labrys, estudos feministas

número 1-2, julho/ dezembro 2002

Futuros feministas ou o futuro do pensamento

Elizabeth Grosz

Tradução: Maria Elizabeth Ribeiro lCarneiro

 

Resumo:

Este artigo explora o conceito do virtual, tal como foi desenvolvido por Henri Bergson e Gilles Deleuze e pretende conecta-lo aos escritos feministas e ontológicos de Luce Irigaray. O virtual seria o potencial não atualizado do passado que poderia ter produzido um futuro fora do controle direto ou das coerções do modo de atualização do presente. É, em consequência, um conceito cuja relevância é direta para as lutas feministas e polítcas, que pretendem transformar o presente. O conceito do virtual está ligado ao caráter inesperado dos eventos e à impossibilidade de controlar as eventualidades políticas.

1. Futuros

Quero aqui discutir a questão do futuro do feminismo, da teoria feminsta, no campo das humanidades. Em particular, gostaria de reunir alguns de meus interesses, quais sejam: 1. a questão do futuro, como pensar o futuro, viver o futuro, produzir um futuro que é diferente do presente e que pode ser esperado, com prazer, ao invés de ser temido (a questão preeminente da política); 2. como as maneiras de pensar, teorizar, filosofar, conceituar, podem ser transformadas para se pensar o novo, para serem mais capazes e adequadas para se delinear um futuro imprevisível (a questão da coragem e dos discursos que inovam, os riscos que assumem, as novas formas que podem emergir); 3. como os discursos feministas que se referem às questões da diferença sexual, bem como aos múltiplos tipos de diferenças, podem ser articulados, podem participar, como engrenagens, do movimento em direção ao futuro, ao futuro do pensamento.

Embora eu venha sendo solicitada a falar sobre feminismo e sobre teoria feminista, uma das mais novas “disciplinas” ou talvez até “não-disciplinas”, no interior das humanidades, meu próprio treinamento disciplinar – tal como se deu – desenvolveu-se em um dos mais antigos terrenos, o da filosofia. É minha esperança que ambas as disciplinas possam sobreviver bem, quer dizer, não estagnadas, em um futuro previsível, neste milênio. Tenho sempre tentado entrelaçar estes interesses um ao outro, sugerindo molduras filosóficas, métodos e suposições que sustentem os estudos feministas e, igualmente, tentando fazer uma filosofia que possa dar respostas, de alguma forma, às posições das mulheres e aos lugares do feminino na história social e filosófica. Esses dois interesses e campos não estão desconectados: os objetivos tradicionais da filosofia, entender o ser, o saber, o pensar, estão intimamente ligados pelo que que constitui nossos valores e por que lutamos, em outras palavras, pela ética e pela política. E como a maneira com negociamos as questões éticas e políticas está estreitamente correlacionada ao modo como entendemos a existência e o conhecimento. Hoje, eu gostaria de observar o futuro do pensamento, ou as virtualidades latentes no presente que podem se ramificar e se desenvolver produtivamente; além disso, pretendo refletir sobre os caminhos que assumem algumas das principais peças-chave da teoria feminista e o futuro da diferença sexual, bem como sua relevância para o futuro do pensamento.

O que não irei fazer é um prognóstico do futuro dos estudos sobre as mulheres, da teoria feminista, ou, portanto, da filosofia ou outra disciplina no campo das humanidades: a questão de predizer o futuro, ou futurologia, de saber o futuro e ser capaz de preparar-se para isso, de reconhecê-lo em termos do que é familiar ou conhecido, não é o meu propósito aqui e está bem além das minhas habilidades! Com efeito, se eu tivesse que arriscar um palpite sobre o futuro dos Women’s Studies, diria que este se aparenta ao estado atual dos Estudos das Mulheres, uma disciplina fundamentalmente dividida em vários caminhos: entre as(os) chamadas(os) ‘militantes’ e ‘teóricas’; aquelas(es), cujos objetos de investigação são mulheres e aquelas(es), cujos objetos são saberes; aquelas(es) que se orientam em direção aos textos de mulheres e aquelas(es) que fazem da crítica de um conhecimento patriarcal ou masculino seu objetivo; aqueles(as) interessados(as) nas relações entre todas as mulheres e aquelas(es) interessadas(os) em relações da produção epistemológica.

Em outras palavras, esse assunto continuará tão complexo, dividido e pouco claro em seus métodos, miras e objetivos quanto já é hoje em dia

Mas meu propósito aqui não é a previsão, ao contrário, ele reside no interior dos ideais, princípios de divergência e, longe da cristalização daquilo que existe hoje, insisto em transitar na zona de possibilidades que abriga o novo na teoria.

Estou interessada nos caminhos pelos quais o futuro das humanidades, dos saberes, da verdade, assumirá mudanças imprevisíveis; nos caminhos que poderemos não reconhecer, mas que estarão relacionados à ética e à política, às lutas políticas em caminhos talvez diferentes, quiçá mais dinâmicos que os existentes no presente. O objeto que eu gostaria de tratar, aqui, é o futuro do pensamento, as possibilidades de reconceituar o que significa pensar, como essa ação se relaciona com o mundo da prática e como ela pode servir, produtivamente, às formas do interesse político do feminismo e suas lutas relativas (classe, raça, sexualidade, religião etc.).

Para abordar a questão do futuro do pensamento, não é possível saltar para fora de seu próprio tempo ou para dentro da realidade de um futuro-feito-presente. No máximo, temos acesso aos discursos mais complexos e seus recortes fronteiriços (ou marginais), aqueles que buscam algo à frente, que assumem riscos, que acolhem inovação e transformação. Embora estes não possam ser considerados como índices de previsão, podem insinuar linhas de vôo, direções em movimento, que estão virtuais no presente, carregadas de potencialidades, e ainda têm algum ímpeto ou força para engendrar um futuro diferente daquilo que conhecemos. Esses lugares correntes de transformação são nossos meios mais diretos de acolher o futuro e dele participar, produzi-lo nós mesmos(as): de absorver inspiração das inovações mais arriscadas, corajosas e instigantes que informam nosso presente e usá-las como uma espécie de ponte para um futuro que não desconhecido e incontrolável, mas que são inelutavelmente colocadas à nossa frente a cada momento.

Com certeza, cada pessoa é livre para ver em qualquer discurso se ele constitui esse “fio cortante” reconhecido das disciplinas atuais (como são, por exemplo, o trabalho de Deleuze ou Irigaray) ou se ele é um texto esquecido ou mal entendido do passado (como, por exemplo, o renascimento do interesse que os escritos de Nietzsche e Bergson sugerem), uma porção do pensamento que antecipa o futuro – e também seu futuro, ou nosso próprio. Esse, sim, é o prodígio da história – que pode ser revivificar qualquer figura particular no presente ou no passado, como um modo de acesso ou antecipação do futuro que ainda está por vir. Nesse estudo, quero atentar brevemente para algumas ressonâncias do trabalho de Gilles Deleuze sobre a questão do pensamento, e atrelar esta questão àquela da diferença sexual, particularmente como está representada no trabalho de Luce Irigaray. Entre esses dois discursos e cenários de interesses, podemos traçar alguns futuros possíveis ou mesmo desejáveis na região comum em que a filosofia e a teoria feminista se superpõem e dividem o mesmo espaço, ou seja, no terreno da ontologia e da epistemologia e suas conexões fundamentais com a ética e a política.

2. Deleuze e o Pensamento

Há alguma maneira de pensar sobre o pensamento que não aquelas que foram estruturadas como silogismo, como argumentação, como persuasão, como ‘teoria’ antes e além da prática? É possível desenvolver um entendimento do pensamento que se recusa a vê-lo como passividade, reflexão, contemplação e, ao contrário, enfatize sua atividade, a maneira como o pensamento atua e o que atua, como ele é uma força que existe e atua em orquestração com outros tipos de forças que não são conceituais? Haveria uma maneira de entender o pensamento como produção, como força, como causa, que trabalha junto, mais do que acima ou anterior a outras práticas? Será que poderíamos desromantizar a construção dos saberes e discursos para vê-los como trabalho, produção, fazer? Seria pensar um modo de agir? Essas questões requerem um novo modo de entendimento, tanto epistemológico quanto ontológico, a meu ver, e também novas maneiras de ser capaz de colocar as questões éticas e políticas que estão no horizonte ou são fronteiriças à filosofia contemporânea e à teoria feminista.

Deleuze se recusa a aceitar ou entender a teoria como uma ordem de conceitos unificada e sistemática, theoia como uma estruturação de argumento (“Intellectuals and Power”, D. Bouchard ed. Language, Counter-Memory, Practice. Selected Essays and Interviews by Michel Foucault, Oxford: Basil Blackwell, 1977). Com efeito, desde seus estudos iniciais e filosoficamente mais convencionais, ele colocava a questão da força dos conceitos, o impulso ou empurrão que eles provocam, tanto no interior dos sistemas filosóficos (por exemplo, em Spinoza e Kant) quanto também dentro das relações sociais mais gerais. Em seus estudos mais recentes, especialmente aqueles a respeito do trabalho de Foucault, ele desenvolve uma compreensão da teoria como uma retransmissão dentro da rede de outras práticas não teóricas. Está interessado nos componentes ou ingredientes da teoria ou conhecimento, seus ‘átomos’ ou elementos. Ele parece menos preocupado com a sistemática dos sistemas do conhecimento do que com seus materiais, as ‘coisas’ com as quais eles trabalham. Está menos interessado em compreender a teoria como um sistema ou uma estrutura, do que como uma coleção de elementos heterogêneos, átomos cujas formas moleculares têm mais interesse do que seus alinhamentos molares. Sua apreensão é pragmática e ligada em alguns aspectos aos trabalhos de Dewey, James, Peirce e de filósofos pragmáticos, que estão mais atentos aos efeitos operacionais dos discursos, do que a seu sentido ou sua referência. Acima de tudo, ele está interessado em – o que a teoria nos torna capazes de fazer -, mais do que ou acima do que ela diz. Discursos não são somente repositórios de verdades, ou conceitos e saberes; eles são também, e mais significativamente, modos de ação dos mais negligenciados, práticas que efetuamos para facilitar ou possibilitar outras práticas, formas de tentativas para lidar com o real e transformar a realidade.

Saberes, teorias são feitas de conceitos, e conceitos são sempre e somente ocasionados por problemas. Para Deleuze, conceitos nunca são unitários ou singulares: ‘idéias claras e simples’ são uma fabricação filosófica. Elas são sempre compósitas, uma multiplicidade, e uma concatenação desnivelada, que não mistura os elementos diversos, funcionando para prduzir efeitos, outros conceitos, outras ações e práticas.

Não há conceitos simples. Todo conceito tem componentes e é definido por eles. Portanto, há uma combinação (chiffre). Ele é uma multiplicidade, embora nem toda multiplicidade seja conceitual. Não há conceito com somente um componente. (Gilles Deleuze and Félix Guattari, What is Philosophy?, Trans Hugh Tomlinson and Graham Burchell, New York: Columbia University, 1994: 15)

Conceitos são sempre duplos, pelo menos, e cada conceito requer uma delimitação para dar a ele alguma ‘identidade’, ainda que historicamente provisória; também requer um chão, um modo de conexão com o mundo mediante contemplação, reflexão ou incitamento. Esses fragmentos, totalizados provisoriamente em uma ‘integridade fragmentária’(1994:16), são historicamente conectados aos conceitos que os precederam e, ao mesmo tempo, tornaram-nos capazes de se desenvolverem; são conectados também à resolução de problemas, já que são os problemas, as questões, que ocasionam conceitos, desenvolvidos para resolvê-las:

Todos os conceitos são conectados a problemas sem os quais eles não teriam sentido e que podem somente ser isolados ou entendidos quando sua solução emerge. (1994:16)

Conceitos são pontos de multiplicidade, conexões de componentes, que dividem ‘zonas de proximidade’, fronteiras, com outros conceitos, marcados por contornos irregulares, uma forma imperfeita ou imprópria. Daí porque, embora eles atinjam uma certa coesão, não podem se alinhar para formar sistemas. São propostas, demandas, afirmações que formam sistemas, mediante seus arranjos ordenadores, seus compromissos com a uniformidade e com a coesão. Proposições funcionam em uma relação de representação, de correspondência, e se orientam pelas reivindicações de verdade e validade. Os argumentos só podem ser formulados com o uso das proposições. Se proposições formam sistemas, então conceitos se ligam aos eventos e deles emergem[1]. Eventos são sempre específicos, emergências historicamente particulares, ‘hecceities’, que não formam sistemas, mas induzem intensidades; que não se juntam para formar padrões, mas funcionam como maneiras de afeição e velocidade de variações. Esses eventos são não-recorrentes, singulares, não se repetem, nem se contêm. Eles ocasionam reações, mais do que afirmações:

Conceitos são centros de vibrações, cada um em si e cada um em relação a todos os outros. Por isso, eles ressoam mais do que agregam ou correspondem entre si. Não há motivo porque os conceitos devam se adequar (cohere). Como totalidades fragmentárias, os conceitos são não somente as peças de um quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem  entre si. Eles formam uma parede, porém uma parede de pedra seca, e a matéria se sustenta unida somente por linhas divergentes. (1994:23)

O problema se coloca como uma questão pela qual o conceito, entre outras coisas (Deleuze menciona também a percepção e o afeto), tenta reponder ou de encaminhar, embora de fato o conceito nunca responda ou solucione o problema, ele o transforma. Problemas não são simplesmente tentativas (ou pretextos) de soluções, mas induções para a ação e, assim, para a experimentação. Eventos são sempre problemáticos, eles sempre insinuam problemas e, enquanto eventos, são uma dispersão de pontos, que se juntaram provisoriamente, ainda que efetivamente, levantando ao menos a questão de sua natureza, sua existência, sua provisoriedade, sua força e sua velocidade. [2] Conceitos são um modo de tentar uma ‘solução’, uma solução não do problema, mas em sua vizinhança. Eventos são constituídos de singularidades, compósitos de substâncias dessemelhantes; eles engendram campos, no interior dos quais os problemas são articulados e seus conceitos-ferramentas são gerados. Esses conceitos ou conceitos-ferramentas são também compósitos, não feitos das mesmas matérias dos eventos, mas, de alguma forma, estão conectados a eles. São compósitos com suas próprias histórias, eventos gerados por suas próprias singularidades, estas que se cruzam, ou tentam fazê-lo, com os eventos geradores de problemas:

Podemos falar de eventos somente no contexto do problema cujas condições eles determinam. Podemos falar de eventos somente como singularidades dispostas em um campo problemático, nas proximidades do qual as soluções são organizadas. (Deleuze, 1990: 56)

Os problemas, a questão, não são resolvidos ou respondidos, ou seja, não estão terminados ou aniquilados pelos conceitos que engendraram ou  as soluções que criaram. O problema não é para ser resolvido, tanto quanto para ser representado, experimentado, negociado. A solução é uma prática, um modo de abordar esses problemas através de idéias. Certamente, o evento só pode tornar-se problemático e levantar questões, enquanto porque ele é ideal. O conceito é gerado através desse apelo ou desse espaço de idéias, o ideal. Não há problema nem conceito sem idéias, ou pensamento. O conceito, ou ‘solução’ é que torna possível localizar a substância ideal da questão, torná-la um ‘fato’ ou um status de ‘questão’.

Há sempre um espaço que condensa e precipita singularidades, tanto quanto há sempre um momento que completa o evento, progressivamente, através de fragmentos de eventos futuros e passados. Dessa maneira, há uma autodeterminação espaço-temporal do problema…Soluções são engendradas precisamente no mesmo momento em que o problema se coloca. Por isso, freqüentemente acredita-se que a solução não permite que o problema subsista, e que, retrospectivamente, ela destina a ele o status de momento subjetivo que é transcendido necessariamente tão logo a solução é encontrada. O contrário, entretanto, existe. Por meio de um processo de apropriação, o problema é determinado em lugar e hora e, desde que determinado, ele determina as soluções nas quais ele persiste. (1990:121)

Por sua vez , é o pensamento que engendra o problema fora do evento e produz o próprio pensamento como um evento. Isso pode explicar porque uma das maiores preocupações de Deleuze é a separação de questões bem-formadas, legitimadas, ou problemas, e como elas podem ser distinguidas daquelas mal-formadas. Uma questão mal formulada, um falso problema, pode gerar somente ilusões como ‘soluções’. Isso pode ser o motivo pelo qual Deleuze procura em Bergson sua formulação de questões mal formuladas, e em Kant a noção de problema falso e de ilusão[3]. Essas formulações mal construídas do problema antecipam ou fecham os experimentos, as invenções, necessárias para o desenvolvimento de uma solução, eles colocam a questão como podendo ser resolvida, em certos termos:

Somos levados(as) a acreditar que os problemas são dados prontos, e que eles desaparecem nas respostas ou na solução. Já sob esse duplo aspecto, eles podem ser nada mais que fantasmas. Somos levados(as) a crer que a atividade de pensar, junto com a verdade e a falsidade em relação àquela atividade, começa somente com a procura por soluções, que ambas envolvem somente soluções…Longe de estarem envolvidas com as soluções, a verdade e a falsidade afetam principalmente os problemas. Uma solução tem sempre a verdade que merece de acordo com o problema ao que ela é uma resposta, e o problema sempre tem a solução que merece na proporção de sua própria verdade ou falsidade…(Deleuze, Difference and Repetition, Trans Paul Patton, New London: Columbia University Press, 1994:158-59.)

[ Para sumarizar alguns pontos-chave na apreensão de Deleuze sobre as conexões entre a teoria e a prática:

1. Toda teoria e práticas são modos de heterogeneidade compósitos, provisória e tenuamente atrelados: não há interioridade pura em nenhuma delas. Não são conjuntos sistemáticos, nem produtos de meios singulares, uma puramente conceitual e a outra puramente pragmática, mas estão entremeadas, entrelaçadas, em interação;

2. Teoria é provocada por um problema ou questão, um problema ocasionado por um evento, uma erupção no mundo. Esse evento é uma provocação para a inovação, para a produção do desejo que é a formação do real. Esse real é também o real produzido por saberes, discursos, conceitos. Conceitos são um modo de resposta, tanto quanto atividades são respostas à provocação de problemas;

3. Teoria não é uma pré-condição da prática, nem é a prática o material sobre o qual a teoria reflete. Ao contrário, cada uma adentra a outra, forma uma ferramenta potencial para uso no domínio da outra; conceitos incidem nas práticas materiais, práticas passam a funcionar como exemplares, como modos de incitamento da teoria. Cada uma é um modo de proliferação da outra; e

4. Como compósitos ou híbridos, conceitos não funcionam por unificação, coesão, sistematizações ou explicações, mas por diversificação, proliferação, divergência, produzindo aquilo que é diferente, que é não-igual, funcionando como uma fonte virtual: de proliferação de outros conceitos e de diversificação de novos.]

3. Futuros Feministas

O que o futuro do pensamento tem a oferecer à teoria e à prática feminista? Esses conceitos Deleuzianos têm uso, efetivamente, para as questões feministas? E ainda, o que o feminismo tem a oferecer ao futuro do pensamento? O feminismo teria um futuro no pensamento?

Aqui, há duas posições bem distintas e contraditórias, que marcam a teoria feminista corrente. A primeira é que, do ponto de vista da posição melhor sucedida, a teoria feminista é uma prática e uma política, cujo tempo é limitado e cuja função deixará de ser necessária quando certos ganhos políticos, sociais e econômicos forem obtidos. O feminismo é e sempre foi, sobretudo, provisório e contextual: ele cresceu somente como resultado da ampliação da consciência de opressão da mulher e cessará quando essa opressão for superada. Uma vez que as mulheres ganhem igualdade econômica, legal e política, o feminismo não será mais necessário. O futuro do feminismo, nessa acepção, é limitado ao previsível e para contestar o reconhecido e o conhecido. No entanto, esta não é uma visão compartilhada por Irigaray, feminsta e filósofa, cujo trabalho sobre a diferença sexual sublinhou o caráter indeterminado, e possívelmente indeterminável, do pensamento feminista, uma necessidade que é paralela ou isomórfica àquela da diferença sexual, em seus termos, uma das incontestáveis e, assim, intermináveis, formas da existência biológica e cultural.

Por um momento, eu não quero sugerir que haja um alinhamento fácil entre as filosofias de Deleuze e Irigaray: como aqueles átomos-conceitos que constituem a concepção de Deleuze acerca do pensamento, elas se atritam desigualmente, e com bordas dentadas, e não há possibilidade de um amaciamento ou fácil acomodação entre elas. Cada uma funciona como um cristal cortante e instigante para a outra, criando um alinhamento que é sempre pouco fácil e desconfortável. Contudo, elas poderm oferecer entre si outras ligações, modos de acesso a outros domínios e a outros modos de ação, que podem ser inacessíveis sem a sua conjunção ou interação, e sem as disjunções potencialmente produtivas que elas engendram. O incômodo que emerge dessa justaposição – questões acerca da subjetividade, identidade e desejo colocadas por Irigaray parecem dissonantes em relação às preocupações de Deleuze com as intensidades, planos e energias – pode provar ser mais produtivo ainda, mais provocador do que qualquer complementaridade fácil ou amaciadora.

Irigaray discute que a diferença sexual não implica somente na reorganização das relações sociais e econômicas entre os sexos, mas envolve a inteira reestruturação da ordem simbólica, do aparato social, incluindo a linguagem, as formas do conhecimento e os modos de representação. Ela implica repensar o próprio pensamento. E isso porque para ela, feminismo não é um projeto que procura um desfecho definitivo ou uma solução final para os problemas que as mulheres enfrentam, mas, sobretudo, uma renegociação ou reorientação dos muitos conceitos de ordem e solução. Como um elemento irredutível da existência humana, a diferença sexual se impregna inteiramente, em maneiras que não são possíveis reconhecer no passado e no presente, de criação humana: ela também existe como um problema, uma provocação para o pensamento e para a ação, porém uma provocação que até agora tem resultado no temor patriarcal e na contenção da mulher sob a dominação econômica e intelectual do homem, mais do que no desenvolvimento de maneiras de ação, pensamento e linguagem apropriada e desenvolvida pelos dois sexos.

Ela defende que a diferença sexual constitui a questão singular do presente, da nossa era:

A diferença sexual é uma das maiores questões filosóficas, senão a questão, do nosso tempo. De acordo com Heidegger, cada época tem uma questão para se pensar sobre ela e somente uma. A diferença sexual é provavelmente a questão da nossa era…(Irigaray, An Ethics of Sexual Difference, 1993: 5)

Mais do que constituir a questão do nosso tempo, para Irigaray, é essa questão e suas provocações, no âmbito da prática e da inovação, que significa um modo de passagem ou transição para o futuro. A questão da diferença sexual sinaliza a estrutura virtual do futuro. A diferença sexual é aquela que é virtual: pois o que permanece atual é a oposição sexual ou o binarismo:

A diferença sexual  constituiria o horizonte de mundos mais fecundos do que qualquer mundo conhecido hoje – ao menos no ocidente – e sem reduzir fecundidade para a reprodução dos corpos e da carne. Para os parceiros do amor isso seria uma fecundidade do nascimento e da regeneração mas, igualmente, a produção de uma nova era de pensamento, arte, poesia e linguagem: a criação de uma nova poética. (1993: 5)

A diferença sexual permanece virtual porque nunca teve seu dia, nunca foi possível aparecer como tal, tornar-se efetiva, transformar discursos, conceitos, práticas: Irigaray discute ao longo de seu trabalho que a diferença sexual é aquela  obscurecida, reprimida e recoberta nas representações falocêntricas, aquela que é substituída por conceitos e práticas que são derivadas de uma larga perspectiva única e jogo de interesses, muito mais do que (pelo menos) duas. Ela significa que não somente as mulheres e seus interesses permanecem negligenciados e não-desenvolvidos mas, além disso, que o domínio dos próprios conceitos permanecem empobrecidos, sem a contribuição produtiva e enriquecedora de outros interesses e perspectivas. A diferença sexual implica não somente na transformação política e econômica, na auto-imagem das mulheres mas, também, numa revolução do pensamento, já que sem a transformação dos conceitos, o trabalho da diferença sexual não pode ser realizado:

Uma revolução no pensamento e na ética é necessária se o trabalho da diferença sexual está para acontecer. Precisamos reinterpretar tudo o que concerne às relações entre o sujeito e o discurso, o sujeito e o mundo, o sujeito e o cosmos, o micro e o macrocósmico. Tudo, começando pelo modo no qual o sujeito sempre tem sido escrito na forma masculina, como homem, mesmo quando é afirmada sua condição neutra ou universal. (1993:6)

Essa ‘revolução no pensamento’ não é uma revolução que tenha um modelo conhecido, porque não significa o abandono de todo o pensamento anterior, a desconexão radical dos conceitos e da linguagem do passado: uma revolução no pensamento só pode utilizar a linguagem que existe no presente, e só pode se processar sobre as bases e a história do presente. Até certo ponto, o tipo de revolução que Irigaray está propondo é a que toma as formas e materiais dos saberes historicamente dados, de conceitos e linguagens, e tenta apresentá-los e usá-los diferentemente – um desvio e um alargamento, uma abertura mais do que um fechamento e substituição das formas e estruturas existentes. O que Irigaray está sugerindo é um certo tipo de insinuação da diferença sexual, de volta àqueles lugares onde ela foi obscurecida, insistindo na necessidade de que toda prática, método e saber pode(m) ser retomado(s), de modo diferente daqueles usados anteriormente. Para ela, o feminismo não se coloca em relação às mulheres, seu sofrimento e opressão, mas às maneiras pelas quais as mulheres foram associadas e conceitualizadas em termos de uma larga variedade de qualidade e atributos, que também requerem reconsideração. A posição das mulheres está intimamente ligada com os modos pelos quais a química, a física, a filosofia e a matemática, e também o direito e a medicina são conceitualizados; ela não será transformada até que estas disciplinas, sem qualquer conexão aparente com a opressão das mulheres, mas associativamente e subrepticiamente a ela relacionadas, ligando-se entre si, sejam transformadas pela intervenção de diferentes perspectivas, interesses, métodos e objetivos.

O que Irigaray deixa claro ao longo de seus escritos, mas particularmente em An Ethics of Sexual Difference, é que a diferença sexual não poderá se estabelecer, enquanto os saberes, disciplinas, conceitos e práticas teóricas forem vistos como campos para a interação e expressão de forças, relações de poder, coerção e pressão, tanto quanto relações de conhecimento e utilidade, modos de seleção, de silenciamento, assim como modos de produção de verdade. A diferença sexual implica que haja pelo menos duas maneiras de se fazer qualquer coisa, sem que se precise ser capaz de especificar de que modos elas podem se desenvolver ou que forma elas podem tomar. Isso significa que a produção dos conceitos deve proporcionar ao menos duas trilhas de desenvolvimento, modos ou processos, ao menos duas maneiras de existência (possivelmente incomensuráveis) e de prática: duas maneiras, não em competição uma com a outra, para na  buscar do melhor, não duas maneiras que se acrescentam para propiciar um quadro mais completo, mas duas singularidades, dois modos que podem tanto se confrontar ou complementar-se, que podem ser incomparáveis ou simplesmente diferentes, estando juntas. Não há jeito de se julgar previamente que formas ou quais caminhos a diferença sexual, as perspectivas de pelo menos dois sexos, podem ter a oferecer aos conceitos, ao pensamento, aos saberes, exceto que a diferença sexual efetiva, faz e demarca uma diferença em qualquer lugar.

O enfrentamento entre esses dois modos de conceito ou pensamento, como o encontro entre dois seres que reconhecem sua diferença sexual, sempre gera surpresa, ou espanto: espanto, tanto aquele oriundo da surpresa do encontro com o inesperado, a produtividade do encontro que desafia a expectativa, quanto o que introduz o futuro de forma aberta. Irigaray assinala o entendimento de Descartes que aborda o espanto como a primeira paixão:

Quando o primeiro encontro com algum objeto nos surpreende, e julgamos o objeto novo, ou muito diferente daquilo que conhecíamos anteriormente, ou daquilo que supomos que devia ser, isso nos faz admirar e nos deixa surpresos(as); e porque isso pode acontecer antes que percebamos se esse objeto nos é agradável ou não, parece-me que a admiração é a primeira de todas as paixões: não há oposto a isto, pois se o objeto que se apresenta a nós não nos surpreende, não somos interpelados por ele e o consideramos sem paixão. (Descartes, The Passions of the Soul, artigo 53, em Irigaray, 1993:13)

Irigaray defende uma filosofia do espanto, um pensamento que envolva a admiração, a surpresa do inesperado, que nos ataca imediatamente com o choque de sua novidade, sua diferença. Esse espanto não é só o que aparece no nosso encontro com o outro sexual, um ser de outro sexo, a quem encontramos pela primeira vez como um outro, em sua irredutível diferença; é também o que emerge do nosso encontro com o conceito novo, a idéia nova, o método novo ou conhecimento. Confrontar a idéia da diferença sexual é abrir-se para ser confundido com algo incompreensível, em termos de estruturas e conhecimentos existentes; abrir-se para a atualização de conceitos e pensamentos que até agora existiram somente como latentes ou virtuais.

4. Força

O que isso significa para a teoria e a política feminista? Como a noção de força dos conceitos - e o poder da diferença sexual para gerar novos conceitos -, pode ser mobilizada ou usada para se pensar através das estratégias-chave feministas? Aqui, posso apenas apontar algumas sugestões mais do que elaborações, já que esses são conceitos que devem ser enxergados como potenciais, germinais e ainda estão para serem aprofundados:

1. A teoria feminista precisa reconceitualizar os termos pelos quais ela entende a subjetividade; considerava a política feminista como uma luta em torno dos direitos e das necessidades dos sujeitos femininos, individualmente ou como uma categoria, subjugada por sujeitos masculinos, requerendo um reconhecimento mais adqueado - esta a presunção básica de várias feministas não alinhadas, ligadas ao feminismo liberal, à política de identidade e à política de performatividade –. Entretanto, Feminismos e outras formas de lutas políticas podem facilmente funcionar como um meio de submeter o sujeito a um jogo de forças que constitui o sempre movediço e incontrolável terreno da política e das identidades. Feminismo, e especialmente a teoria feminista, não são a luta para liberar as mulheres, mesmo que ela tenha tendido a se admitir nesses termos (se é esta sua função, ela falhou miseravelmente!): feminismo é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de maneiras fundamentalmente diferentes do passado e do presente.

Essa luta não é uma luta de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma identidade.

A política pode ser vista como a luta das forças imperceptíveis, forças em nós e em nossa volta, forças em conflito contínuo; essa é uma ficção útil para se imaginar que nós, enquanto sujeitos, somos mestres de ação dessas muitas forças, que nos constituem como sujeitos, mas de forma enganosa;

2. Do ponto de inflexão das (micro-) forças, desejo de poder (essas forças que constituem corpos e identidades como multiplicidades), trata-se de uma política que é fundamentalmente servil, se a política se constitui como a luta pelo reconhecimento, a luta pela identidade para ser afirmada por outros, que ocupam posições socialmente dominantes e, entre seus pares para um respeito mútuo; se a identidade é uma ‘ficção útil’, uma coesão subjectivamente apreendida requerendo uma validação pessoal e coletiva para tomar um lugar como sujeito, então essa identidade é sempre governada, previamente, pela imagem e valor da outra.

Ao contrário de uma política de reconhecimento, na qual  grupos subjugados e minorias batalham por um lugar afirmativo e validado na vida pública, a política feminista deveria, eu creio, considerar agora a afirmação de uma política de imperceptibilidade, deixando seus traços e efeitos em todos os lugares, mas nunca se deixando ser identificada com uma pessoa ou organização. Não se trata de uma política de visibilidade, de reconheciemento e de autovalidação, mas um processo de auto-definição que constitui alguém naquele modelo que oprime e opõe. O imperceptível é aquilo que o inumano junta, aquilo que o humano pode às vezes liberar de sua própria órbita, mas não controlar ou dizê-lo como seu;

3. O encontro com o real que produz conceitos é também aquele encontro com o político, com o exigente, que inova e gera problemas novos e experimentos novos. Se a diferença sexual – a impossibilidade da representação dos dois sexos em um modelo singular do ‘humano’ ou ‘neutro’ – torna-se o problema, eu ainda não conheço o real que engendrará novos saberes. Mas está claro que, como oberva Irigaray, há um lugar - ou todos os lugares – para isto estabelecido.

A diferença sexual é aquele horizonte espacial e temporal, que sempre constituirá uma questão, sempre provocará uma  negociação, um modo de prática, sempre engendrará respostas, que ressoam material e conceitualmente. Materialmente, já que, como diferença sexual, é necessariamente um fator em todos as práticas e negócios humanos, seja ela reconhecida ou não e conceituamente, como diferença sexual, implica em modos de pensamento novos, futuros novos para os saberes. E, finalmente,

4. Essa esfera da produção de conceitos é tão significativa quanto aquela da ação política conjunta ou dirigida, embora seus objetivos e métodos não estejam tão bem definidos. Enquanto a produção da teoria não direcionar, não dirigir, ou simplesmente atuar como juíz da prática política – posto que é também uma prática que funciona ao lado de outras contribuindo para a produção de conceitos, percepções e afetos – esta permanece incompleta, sem uma concomitante geração de conceitos que ajudem a acolher e criar a experimentação política e conceitual.

Isso também envolve uma intimidade com a história dos conceitos e saberes. Porém, mais do que uma relação de reverência com a história, que nos mantém dentro de seus termos já existentes, a história de cada disciplina pode ser vista como um lugar de virtualidades desatualizadas, de potencialidades que nunca tiveram oportunidade de emergir. A diferença sexual constitui uma, mas certamente não a única, que permaneceu latente na história inteira do pensamento do Ocidente, mas que ainda requer seu próprio tempo – o futuro do pensamento.

 

Referências:

Gilles Deleuze, 1988, Bergsonism, Trans Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam, New York: Zone Books.

Gilles Deleuze, 1984, Kant’s Critical Philosophy. The Doctrine of the Faculties, trans. Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam, London: The Athlone Press.

Gilles Deleuze, 1990, The Logic of Sense, Trans Mark Lester, New York: Columbia University Press.

Gilles Deleuze, 1994, Difference and Repetition, Trans Paul Patton, New London: Columbia University Press.

Gilles Deleuze and Michel Foucault, 1977, “Intellectuals and Power”, D. Bouchard ed Language, Counter-Memory, Practice. Selected Essays and Interviews by Michel Foucault, Oxford: Basil Blackwell.

Gilles Deleuze and Félix Guattari, 1994, What is Philosophy?, Trans Hugh Tomlinson and Graham Burchell, New York: Columbia University.

Luce Irigaray, 1991 “Interview” in French Philosophers in Conversation, Raoul Mortley, London: Routledge.

Luce Irigaray, 1993, An Ethics of Sex

 

Biografia

Elizabeth Grosz ensina no Departamento de Estudos de Gênero e das Mulheres na Universidade de Rutgers. Ela é autora de 'Architecture from the Outside. Essays on Virtual ad Real Space' (MIT, 2001) e editora de 'Becomings. Explorations in Time, Memory and Futures' (Cornell, 1999). Sexual Difference, trans. Carolyn Burke and Gillian C. Gill, Ithaca: Cornell University Press.



[1] Na acepção de Deleuze e Guattari:

O conceito não é uma proposição…Proposições são definidas por suas referências, que não tratam do Evento mas de uma relação com um estado de questões ou corpo e com as condições dessa relação. (What is Philosophy?: 22)

[2] O modo do evento é problemático. Não se pode dizer que há eventos problemáticos mas que os eventos se sustentam exclusivamente sobre problemas e definem suas condições…O evento por ele mesmo é problemático e problematizador. Um problema é determinado por pontos singulares que expressam sua condição. Nós não dizemos que o problema está assim resolvido; ao contrário, ele está determinado enquanto problema…Portanto, parece que um problema sempre encontra a solução que merece, de acordo com as condições que o determinam como um problema. De fato, as singularidades presidem sobre a genesis de soluções da equação. (Deleuze, The Logic of Sense, Trans Mark Lester, New York: Columbia University Press, 1990: 55)

[3] Ver Bergsonism, Trans Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam, New York: Zone Books, 1988; e Kant’s Critical Philosophy. The Doctrine of the Faculties, trans. Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam, London: The Athlone Press, 1984.