labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012

“Vagabundo” ou “vagabunda”? Xingamentos e relações de gênero

Valeska Zanello

Ana Carolina Romero

Resumo:

O presente texto visa refletir sobre o ato de xingar,  através do termo “vagabundo”, na cultura brasileira, quando aplicado aos homens (“vagabundo”) ou às mulheres (“vagabunda”). Aponta-se, seguindo a linha de pensamento aberta por Wittgenstein (1991), presente na filosofia da linguagem ordinária, o quanto o sentido do termo é seu uso, adquirindo nuances bem diferentes na sua correlação com o sexo do sujeito xingado. Quando atribuído a um homem, o termo adquire conotações de preguiça, não produtividade, passividade; traços desvalorizados na dita “essência” masculina. Por outro lado, quando atribuído a uma mulher, o termo adquire conotação sexual, apontando para uma atividade, que seria indesejável, socialmente, para ela. A partir dessas discussões, buscou-se sublinhar o quanto o falar não é jamais neutro (Irigaray, 1985; 1990) e exerce formas de controle e de reprodução do sistema, através de uma microfísica do poder.

Palavras-chave: xingamento; relações de gênero; linguagem

 

 

 “There is no gender identity behind the expression of gender; that identity is performatively constituted by the very “expressions” that are said to be its results” (Butler, 1990:25)

Na história do pensamento ocidental, firmou-se, cada vez mais, a idéia de que a linguagem possuía a função de representar o mundo. Isto é, tinha mero caráter especular (Rorty, 1994). No século passado, assistimos a uma reviravolta (lingüistic turn) nesse modo de compreensão: sobretudo com Wittgenstein (1991), na segunda fase de seu pensamento Segundo este autor, falar uma linguagem é jogar um jogo, aceitar suas regras e, principalmente, adotar uma forma de vida.

Muitos debates acerca da linguagem surgiram desde Wittgenstein. Entre eles, situam-se aqueles dedicados aos valores presentes na linguagem, dentre outros, os relacionados às questões de gênero. Luce Irigaray é, neste sentido, uma autora importante. Uma de suas grandes contribuições foi demonstrar no francês o quanto este idioma é marcado por leituras hierárquicas de gênero (Irigaray, 1985, 1990).

O presente artigo inscreve-se em parte nesta vertente. Em parte - pois busca pensar questões de gênero relacionadas ao uso de determinadas palavras em nossa cultura. Por outro lado, é pensado não o gênero da palavra, mas antes o uso da palavra quando atribuída a pessoas percebidas como de sexos diferentes. Plagiando Freud (1983), quando definiu o sintoma histérico como um príncipe de ópera disfarçado de mendigo (porta para ele crucial para o começo do pensamento psicanalítico), tomaremos o xingamento (e o ato de xingar utilizando certos termos) como pedra de toque para abrirmos importantes reflexões acerca das estruturas de nossa sociedade. Nosso intuito é ficar não apenas no plano lingüístico, mas, como disse Wittgenstein, partir desse plano e pensar nosso modo de vida. Em outras palavras, a partir da prática corriqueira e cotidiana das pessoas (xingar sozinha ou realmente alguém, mentalmente apenas, dentre outras), é preciso repensar essa prática, desnaturalizá-la e ver o que nela pode nos levar a questionamentos muito além.

O xingar como ato

O xingar é um ato de fala realizado quando se profere certos vocábulos com a intenção de ofender (ou causar ofensa em) outra pessoa. Geralmente, tem um efeito catártico sobre quem o profere e um efeito perlocucionário em quem o recebe (se sentir magoado, humilhado, enraivecido, dentre outras possibilidades). O efeito catártico é assim definido: “liberação de emoções ou tensões reprimidas, comparável a uma ab-reação” (Houaiss & Villar,2001:651). Trata-se de uma tentativa de degradar moralmente o outro.

O conceito de ato perlocucionário foi desenvolvido por Austin (1990), ao tratar dos atos de fala. Este autor aponta uma diferenciação entre os atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Os atos locucionários seriam compostos pelo ato fonético (produção de ruídos), fático (proferimento de certos vocábulos ou palavras, numa determinada entonação) e ato rético (ato de utilizar tais vocábulos com sentido e referência mais ou menos definidos). Já o ilocucionário, seria o proferimento da locução que, ao ser dita, realiza um ato. Por exemplo: a locução “vocês estão casados”, ao ser proferida por um padre, e preenchidos os pré-requisitos para a felicidade desse ato (dentre outros, que os noivos não sejam já casados com outras pessoas), realiza o próprio ato de casar.

Quanto aos perlocucionários, Austin nos diz que poderíamos traduzi-los ainda que não sem algum problema, pela frase “por dizer algo, fez tal coisa”. Em suas palavras (Austin, 1991:89-90):

"Há um outro sentido (C)  em que realizar um ato locucionário, e assim um ato ilocucionário, pode ser também realizar um ato de outro tipo. Dizer algo freqüentemente, ou até normalmente, produzirá certos efeitos ou conseqüências sobre os sentimentos, pensamentos ou ações dos ouvintes, ou de quem está falando, ou de outras pessoas. E isso pode ser feito com o propósito, intenção ou objetivo de produzir tais efeitos. Em tal caso podemos dizer, então, pensando nisso, que o falante realizou um ato que pode ser descrito fazendo-se referência, meramente oblíqua (Ca) ou mesmo sem fazer referência alguma (Cb) à realização do ato locucionário ou ilocucionário. Chamaremos a realização de um ato deste tipo de realização de um ato perlocucionário ou perlocução."

Entender o ato de xingar como ato perlocucionário, implica o contexto e a entonação do xingamento por parte do falante, visto que a mesma palavra pode ter efeitos não ofensivos se pronunciadas em tons e situações diferentes. Exemplo disso seria o uso entre adolescentes de palavras comumente utilizadas como xingamentos, mas que possuem outros sentidos, tais como marcar o pertencimento ao grupo, a amizade: “E aí viado? Tudo bem bró?” “Tudo belê, seu pedê!”[1]. O próprio tom aparece aqui de maneira não agressiva, mas humorada e provocativa. Trata-se, portanto, de sublinhar certos aspectos que facilitem o efeito ofensivo, dentre eles destaca-se a importância da prosódia (entonação).

Segundo Fónagy (1983), a fala, enquanto fonação, apresenta bases psico-pulsionais. O som seria, portanto, o caráter gestual do conteúdo pulsional presente na entonação. Na entonação ocorre uma passagem do gesto corporal para uma mini-performance dramático-bucal no plano do aparelho fonatório. Em outras palavras, ocorre todo um engendramento específico das relações entre a glote, as cordas vocais e a laringe para possibilitar a entonação. Esta última seria o veículo privilegiado para a transmissão de mensagens emocionais. Fónagy (1983) descreve assim a “batalha” opressiva que se passa no aparelho fonatório quando emitimos proferimentos permeados de cólera, ou a doçura e a harmonia quando o que se faz presente é a ternura. O gesto se incorpora assim à própria linguagem verbal. Como dissemos anteriormente, xingar é fazer, tanto em um sentido pulsional (a catarse, a “evacuação” sádico-anal do falante, portanto um tom ofensivo, agressivo), quanto num sentido social, pois implica na efetivação de uma ofensa moral a alguém.

Além da intenção do falante e do efeito no ouvinte, faz-se fundamental destacar a eleição de certos vocábulos no preenchimento das condições da realização do ato de xingar. Em outras palavras, a escolha dos vocábulos não é aleatória, sendo precisa e fruto do processo histórico e cultural da sociedade. Ao ser um vocábulo ofensivo, deve marcar territórios interditados aos sujeitos sociais. Daí seu valor potencialmente degradador da moral do outro. Além disso, a palavra apresenta um determinado sentido privilegiado no uso corrente das pessoas, uma espécie de literalização, perdendo seu caráter polissêmico e polifônico[2]. A distinção, apresentada por Frege (1978), entre sentido e significado pode ser esclarecedora. Segundo este autor, sentido é a forma pela qual certo objeto nos é apresentado; o significado, por seu turno, aponta para a referência do conceito. O exemplo fornecido para a compreensão desta distinção é a diferença entre a estrela D´alva ou Estrela da Manhã (dois sentidos) e o planeta Vênus (mesmo significado).

Para a compreensão da escolha dos vocábulos, no caso dos xingamentos, tal diferença é essencial: não se xinga com o referente (ou significado), mas com o sentido! Exemplo clareador é a diferença entre “puta” e “mulher que faz sexo em troca de dinheiro”. Segundo Aranha (2002:293), “puta” é “um clássico dos insultos brasileiros, componente de inúmeras expressões populares e muito ofensivas. É a mulher que põe preço nas suas habilidades sexuais”. No entanto, se alguém que pretendesse ofender a sua interlocutora xingando-a através da fala “Sua mulher que faz sexo em troca de dinheiro!” causaria riso, ironia, e não ofensa. Portanto, o sentido (como Frege o compreende) faz-se aqui fundamental: trata-se de apontar uma postura ativa em relação à sexualidade, fato indesejável, na nossa cultura, para as mulheres. A escolha do vocábulo é, desta maneira, parte essencial da compreensão do ato de xingar, apontando para uma história das relações sociais, nas quais a categoria de gênero faz-se evidente e essencial.

Os xingamentos: a pesquisa

Como nos diz Araripe (1999: 23), “A percepção, com o tempo, não mais distingue o preconceito social latente no conteúdo emocional dessas palavras, derivados, este preconceito e esta emoção, de um drama mal resolvido em cada formação de estratificação social”. Em outras palavras, para compreender o efeito degradador dos termos utilizados nos xingamentos, faz-se essencial não apenas estudar a história desses termos, mas também as situações às quais eles permaneceram ligados através de condicionamentos sociais (ainda que de maneira não consciente).

A quem ainda pensa que xingamentos são meras palavras (sem conseqüências psíquicas, sociais e políticas), fazemos nossas as palavras de Depeche (2008:211-212):

Quantas vezes ouvimos o argumento apaziguador ‘é só uma expressão’. Porque uma expressão feita, um chavão seria mais inofensivo do que uma asserção qualquer? É justamente o contrário, pois as reiterações de uma mesma imagem naturalizam-na na mente do(a) receptor(a). Deixam uma impressão que alivia seu impacto pelo fato de ser familiar (....) A força do hábito!  

O xingamento pode assim ser considerado um sintoma da sociedade na qual ele aparece (no nosso caso, patriarcado capitalista), e mostra, justamente pelo caráter de ofensa que ele contém as regras e valores apregoados por essa sociedade. Além disso, o xingar é ato de fala que não apenas repete esse valores, mas os reafirma. Em outras palavras, independentemente da consciência do falante ao proferi-los, os xingamentos veiculam uma prática baseada nos valores atribuídos aos diferentes gêneros. Aqui, juntamente com Bordo (1997), podemos afirmar que a prática vem antes da crença.

Mas por que optamos, no presente artigo, tomar o vocábulo “vagabundo” como xingamento privilegiado?

Em estudo recente, realizado por nós[3], observou-se, em um grupo de 375 adultos entrevistados (homens e mulheres) de classe média, em Brasília, que o pior xingamento considerado pelas mulheres (66,2%), atribuível a seu sexo, possui caráter sexual ativo (“puta”, “vagabunda”, “galinha”, “piranha”, por exemplo), enquanto que o pior xingamento, considerado pelos homens (46,6%), atribuível ao sexo masculino, seria relacionado a comportamento sexual, compreendido aqui de forma passiva (“viado”, “boiola”, “corno”, etc). Dentre os homens, o xingamentos relacionados aos traços de caráter de auto-investimento (“vagabundo”, “fracassado”, “pobre”, etc.) apareceram em segundo lugar (37,8%). Estes traços de caráter quase sempre estão relacionados à idéia de produtividade e reconhecimento social (o dinheiro como uma forma de reconhecimento). Por outro lado, em segundo lugar (10,94%), apareceram como piores xingamentos atribuídos às mulheres a elas mesmas, os de caráter relacionais (tais como “falsa” e “interesseira”).

Os gráficos abaixo apontam para a expressividade destes dados:

Gráfico 1- Piores xingamentos atribuídos a uma mulher, considerado por mulheres

Gráfico 2- Piores xingamentos atribuídos a um homem, considerado por homens

Pode-se perceber a expressividade da freqüência dos xingamentos de caráter sexual em relação às mulheres (quase 70% das respostas), que somados aos traços de caráter relacionais, perfazem 77,14% das respostas. Já nas respostas masculinas, houve uma alta freqüência de xingamentos relacionados a comportamento sexual (“passivo”) e traços de caráter de auto-investimento, perfazendo a soma de ambas o total de 84,4% das respostas.

O termo “vagabundo” foi privilegiado na freqüência dos dois grupos, como um dos piores xingamentos atribuíveis tanto a um homem, quanto a uma mulher. No entanto, quando atribuído a uma mulher, o termo toma conotações sexuais ativas; enquanto que, quando atribuído a um homem, toma conotações de traços de auto-investimento, no sentido da produtividade que apontamos acima. O termo “vagabundo” é, assim, um amálgama importante de valores de gênero presentes não apenas na nossa linguagem, mas em seus usos (e o que isso abre em relação às nossas vidas).

Ora, é essa ambigüidade do termo (que o faz tomar nuances de sentidos tão diferentes), a depender do sexo da pessoa a quem seu uso é dirigido, que o faz tão fecundo. Isto é, da banalidade do seu uso no cotidiano, seja nas ruas, seja nas novelas, encontramos nele a possibilidade de irmos mais além, e repensarmos, através de sua problematização, a forma de vida da qual ele faz parte.

“Vagabunda” e “Egoísta”

O uso do termo “vagabundo”, em seu sentido feminino, parece apontar que, apesar das mudanças aparentes, as estruturas sociais e seus valores permanecem profundamente patriarcais. O xingamento, como ato de fala, não apenas reproduz esse sistema, mas o fortalece e o revivifica no cotidiano, constituindo-se como uma microfísica do poder, que diz às mulheres aquilo que lhe é interditado (exercer livre e ativamente seu desejo) e, por revés, o que lhe é desejável (a renúncia sexual). Como nos diz Perrot (2003), o corpo das mulheres deve ser silenciado e seu desejo também deve sê-lo.

Nesse sentido, uma boa saída para o desejo das mulheres seria o tornar-se mãe, pois, diferentemente do homem, é de sua “natureza” ser recatada. Sua esfera firma-se, sobretudo, na intimidade, na casa e nas relações. O contrário ou oposto de “vagabunda” seria, assim, a “mulher de família”. No entanto, neste espaço (doméstico) a renúncia sexual total não é apenas interditada, mas sinal de alguma doença:

(...) até fins do século XIX, o discurso dos médicos brasileiros sobre o sexo girava em torno de duas temáticas centrais e contrapostas: ‘(...) prostituição, concebida como espaço da sexualidade doente, como lugar das perversões; e a do casamento, concebido como instituição higiênica e único espaço reconhecido da sexualidade sadia (Maia, 2008:64-65).

A Psiquiatria, como vertente da medicina no século XIX, contribuiu bastante na afirmação deste quadro da higienização burguesa dos comportamentos:

As mulheres que se conservavam no seio da sociedade não eram menos vigiadas pelo olhar psiquiátrico, mas sofriam vigilância distinta e penalizadora (....). As normas culturais da sociedade criaram uma imagem onde as mulheres eram idealizadas como anjos do lar guardiãs da virtude. Moralistas e médicos formulavam as normas e o seu destino anatômico, considerando-as especialmente adequadas para a maternidade e os deveres domésticos (Garcia, 1995: 57).

As mulheres que transgredissem, seja em relação à afirmação da atividade de seu desejo, seja na busca de uma emancipação profissional, corriam sérios riscos de serem consideradas como mentalmente insanas ou imorais. Como nos diz Perrot (2003: 21), “assim se opera uma construção sociocultural da feminilidade (...) feita de contenção e discrição, doçura, passividade, submissão (sempre dizer sim, jamais não), pudor silêncio. Eis as virtudes cardeais da mulher”. Trata-se, muitas vezes, da transformação e da constituição da “mulher função” (Zanello, 2007). Isto é, daquela que se responsabiliza pelos cuidados dos outros e da casa, residindo aí sua verdadeira “essência”[4]:

Mesmo nos países que afirmam manter igualdade dos sexos, certos traços e atividades ainda são comumente atribuídos às pessoas do sexo feminino (...) Algumas das características consideradas como femininas são o bom comportamento,, a exemplaridade, a bondade, o cuidado de doentes, velhos e crianças, a castidade e a pureza de coração. Se à primeira vista esses traços parecem ser positivos, um exame mais atento mostra como tais qualidades atribuídas a ela terminam por oprimi-la levando-a à submissão. Forjada a essa condição, ela ganha uma posição de segunda classe, passa a ser um não sujeito e atinge o estado de objeto (Silva, 2008).

Para West & Zimmerman (2002), quando se fala em “trabalhos domésticos” trata-se não apenas de um trabalho designado como “trabalho de mulher”, mas que, para uma mulher o se engajar nele, e para um homem, o não executá-lo, é desenhar e exibir sua “natureza” de mulher e de homem. Para estes autores, o gênero é assim uma prática no gerúndio: o doing gender.

O xingamento “vagabunda” é, portanto, um amálgama de uma tradição que fez história e que se inscreve nas nossas práticas do cotidiano, na invisibilidade do controle social que, como nos diz Foucault (2006), deixou de ser um poder repressivo, para ser um poder constitutivo. De outra maneira, porque seria então o termo “vagabunda” tão ofensivo?

O binômio vagabunda/ mulher de família aponta, segundo Guimarães (2008), para “o que se faz, diz e se espera das mulheres, em sociedades patriarcais”; o que “sempre envolve, de alguma maneira, algum tipo de controle, traduzido em violência e exortação, elogio e censura” (Guimarães, 2008: 40).

Além disso, como apontamos em segundo lugar como xingamentos considerados como mais ofensivos por mulheres a elas próprias, apareceram os de traços de caráter relacionais, isto é, que ferem a dita “essência” feminina do cuidado com o outro, marcado pela abnegação, delicadeza, doação. Os valores atribuídos às mulheres como lhe sendo “naturalmente” próprios são, como dissemos acima, os do cuidado do outro. Ou, nas palavras de Bordo (1997: 25):

Por um lado, nossa cultura ainda apregoa amplamente concepções domésticas da feminilidade, amarras ideológicas para uma divisão sexual de trabalho rigorosamente dualista, com a mulher como principal nutridora emocional e física. As regras dessa construção de feminidade exigem que as mulheres aprendam como alimentar outras pessoas, não a si próprias, e que considerem como voraz e excessivo qualquer desejo de auto-alimentação e cuidado consigo mesmas. Assim, exige-se das mulheres que desenvolvam uma economia emocional totalmente voltada para os outros.

A díade “renúncia sexual” e “amabilidade/disposição e cuidado” apareceram aqui de maneira reversa, como lugar construído potencialmente para a ofensa moral das mulheres e, também, como manutenção da construção social da “essência” feminina.

Por fim, chama-nos a atenção que, em um dicionário tão culto como o Houaiss & Villar (2001), o termo “vagabundo” só apareça em seu cotidiano de uso, no masculino; enquanto no feminino, a sua definição seria “formiga-de ferrão”! Na acepção masculina, encontramos a definição que apareceu em grande parte dos questionários e que comentaremos mais adiante: “que ou quem leva vida errante, perambula, vagueia, vagabundeia; quem leva a vida no ócio, indolente, vadio; que ou quem age sem seriedade ou com desonestidade, malandro, canalha, biltre (...)” (Houaiss & Villar, 2001: 2821). No entanto, Aranha (2002: 349) em seu minidicionário sobre insultos, define o termo “vagabunda” da seguinte maneira:

"[...]o feminino de vagabundo é sinônimo de piranha. Há uma clara tendência a identificar a mulher que não trabalha como promíscua sexual. Se ela tivesse um ofício e se dedicasse a ele, certamente, não teria tempo para copular tanto. É o que sugere a sinonímia entre vadia, vagabunda e piranha."

Resta-nos a questão acerca desta ligação entre o “não trabalho” das mulheres e sua associação a uma vida sexual ativa. Seria qualquer trabalho aqui? Um trabalho remunerado, público? Ou o trabalho do cuidado com o outro, com os filhos, com o marido, com a casa, enfim, os ditos traços de caráter relacionais? Uma hipótese a ser pensada é que o sexo permitido e incentivado para as mulheres se da(va) dentro da instituição do casamento, com fins procriadores, garantindo as “verdadeiras” atribuições das mulheres, que seriam a maternidade e o cuidado com os outros. Não ter marido, não ter filhos... um perigo que pode(ria) levar à devassidão! (a um sexo por puro prazer?)

Destaca-se aqui para nós, portanto, o imbricamento entre essas categorias, visto que elas se inscrevem dentro de uma mesma matriz, ou como nos diz Swain (2007:207):

"Mãe e esposa, família, sexo domesticado, moralidade, espaço privado, reprodução do social; prostituta, mulher pública, liberação do vício e da devassidão latentes no feminino: essas categorias, que habitam a imagem do feminino, são fundadas nas premissas da heterossexualidade e nas matrizes institucionais do patriarcado. Assim, as mulheres só realizam seu ser no encontro incontornável com o masculino, para dar-lhe uma descendência e apaziguar seu desejo."

“Vagabundo” e “viadinho”

O termo “vagabundo”, quando usado no masculino, também diz ao homem o que lhe é desejável (e o valor através do qual será julgada a totalidade de sua pessoa): a produção, a atividade, o rendimento pessoal.  Os valores aqui representados seriam os de individualização, autonomia, singularidade (Bordo, 1997), mas também de desempenho, produtividade, sucesso profissional e financeiro como equivalentes do sucesso desse processo de individualização (ou seja, um homem é bem sucedido se ele é esforçado para produzir e acumular, e é reconhecido por isso). Os xingamentos também apontam para o que lhe é interditado: a renúncia a esse padrão de rendimento.

Como nos diz Matos (2003), ao se referir à sociedade patriarcal, “aos homens caberia enfrentar a competitividade do mundo público, enquanto as mulheres deveriam continuar voltadas para o privado, tendo na maternidade o ponto definido da feminilidade” (Matos, 2003:123).

A “essência” masculina se firmaria, dentre outras coisas, na idéia de virilidade no exercício laboral, cujo prêmio maior seria o status de poder conferido, nos dias atuais, pelo dinheiro. O termo “vagabundo”, bem como os demais relacionados a traços de caráter de auto-investimento, apontam, nesta via, a contramão da virilidade esperada na produtividade do homem, para que ele seja reconhecido e valorizado como tal. Eles sublinham, portanto, a falência das idéias de potência, produtividade, rendimento e eficiência.

A afirmação do capitalismo segue, desta maneira, junto com a redefinição da masculinidade tradicional: a força física e a honra foram substituídas pelo sucesso, o dinheiro e um trabalho valorizado:

"O macho é considerado o provedor das necessidades da família. Ainda que sua mulher possa trabalhar remuneradamente , contribuindo, desta forma, para o orçamento doméstico, cabe ao homem ganhar o maior salário a fim de se desimcumbir de sua função de chefe. Logo, quer seja o único provedor das necessidades familiares, quer seja o principal deles, não lhe é permitido fracassar "(Saffiotti, 1987: 24).

Além dos traços de caráter de auto-investimento, e com uma freqüência um pouco mais expressiva, apareceram aqueles xingamentos cujo conteúdo apontava para o comportamento sexual passivo.

Segundo Garcia (1995), na contraparte da higienização burguesa dos comportamentos, o homem passou a ser considerado

"O oposto exato da mulher. O vigor físico e intelectual dominava seu perfil emocional. Moldado por tais qualidades másculas e viris, era menos propenso ao amor do que as mulheres. Sua verdadeira inclinação era para o desejo do gozo puramente sensual." (Garcia, 1995: 71-72).

Azize & Araújo (2003) apontam, neste sentido, o quanto a representação de homem viu-se, em nossa cultura, cada vez mais aderida à representação de virilidade. A virilidade laboral reflete-se na virilidade sexual, sendo comuns metáforas laborais por parte dos homens para se referirem à potência sexual. Exemplo seriam as palavras “desempenho” e “performance” para descrever o ato sexual:

A construção da masculinidade vai muito além do fato de se ter nascido homem ou não; o que conta é a ‘excelência de desempenho’. Essa excelência de desempenho esperada de todo ‘homem de verdade’ possui ainda uma especificidade: não se trata apenas de atingir um padrão viril assumido como dominante, mas de parecer, transparecer, falar, demonstrar esta situação (Azize & Araújo, 2003: 141)

Segundo Chacham & Maia (2008), uma das formas pelas quais a afirmação da virilidade masculina aparece na linguagem, são as denominações comuns aos órgãos genitais masculinos e femininos:

"Com relação ao corpo do homem, a linguagem sobre o pênis elabora a força e a superioridade dos genitais masculinos, bem como a sua função como instrumento ligado à atividade, à violência e à violação (pau, caralho, cacete, pica, ferro, vara). Com relação ao corpo da mulher, a linguagem aponta para uma anatomia deficiente, inferior e passiva, objeto da violência e paradoxalmente, ao mesmo tempo, um local de perigo por si só (buraco, gruta, racha, boca mijada) "(Chacham & Maia, 2008: 81)

A virilidade se afirma assim, tanto na vida laboral, quanto na vida sexual: provas da masculinidade. Xingar, portanto, um homem de vagabundo é colocar em xeque sua masculinidade, tendo em vista que sua virilidade é posta à prova, é colocada em dúvida.

Para Badinter (1992), ser homem é uma construção que ocorre no imperativo: a frase comumente proferida aos meninos, “seja homem!”, aponta que a virilidade não seria algo “natural”. Neste sentido, ser homem implicaria um trabalho que parece não ser exigido das mulheres, pois ninguém diz a elas “seja mulher!”. A virilidade deve ser provada, construída, “fabricada”:

"Dever, provas, competições, essas palavras dizem que há uma verdadeira tarefa a realizar para vir a ser um homem (...) O homem é então uma espécie de artefato, e como tal ele corre sempre o risco de falhar. Defeito de fabricação, falha da máquina viril, em suma um homem fracassado." (Badinter, 1992: 15).

Segundo Badinter (1992), a masculinidade é construída, na sociedade patriarcal, como identificada à heterossexualidade. Isto é, “na medida em que nós continuamos a definir o gênero pelo comportamento sexual, e a masculinidade por oposição à feminilidade, é inegável que a homofobia, da mesma maneira que a misoginia, têm um importante papel no sentimento de identidade masculina” (p. 172). A homofobia, que apareceu nos xingamentos relacionados ao comportamento sexual dos homens, relaciona-se ao “ódio das qualidades femininas” (Badinter, 1992: 172). A virilidade sexual masculina parece assim construir-se na afirmação de uma negação da feminilidade, na evitação de qualquer coisa, de modo mais negativo que positivo: ser homem, neste sentindo, é não ser doce, não ser afeminado, não ser submisso... Os xingamentos sexuais apontam para um sentido de passividade, relacionado nas representações de gênero, ao “ser mulher”.  O xingamento sexual considerado mais ofensivo neste caso (“viadinho”) é, portanto, aquele que aponta para uma proximidade, ou qualquer experiência que possa aproximá-lo, de ser uma simples “mulherzinha”.

A noção de virilidade seria assim eminentemente relacional, construída face e para outros homens e contra a feminilidade, numa espécie de medo do feminino. É neste sentido, que a virilidade deve ser eternamente provada, ficando o feminino relacionado à falta, falha, falência e vulnerabilidade.

Apesar da alta freqüência de respostas relacionadas ao comportamento sexual em homens, é curiosa a diferença entre a freqüência dos xingamentos relacionados ao comportamento sexual considerado em mulheres. Entre as mulheres essa freqüência foi muito mais alta, sugerindo o quanto o controle da sexualidade feminina ainda é muito mais efetivo.

Em suma, o termo “vagabund@” e seu uso no cotidiano da linguagem, presente no ato do xingamento, seja no masculino, seja no feminino, mostra assim importantes valores que subsistem em nossa cultura no que tange às relações de gênero. Aponta ainda (justamente pelo fato de ser ofensivo) distintos espaços e comportamentos que devem ser banidos da esfera social. A reflexão sobre o uso deste termo demonstra que, apesar da aparente abertura, ainda há hierarquias e atribuição de papéis sociais bastante diferentes, e enrigecidos, no que diz respeito às relações de gênero. Ou seja, apesar da pluralidade de possibilidades construtivas de masculinidades e feminilidades, o caráter reacionário dos xingamentos demonstra o quanto as estruturas de nossa sociedade encontram-se ainda baseadas em valores patriarcais. Daí a importância de levar a sério os xingamentos, pois “a linguagem das práticas sociais e os referentes simbólicos não questionados nos aprisionam: é necessário criar linguagens novas que correspondam ao que Wittgenstein chamou ‘outras formas de vida’” (Amorós, 2008: 13).

REFERÊNCIAS

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Valeska Zanello

Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília, com doutorado sanduíche na Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica. Psicóloga e bacharel em psicologia pela Universidade de Brasília. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Membro do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise. E-mail: valeskazanello@uol.com.br

Ana Carolina Romero

Graduanda em Psicologia.


 

[1] Exemplo retirado do trabalho de campo realizado no projeto de Filosofia na Escola. Este projeto, de base interdisciplinar (com a participação de monitores alunos de graduação em filosofia, psicologia e pedagogia) teve como objetivo provocar a atividade de pensar (filosofar com) em crianças do Ensino Fundamental, em escolas da periferia do Distrito Federal. Participei nos anos de 1999 e 2000 e minha experiência está descrita no artigo Porto Jr & Zanello, 1999.

[2] Muitos xingamentos são metáforas mortas, literalizadas pelo uso. Para Lakoff & Johnson (1986), as metáforas mortas são justamente as mais vivas, visto que estruturam nossa forma de ver, sentir e perceber o mundo. Ver Zanello, 2007.

[3] Zanello & Gomes, 2008. Estes dados são parte de pesquisa realizada de 2007 a 2010, com sujeitos de faixas etárias e classes sociais distintas, em Brasília. Foram aplicados questionários contendo 8 perguntas acerca dos piores xingamentos atribuídos a homens e mulheres (e em que situação) e melhores elogios (em que situação). Os dados foram submetidos a uma análise de conteúdo e também pragmática. Em breve serão publicados no livro Xingamentos: Entre a Ofensa e a Erótica.

[4] Dado interessante, nesse sentido, foi levantado pelo estudo da Fundação Perseu Abramo (Venturi & al, 2004), no ano de 2001, com 2502 mulheres brasileiras: 96% da entrevistadas apontaram a si  como a principal responsável pelos afazeres domésticos (cuidados com a casa, os filhos e com idosos e doentes familiares). O que poderia ser um mero dado estatístico, recebe nova leitura à luz das interpretações das relações de gênero.

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012