você um ótimo comandante!

No decorrer de todo o filme, a garota estará atenta às agruras vivenciadas por Li Shang e pronta para tentar amenizá-las, dizendo-lhe palavras de incentivo, como no diálogo reproduzido acima ou, por outro lado, salvando-o da morte iminente quando estão no campo de batalhas. Recebe como recompensa o desprezo e a humilhação — quando sua verdadeira identidade é revelada. Entretanto, diante de sua infinita bondade, ela o perdoa, ao receber, posteriormente, sua visita em casa, após o término da guerra. Como se nada houvesse acontecido, ela gentilmente lhe pergunta:

Mulan: Gostaria de ficar para o jantar?

O esquecimento das agruras que vivenciou, a infinita capacidade de perdoar, a bondade explícita (percebida não apenas nesse momento, mas em vários outros do filme) tornam Mulan — e as mulheres em geral — um símbolo da abnegação.

Fiona, a heroína de Shrek, também empunha a bandeira do amor romântico, o que pode ser observado principalmente no final do filme. A personagem sonha em livrar-se de uma maldição que a faz ter dupla identidade: linda princesa durante o dia; ogra obesa e feia à noite. Entretanto, interessa-se por Shrek, ironicamente um ogro gordo, feio e obeso, mas esperto e inteligente. Cria-se um conflito interno que ela, inicialmente, não sabe como solucionar. Por fim, o amor vence, e ela abdica do sonho de ser princesa, assumindo a identidade de ogra, para que possa ficar com o namorado. O momento é marcado pelo clássico diálogo de um casal apaixonado, como depreende-se do trecho reproduzido abaixo:

Shrek: Fiona!

Fiona: Sim Shrek?

Shrek: Eu te amo!

 Fiona: Mesmo?

Shrek: Mesmo, mesmo.

Fiona: Eu também te amo!

Segue-se um beijo. A seguir, ela flutua, enquanto que estrelas e raios refulgem ao redor de sua imagem. Ao fundo, ouve-se uma voz em off dizendo:

 “Até achar o beijo do amor verdadeiro e assumir a sua verdadeira forma”.

 Passado o transe, Shrek aproxima-se dela. e os dois conversam sobre o que houve:

Shrek: Fiona, Fiona, você está bem?

Fiona: Sim, eu estou, mas não estou conseguindo entender, eu deveria estar linda.

Shrek: Mas você está linda!

Apesar de o filme desautorizar, por meio do recurso à ironia, a necessidade de uma mulher ser bela para ser feliz, rompendo com um velho estereótipo sobre a aparência física adequada, também não se pode deixar de perceber que Fiona só poderia estar com o ogro, se assumisse a identidade dele. Rompe-se com o modelo de beleza e dignifica-se o status romântico.

Como se pôde observar, as personagens estão marcadas pelo amor romântico, matriz discursiva que está atrelada à do casamento, a qual também aparece nas três obras analisadas. O casamento é o passaporte definitivo para a solução dos problemas existenciais tanto da intelectual e da guerreira, quanto da praticante de artes marciais.

Observe-se, primeiramente, o caso de Bela. Várias cenas mostram que ela é uma personagem deslocada na pequena vila em que habita, já que os demais moradores consideram-na estranha, como se depreende da seguinte canção:

Homem: Esta garota é muito esquisita

O que será que há com ela?

Sonhadora criatura

Tem mania de leitura...

Mulher: É um enigma para nós a nossa Bela.[10]

As palavras grifadas repetem a noção de estranhamento advindo do fato de Bela ter hábitos como o da leitura, que a tornam uma garota incompreensível. Tornar-se á ainda mais esquisita quando recusar a proposta de casamento do homem mais valentão e sedutor da cidade, Gaston, a quem ela considera burro. Sentindo-se cada vez mais isolada, ela expressa sua vontade de conhecer outras paragens:

Bela: Eu quero

Mais que a vida no interior

Quero viver

Num mundo bem mais amplo

Com coisas lindas para ver!

E o que eu mais desejo ter

É alguém pra me entender!

Tenho tantas coisas pra fazer![11]

As primeiras palavras grifadas traduzem justamente o desejo de a personagem sair, evadir-se da mesquinharia que ronda sua vida, entretanto essa vontade é contraposta pelas frases seguintes, as quais sugerem que ela sairá, também, para buscar o amor de sua vida, o qual, ela intui que está além, habitando outras paragens. É no castelo encantado, ao lado da Fera, que Bela encontrará o seu lugar. A sensação de deslocamento que ela sentia dará lugar ao prazer de estar em companhia de alguém de aparência bizarra, que, entretanto, ela ama. Ao final, o amor de Bela transforma a fera horrenda em um príncipe encantado, exatamente como ela sonhara no início da história.

            O caso de Mulan é ainda mais grave do ponto de vista existencial, visto que ela não consegue realizar o maior desejo de sua família, casar-se, encontrar um bom par, passaporte para a honra e a dignidade na China medieval, retratada na obra realizada pelos estúdios Disney. Logo no início do filme, ela é meticulosamente banhada, vestida, penteada, maquiada e ornada, para ser apresentada aos pretendentes locais, todavia, devido à sua natureza impulsiva e ao comportamento desastrado, não consegue comportar-se bem. A casamenteira, figura que é a encarregada da apresentação das moças, vaticina-lhe um terrível futuro:

Casamenteira: Você é uma desgraça! Pode parecer uma noiva, mas você nunca trará à sua família honra.[12]

            A primeira palavra grifada sugere que a moça é desprezível, uma verdadeira praga, pois não é uma noiva adequada. A segunda sugere que sem casamento não há possibilidades de se adquirir status e, consequentemente, de honrar a família. Honra e casamento são indissociáveis. Carole Pateman, na obra O Contrato Sexual, observa que os costumes do século XIX deixaram opções mínimas para as mulheres, as quais tinham que se submeter ao casamento, caso quisessem dispor de dignidade e valor social. Segundo ela: “os costumes sociais destituíram as mulheres da oportunidade de ganharem o seu próprio sustento, de modo que o casamento era a sua única chance para elas terem uma vida decente”. (Pateman, 1993: 236).

A situação das mulheres, na atualidade, não parece muito diferente das do século XIX. Segundo Navarro-Swain:

Apesar das transformações ocorridas em algumas normas sociais (de maneira pontual e localizada) e devidas em grande parte aos feminismos, o casamento e a maternidade povoam os sonhos e o imaginário das mulheres que se consideram completas apenas se forem mães e esposas. (Navarro-Swain, 2000: 54).

            O filme, por sua vez, valoriza a instituição casamento, porquanto mostra a tristeza e a dor sentidas por Mulan, ao ser descartada. Ela está sozinha, cabisbaixa, anda lentamente e canta uma melodia que traduz seu sentimento interno, conforme se depreende da letra, que reproduzo abaixo:

 Mulan: Olhe bem

A perfeita esposa

Jamais vou ser

Ou perfeita filha

Quem é que está aqui?

Junto a mim, em meu ser

É a minha imagem?

Eu não sei dizer

Como vou desvendar

Quem sou eu?

Quando a imagem de quem sou

Vai se revelar?[13]

            Os versos da primeira estrofe deixam perceber que ela se sente inferiorizada, já que não corresponde à imagem da filha e da esposa perfeita. Em decorrência disso, na segunda e na terceira estrofes, questiona-se sobre sua real identidade. Essa é, sem dúvida, uma indagação existencial pertinente a uma pessoa jovem e que busca se afirmar. Por outro lado, não se pode ignorar que a resposta a essa indagação é dada quando Mulan recebe a visita de Li Shang, pretendente a noivo e salvação da honra familiar, visto que a vinda do noivo é mais comemorada pela família do que toda honra e glória que a guerreira acumulou fora de casa.

            O casamento como passaporte para a resolução dos problemas existenciais também é observado em Shrek, pois, somente após encontrar um amor e com ele casar-se, Fiona poderá ter uma existência normal, conforme ela própria revela ao Burro Falante, numa confissão marcada pela emoção e a dor:

Fiona: Fui posta numa torre à espera do dia em que meu verdadeiro amor viesse me salvar. E é por isso que eu tenho que me casar com Lorde Farquad amanhã, antes que o sol se ponha e ele me veja assim! (A princesa senta-se e começa a chorar).

            Vimos que o casamento, assim como o amor romântico, é muito valorizado nos filmes em questão, entretanto não se pode esquecer que essas obras também oferecem novas imagens acerca das mulheres, sobre as quais passo a discorrer na análise da matriz discursiva referente ao heroísmo/inteligência e perspicácia.

Mulheres admiráveis

            Mulan, na minha avaliação, é a mais admirável das três personagens. Segundo o modelo sugerido por Campbell, pode ser identificada como uma heroína. O autor de O Poder do Mito afirma que o herói é aquele que “descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo”. (Campbell, 1990:131). Este é o caso da personagem chinesa: tomou as armas do pai para ir à guerra, mostrou-se um soldado valoroso, salvou sua tropa da derrocada iminente, graças à astúcia e capacidade de improvisar e, por fim, salvou todo o reino, como he diz, agradecido, o próprio imperador:

Imperador: Já ouvi muito a seu respeito Mulan. Roubou a armadura de seu pai. Fugiu de casa. Fingiu ser um soldado. Enganou seu oficial comandante. Desonrou nosso Exército. Destruiu meu palácio e... salvou a vida de todos.

            Por todos esses feitos, é convidada a tornar-se conselheira do rei, porém recusa e retorna à casa dos pais. Verificamos que sua temporada longe do lar, ainda que dure pouco, é muito significativa no que concerne à representação das mulheres. Afinal, é construída por meio de cenas de grande impacto visual, efeito obtido com recursos característicos do cinema: música retumbante, cenário grandioso (um campo todo coberto de neve) e a câmera fixa em sua postura montada em um corcel negro, rápida e precisa, como uma rainha guerreira. Os companheiros de guerra expressam sua admiração ao final de uma das batalhas. O capitão, salvo por ela, afirma:

Li Shang: Ping, eu nunca tinha visto um homem louco como você (só então eles percebem que ela está com um grave ferimento), mas essa sua loucura salvou a minha vida. Por isso, de hoje em diante, você tem minha confiança.

            Os soldados companheiros de Mulan/Ping também a saúdam:

Ling: Um soldado genial!

Yao: Ele é o rei da montanha!

É a figura de uma mulher adjetivada não pela beleza ou pela bondade e meiguice. É a figura de alguém que não teme o perigo, que enfrenta os inimigos sem importar-se com a morte e que age com equilíbrio e perspicácia, já que improvisa uma estratégia de ataque que é bem sucedida. Entretanto, também não se pode esquecer que, nesses momentos, ela está travestida de homem: é Ping para seus companheiros.

Todavia, para a audiência, ela é Mulan. A dubiedade na representação da personagem ocorre o tempo todo por meio da alternância entre imagens que a mostram ora como guerreira destemida, ora como romântica casadoira, ou tudo isso ao mesmo tempo. Isso pode ser atribuído a uma característica singular da mídia, observada por Gledhil. Segundo a autora, a mídia negocia com seus receptores, oferecendo-lhes o novo e, ao mesmo tempo, mantendo valores tradicionais, num vai e vem constante, denominado “Pleasurable negociations”, noção que:

implica uma realização simultaneamente em oposição ao ponto de vista do processo contínuo de dar e receber. Assim como implica em destacar que se trata de um modelo de produção de sentidos, de negociações; concebidas como trocas culturais de interseção no processo de produção e recepção, em que justapõem-se, mas não competem em operações determinadas. Nenhum significado é imposto, nem passivamente assimilado mas, ao contrário disso, é uma luta ou uma negociação entre referências, motivações e experiências de estruturas concorrentes.[14] (Gledhill, 1992:195).

            Essa negociação dá origem a personagens dúbias, como é o caso de Mulan, uma guerreira apaixonada e, ao mesmo tempo, disposta a tudo para preservar o bem estar do outro, uma mulher destemida que recusa o convite do imperador para ser sua conselheira, unicamente para retornar a casa, onde reassume funções domésticas e espera a vinda do futuro marido. Os filmes apresentam-nos novas imagens acerca das mulheres, alternadas com outras tradicionais. As contradições ressurgem nas representações sobre Bela e Fiona.

            Além de intelectual, Bela é corajosa, curiosa e perspicaz, qualidades reveladas em vários momentos. Por exemplo, quando propõe à Fera tomar o lugar do seu pai, feito prisioneiro nas masmorras do Castelo. A troca é combinada minuciosamente, conforme se observa em trechos do diálogo disposto abaixo:

Bela: Eu vim buscar o meu pai, por favor, solte-o! Não vê que ele está doente?

Fera: Ele não devia ter invadido!

Bela: Mas ele pode morrer! Por favor, eu faço o que quiser!

Fera: Não há nada que possa fazer. Ele é meu prisioneiro!

Bela: Deve haver algum jeito...espere, eu fico no lugar dele!

Fera: Você, você quer me dar uma prenda?

Bela: Se eu ficar você o deixa ir?

Fera: Deixo, mas deve prometer que vai ficar para sempre!

Bela: Feito!

            O trato é cumprido à risca, imprimindo caráter e honestidade à palavra da mulher. Novamente, vemos uma representação pouco usual sobre as mulheres, pois Bela é firme nas decisões, capaz de atitudes heróicas que comprometem seu bem-estar.

Dentro do Castelo, ela desconfia que exista um segredo valioso, guardado a sete chaves dos olhos humanos, esperando para ser revelado. Assim, segue seus impulsos e descobre a sina que ronda a vida da criatura que a mantém prisioneira. É punida pela curiosidade, mas inicia uma outra relação com os habitantes do lugar. Nesses e em outros pequenos gestos, percebe-se a rebeldia de Bela diante de normas, proibições e tabus. Interpreto-os como uma ruptura com velhas representações acerca das heroínas de animações infantis.

            A personagem Fiona congrega outras atitudes admiráveis: é eximia lutadora de artes marciais, possui personalidade singular, revelada pelos hábitos despojados, as maneiras simples e a língua afiada, capaz de emitir desaforos ou discursos de forma brilhante. Quando enfrenta salteadores na floresta e despacha todos com golpes certeiros e precisos, os dois companheiros que a acompanham — ambos do sexo masculino — observam-na admirados. No diálogo transcrito abaixo, ela revela como aprendeu tudo isso, vivendo sozinha em uma torre:

Shrek: Onde aprendeu tudo isso?

Fiona: Quando se vive sozinha a gente aprende essas coisas.

Novamente, observa-se outra representação pouco habitual acerca das mulheres, principalmente tratando-se de uma princesa: alguém que sabe enfrentar problemas sem precisar ser amparada.

            Como se vê, todos os filmes analisados trazem imagens tradicionais acerca das mulheres, bem como outras inovadoras, o que se tornou evidente ao promover o interdiscurso entre eles. Destaco a recorrência dos temas casamento e amor romântico, referentes às representações tradicionais e, por outro lado, a coragem, a inteligência e a perspicácia referentes à ruptura com a tradição. Diante da variedade de imagens, conclui-se que a idéia da repetição, tradição, padronização e clichês não são noções capazes de expressar a complexidade das mídias.

            Ao representar os gêneros, percebo que as mídias não são apenas um espelho fiel ou distorcido da realidade. Ela é instituidora de realidades, na medida em que estabelece valores e normas, participando ativamente da construção do sistema de sexo-gênero: flerta com os feminismos, valoriza a verdadeira mulher, promove uma visão oposta e complementar acerca dos gêneros. O intento é o prazer do público: novos valores, novas representações, exposição de conflitos, nada disso pode superar o lúdico, a fantasia, a satisfação. O resultado é, de fato, uma negociação aprazível, já que evita apontar para conflitos insolúveis e/ou desagradáveis. Ao contrário, o final consagra o amor, a beleza, a união, a bondade e a beleza, temperados com picardia e ironia.

                                                   FONTES

FILMES

ADAMSON, Andrew e JENSON, Vick. Shrek- edição especial. Dreamworks, E.U.A, 2004.

COOK, Barry e BANCROFT, Tony. Mulan. Buena Vista, S.P., 1998.

TROUSDALE, Gary e WISE, Kirk. A Bela e A Fera. Abril Vídeo, S.P, 1998

                                                    REFERÊNCIAS

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GLEDHILL, Christine. (1992). “Pleasurable Negotiations” in Imagining Women: cultural representations and gender (pp.193-209). Org.: BONNER, Frances, GOODMAN, Lizbeth (et al). London/NY: Polity Press/The Open University.

GUBIN, Éliane. (1998). “Créer. Hier et Aujourd’hui » in La Pensée Féministe Contemporaine: quelques débats (pp.5-18). Org. : DESCARRIES, Francine. Montreal : UQAM,. 

JODELET, Denise. (2001). “Representações Sociais: um domínio em expansão” in As Representações Sociais (17-44). Org.: JODELET, Denise. Rio de Janeiro: Eduerj..

LAURETIS, Teresa de. (1994). “A Tecnologia do Gênero” in Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura (pp.206-242). Org.: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Rio de janeiro: Rocco.

MAINGUENEAU, Dominique. (1997). Novas Tendências em Análise do Discurso. 3ª. Edição, Campinas: Pontes.

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NAVARRO-SWAIN, Tania. (1994). “Você Disse Imaginário?” in História no Plural (pp.43-67). Org.: NAVARRO-SWAIN, Tânia. Brasília: Editora UnB.

______________________.1007) “Cuerpos Construídos, Superfícies de Significación, Processo de Subjetivación” in Perfiles del Feminismo Iberoamericano/3, Catálogos de Buenos Aires. Org.: FEMENIAS, Maria Luisa. Argentina. No prelo.

_______________________. (2000). “A Invenção do Corpo Feminino ou “A Hora e A Vez do Nomadismo Identitário?” in Feminismos: Teorias e Perspectivas (pp.50-83). Org.: NAVARRO-SWAIN, Tânia. Revista da Pós-Graduação em História da UnB. Brasília: Editora da UnB, Vol. 8, números 1/2.

PATEMAN, Carole. (1993). O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra.  


[1]É doutora em história pela Universidade de Brasília (2006), onde defendeu a tese E A Mídia Criou a Mulher: como o cinema e a TV constroem o sistema de sexo-gênero. Foi repórter de cultura e assessora de imprensa. Desde 2000 é professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília, onde ministra, atualmente, as disciplinas de Teoria da Comunicação, Jornalismo Público e Investigativo, dentre outras. Endereço eletrônico: profliliane@globo.com.

[2]Ver maiores considerações a esse respeito em LE GOFF, Jacques. (org.) A História Nova. S.P.: Martins Fontes, 1990, p. 257.

[3]Ver maiores considerações a este respeito em HUNT, Lynn. “História, Cultura e Texto” in A Nova História Cultural. HUNT, Lynn (org.). S.P.: Martins Fontes, 1992, pp. 6 e 14.

[4] Para maiores informações a este respeito veja ADORNO, Theodor, HORKHEIMER, Max. “O Iluminismo Como Mistificação de Massa” in Teoria da Cultura de Massa. 5ª. Ed., R.J.: Paz e Terra, 2000, p.170.

[5] A noção de conceito fetiche é trabalhada em ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 6ª. ed., S.P.: Perspectiva, 2004,p.11.

[6] Para maiores informações a este respeito veja: LACOUTURE, Jean. “A História Imediata” in A História Nova. Org.: LE GOFF, Jacques. São Paulo: Martins Fontes, 1990, pp. 314 a 316.

[7]Para maiores informações a este respeito veja: BACZKO, Bronislaw. “A Imaginação Social” in Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, Vol.5, p.311 e NAVARRO-SWAIN, Tania. “Você Disse Imaginário?” in História no Plural. Org.: NAVARRO-SWAIN, Tânia. Brasília: Editora UnB, 1994, p.48.

[8] Grifos meus.

[9] Navarro-Swain define a subjetivação como “a resposta individual a interpelação do social que cria as identidades e a identificação à um grupo, definindo sua inserção no espaço societário”. (La respuesta individual a la interpelación de lo social que crea las identidades y la identificación, definiendo su inserción en el espacio societal”. Tradução livre. (NAVARRO-SWAIN, Tânia. Cuerpos Construídos, Superfícies de Significación, Processo de Subjetivación” in Perfiles del Feminismo Iberoamericano/3. Catalogos De Buenos Aires. (org.) FEMENIAS, Maria Luisa. 2007,Argentina.

[10] Grifos meus.

[11] Grifos meus.

[12] Grifos meus.

[13] Grifos meus.

[14] “implies the holding together of opposite sides in an ongoing process of give-and-take. As a model of meaning production, negotiation conceives cultural exchange as the intersection of process of production and reception, in which overlapping but non-matching determinations operate. Meaning is neither imposed, nor passively imbibed, but arises out of a struggle or negotiation between competing frames of reference, motivation and experience”. Tradução livre.

nota biográfica:

Liliane Machado
È doutora em história pela Universidade de Brasília (2006), onde defendeu a tese E A Mídia Criou a Mulher: como o cinema e a TV constroem o sistema de sexo-gênero. Foi repórter de cultura do Jornal de Brasília e Correio Braziliense (1988 a 1995) e assessora de imprensa (Secretaria de Cultura do GDF, em 1991 e 1992). Desde 2000 é professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília, onde ministra, atualmente, as disciplinas de Jornalismo Público e Investigativo e Laboratório de Projeto, além de orientar monografias e de coordenar a OPN, laboratório de prática jornalística. Tem artigos publicados na revista Em Tempo de Histórias: revista dos alunos da pós-graduação da UnB (volumes 3 e 7), na revista Correio do Livro (órgão de divulgação da Editora UnB). Tem um capítulo publicado no livro Os Saberes da Comunicação (Brasília, Ed. Casa das Musas, 2007), além de editar a Revista Diálogos, publicação da Universidade Católica de Brasília.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro2007- juillet/décembre 2007