labrys,
études féministes/ estudos feministas
Caleidoscópio de palavras Norma Telles
Resumo Nas primeiras décadas do século XX, em diferentes locais do Ocidente - na França, na Inglaterra, na América do Norte e no Brasil - surgiram mulheres que tomaram as palavras e reformularam seus significados deixando legados importantes no que se refere à reflexão a respeito do ser humano em suas relações com outros humanos e com o meio ambiente planetário. O texto examina rapidamente alguns momentos marcantes dessas trajetórias modificadoras. Palavras chave: filósofa, antropólogas, escritoras.
O que calculam as sombras? Uma sombra maior dentro da luz. Maria Gabriela Llansol
O caleidoscópio permuta e transforma pedacinhos de matéria ou termos ou signos e também entretém e diverte. Para Lévi-Strauss é um dos exemplos de bricolagem, seleção e síntese de elementos diversificados pinçados da cultura que se alternam formando novos desenhos e desfazem dualidades entre arte, ciência, razão e desrazão. É algo que junta em uma única célula luz, cor, forma e movimento que parecem conter um relance da duração no instante fugaz do jogo de espelhos. O que faço aqui é uma construção narrativa, um liame entre instantes, fulgor nos giros de um caleidoscópio virtual que nos mostra, conforme a etimologia, kalei, beleza; eidos, o que é visto; forma, skopeo, isto é, a beleza da forma que é vista. No Ocidente moderno, especialmente a partir dos séculos XVII e XVIII, as pessoas passaram a se inscrever, através de dualidades, em um específico arranjo dos sexos, segundo o qual a sociedade se organizou. Os binarismos não se resumem a este aspecto, mas abrangem todas as categorias de pensamento da sociedade industrial, urbana e burguesa que universalizou e naturalizou as oposições, a começar pela primária homem/mulher, ou seja, pela diferenciação entre os gêneros. Foucault demonstrou sobejamente que o corpo é a superfície onde se inscreve a história enquanto Perrot enfatizou como as diferenças entre os sexos que marcam os corpos ali ocupam posição central. A definição de natureza feminina que emergiu a partir das últimas décadas do XVIII, formalizou papéis sociais complexos e as mulheres foram tidas ou como agentes metafóricos da danação e, por outro lado, como agentes da salvação, com direito a pedestal. Monstro ou Anjo do Lar, como marcou Woolf, as mulheres ficaram aquém ou além, mas sempre fora da cultura, uma cultura eminentemente masculina. A pressão, durante todo o século XIX, era para forçar as mulheres a se formarem e conformarem à imagem de uma feminilidade ‘inata’ que diretamente contradizia a busca de vida própria ou as exigências de práticas profissionais, se não o fizesse se tornava um monstro. O historiador Michelet e o fundador do positivismo, Comte, em meados do século XIX, foram arautos das virtudes da mulher como a freira residente da família burguesa. Em 1859, por exemplo, o historiador escrevia que o homem vai de drama em drama, um diferente do outro, experiência em experiência, batalha em batalha, pois a História segue em frente, cada vez com maior alcance e continuamente apelando a ele. Em contrapartida, as mulheres seguem o sereno e nobre épico semelhante aos cantos da natureza, em seus ciclos, repetindo-se com graça tocante (apud Dijkstra:1986:12). Essas idéias e essas práticas foram contestadas por muitas mulheres que reivindicaram educação, representação política, profissionalização e se espalharam com maior vigor a partir dos primeiros anos do século seguinte. No século XIX, paralelo as definições de gênero houve a definição das várias disciplinas que elencavam o que importava saber e nesse processo as mulheres não tiveram voz, mas se tornaram objetos de estudo. A ciência nova, especialmente a medicina ou a fisiologia, forneceram argumentos para provar a natureza inferior da mulher. E quando elas começaram a entrar limitadamente na esfera pública, gerando ansiedade e medo e passaram a concentrar uma crescente autonomia e possível independência financeira, tornaram-se assustadoras pois o que faziam era entendido como um desmantelamento da ordem patriarcal. Porem, as mudanças foram lentas e os padrões dominantes para homens e mulheres se impuseram de tal forma na sociedade do século XIX que acabaram por ser legadas ao século seguinte através não só das ciências como também dos Modernismos. Em Paris, em meados dos anos 20 do século passado, uma moça bem comportada caminhava pela cidade indo e vindo da universidade onde estudava filosofia, o que a faz parecer, a um observador mais atento, não ser assim tão comportada, não só por freqüentar a academia, como por buscar uma formação profissional e, pior ainda, na área da filosofia, quando a maioria das pessoas de então sabia, com certeza, não ser este um assunto para moças. Na concepção do Ocidente moderno a razão era masculina. Até o século XVII eram elaboradas doxografias, isto é, compilações de doutrinas filosóficas de pensadoras singulares e nos compêndios mais difundidos ainda eram mencionadas várias filósofas desde a Antiguidade. Porém, a partir do XVIII e especialmente no XIX, embora alguns livros tenham sido escritos sobre uma ou outra filósofa, nas histórias gerais da filosofia as mulheres foram desaparecendo, restando a menção somente a algumas místicas, mas então a mística não era mais considerada filosofia. O desaparecimento das mulheres do campo da filosofia foi drástico, nenhuma foi descrita como pensadora significante e original até avançado o século XX. A moça bem comportada que começamos a seguir foi a nona mulher a se formar em filosofa na famosa universidade fundada no século XIII. Foi colega de Merleau Ponty, Maheu e Sartre. Formou-se com láureas. Em 1926 a jovem iniciou anotações em cadernos que se tornariam os Cahiers de Jeunesse de Simone de Beauvoir (1908-1986), escritora, sacerdotisa das letras francesas, filósofa existencialista, advogada da causa das mulheres, modelo de comportamento, apreciadora de antigas filósofas e de escritoras ou antropólogas suas contemporâneas. Quando os Cahiers se iniciam, a jovem, proveniente de uma família burguesa provinciana, tem 18 anos, é Mlle Beauvoir. Nos Cahiers assiste-se “[,,,] dia a dia, de página em página, ao nascimento, em virtude da metamorfose de Mlle de Beauvoir [...] daquela que os amigos chamariam de Castor ”. (Le Bon, 2008, 36) Quatro anos de anotações sobre esta construção de si, quatro anos durante os quais se ensaia, se escolhe, explora oportunidades, recusa limites, é malsucedida, triunfa também, e produz com exclusividade ela mesma. Escreve: “Aceito a grande aventura de ser eu mesma (Idem)”; a afirmação engloba o fato de ser mulher, mas não se reduz a ele. E quando se chega às ultimas páginas dos Cahiers, em 1930, o que se encontra é outro ser cuja segurança é surpreendente. Duas décadas depois de ter começado os diários, em 1949, apareceu o livro que provocou escândalo e se tornou um marco histórico: O Segundo Sexo. Em suas mil páginas Beauvoir aglutinava reivindicações que há muito as mulheres faziam isoladamente, reunia movimentos de idéias reprimidos com rapidez, combates quase esquecidos, tentativas heróicas de mulheres que protestaram contra seu destino – Safo, Pisan, Wollstonescraft, Olympe de Gouges (p.170) e explicitamente liga seus esforços a elas. E deu ás mulheres uma voz única, fundadora e uma frase lapidar: “Não nascemos mulher. Tornamo-nos mulher”. (Beauvoir, 1979: 285) Ficou, a partir de então, completamente rompido o elo com o naturalismo até então inerente nas formulações sobre o corpo das mulheres e dos homens, por mais que até hoje alguns insistam nesse tipo de naturalização. Beauvoir, excelente escritora ela mesma, foi também uma primeira crítica literária feminista, ao examinar e reler textos, ações e mitos sobre mulheres e de mulheres. O seu livro, por outro lado, não se filiava a nenhuma movimento ou vaga feminista. A publicação precedeu em vinte anos a segunda leva do Movimento de libertação das mulheres na França e em dez anos o aparecimento do livro de Betty Friedan nos Estados Unidos onde. Nos anos 70, Beauvoir foi severamente criticada; as correntes universitárias dos 80, no entanto, tentaram sua ‘reabilitação’ que na América continuou nos anos 90. Apesar das críticas o livro, fundado em teoria igualitária e universalista, teve e tem um impacto formidável na cultura. Beauvoir usou a ontologia e a metafísica hetero-sexista de Sartre (LeDoeuff), mas o fez de modo a conseguir um retrato da condição das mulheres altamente influente e oferecer uma abordagem original para a compreensão do que torna a mulher um sujeito. E colocou no centro dos estudos a diferenciação entre sexo (biológico) e gênero (sociocultural) que se tornou preocupação de centenas de mulheres e teóricas nos últimos cinquenta anos até ser deslocado por outros questionamentos na atualidade. Por tudo, por sua obra e sua vida, penso que faria eco à Elisabeth Badinter quando exclamou à beira da sepultura de Simone de Beauvoir: “Mulheres, vocês lhe devem tanto! (Badinter:2008:54)”. Do outro lado do Atlântico, naquele início de século XX, outros ofícios e outros cenários. O termo feminismo foi primeiro empregado nos Estados Unidos por volta de 1911, quando escritores, homens e mulheres, começaram a usá-lo no lugar de palavras dos idos anos de 1800, como movimento das mulheres e problemas das mulheres, para descrever outras formas de agir na longa história das lutas pelos direitos e liberdades das mulheres. Esse novo feminismo visava ir além do sufrágio e de campanhas pela moral e pureza social buscando uma determinação intelectual, política e sexual. O objetivo das feministas americanas era um equilíbrio entre as necessidades de amor e de realização individual e política, o que parecia algo bem difícil de conseguir. A ‘tribo americana de feministas’ se formou em torno de mulheres que se reuniam para almoçar em um café em Greenwich Village e fundaram o Clube da Heterodoxia que durou de 1912 a 1920. Eram reuniões informais nas quais se discutia um grande número de tópicos, do pacifismo aos direitos dos afro-americanos e à revolução russa. No grupo havia reformistas envolvidas com sindicato de mulheres e socialistas; havia Democratas, Republicanas; havia anarquistas, marxistas, liberais e radicais (Showalter:2001:122). Não havia deveres ou obrigações e estavam unidas por certo tipo de feminismo que incorporava o direito à realização pessoal com experiências variadas em novos arranjos sociais e sexuais que acreditavam favorecer a liberdade pessoal. Conhecidas como Heteroditas, a partir de uma sátira de celebração do grupo escrita por Florence Guy Woolston em 1919 (Showalter:2001:121), elas abandonaram as noções da mulher no pedestal do século anterior, de um tipo de superioridade da mulher através da virtude do sacrifício, auto anulação e pureza sexual. Um dos ditames do grupo dizia: “[...]a tribo é conhecida como um grupo sem tabus [...] as Heteroditas dizem que o tabu é um ataque ao direito de desenvolvimento da mente e do espírito (Jacobs:1998:67)”. Este novo feminismo, além da qualidade ‘tribal’, tinha também qualidades iconoclastas e antropológicas e foi isto que a paródia de Woolston capturou. As mulheres do grupo se dedicaram ao método científico, ao trabalho de campo e a extensas pesquisas. Eram mulheres feministas que desejavam ter vidas amplas e intrépidas, sair de cidadezinhas e percorrer o mundo, deixar empregos corriqueiros e se tornar exploradoras, experimentar vários arranjos de vida, do solitário ao comunitário. A antropologia ofereceu oportunidade de aventura e de autoconhecimento (Showalter); era o inicio dos anos vinte, período considerado a idade de ouro da disciplina americana, quando Boas ensinava em Columbia e atraia renome e prestígio para seu departamento. A escola de antropologia que fundou rejeitava a visão vitoriana do homem branco anglo-saxão como ápice da evolução e contestava o qualificativo “primitivo” pregado em todas as sociedades que não a Ocidental. E também contestava noções de gênero e de raça. Boas apoiava mulheres estudantes e atraiu muitas delas para seu programa. Essa geração de antropólogas precisou lutar por aprovação, mas como lembra Showalter, várias foram heterodoxas e brilhantes, sua iconoclastia era disciplinar e estilística tanto quanto pessoal. Por outro lado, a popularidade que adquiriram tornou-as suspeitas para a academia. Uma das mais conhecidas cientistas sociais deste grupo foi Elsie Clews Parsons (1874-1941) uma pioneira que estudou sociologia em Columbia em 1899. Interessou-se por antropologia, fazia trabalhos de campo anuais no Arizona e no Novo México entre os Zuni, Hopi, Taos, Tewa Laguna e outros. Em seu trabalho como antropóloga e em sua vida como uma Heterodita feminista ela pedia mais flexibilidade e tolerância e uma organização social que não excluísse nenhum grupo ou pessoa. Foi também a primeira mulher a assumir a presidência da American Anthropological Association em 1941 e influenciou muitas outras a estudarem e seguirem carreiras, entre elas Ruth Fulton Benedict. Ruth Benedict (1887-1948) era poeta, publicou sob diversos pseudônimos, e fez planos em 1914 para um livro sobre a Nova Mulher, além de esboçar textos para uma série de biografias de mulheres do passado, mas não conseguiu interessar nenhum editor e desistiu da idéia. Ela visava buscar uma “chave para o significado da criatividade humana em seres que por acaso eram também mulheres (apud Showalter:2001;360”. Em 1919 Benedict freqüentou o curso de Parsons “Sexo na Etnologia”, em Columbia, e foi atraída pela disciplina exatamente pelo veio de tolerância em relação aos vários papéis para homens e mulheres em diferentes culturas e o respeito que várias sociedades demonstravam por desviantes e desajustados. Aproximou—se de Boas descobrindo idéias comuns e em 1923 defendeu seu doutorado, “O espírito guardião na América do Norte”, onde discute implicações culturais de uma experiência religiosa individualizada. Esses foram os temas que a interessaram durante toda a vida. Desenvolveu uma teoria da construção social da personalidade defendida em livros importantes como Padrões de Cultura (1934) e O crisântemo e a Espada (1946). Neles sustenta que toda cultura cria sua própria hierarquia de temperamento e valor, e que os proscritos ou desviantes de uma cultura podem ser heróis em outra. A mediação entre a cultura e a personalidade é construída por ela através da filosofia e a cultura é resultado de experiência acumulada. Benedict pensa um arco de infinitas possibilidades de comportamento onde cada cultura, não de forma consciente, escolhe elementos entre todas as possibilidades formando uma combinação. Padrões de Cultura, escrito, como contou, enquanto lia As Ondas de Woolf, foi traduzido para quatorze línguas diferente. Em quatorze idiomas começou-se a pensar que o corpo e a psique não eram algo ‘natural’ e ‘eterno’ mas sim uma superfície profundamente trabalhada pela cultura. E isso, na época foi novo. Feminista, anti-racista, relativista, Benedict, no entanto, pensava que os princípios morais subjacentes aos direitos humanos deveriam ser universais. A antropologia cultural de Boas tomava como compatíveis princípios particulares e os universais. Benedict estudou a relação entre personalidade, arte, linguagem e cultura, insistindo que nenhum traço existe isoladamente e sua premissa redirecionou os estudos, afastando-os do difusionismo de traços isolados então em voga. Mesmo refletindo sobre o indivíduo na cultura, não pensava ser negligenciável o temperamento inato nem o controle do individuo sobre seu meio ambiente. Pensava que “o propósito da antropologia é tornar o mundo mais seguro para as diferenças humanas”, e por isso enfatizou a tolerância. Ruth Benedict recebeu vários prêmios e foi presidente da American Anthropological Association. Era considerada uma mulher eminente em uma carreira erudita. Foi a primeira em antropologia a aplicar a disciplina para estudos de sociedades complexas (O crisântemo e a espada). Ensinou em Columbia e entre suas alunas estavam Ruth Landes (1908-1991) - que escreveu Cidade das mulheres, pesquisa sobre o papel das mulheres nos cultos de candomblé do Brasil – e Margareth Mead (1901-1978) que conheceu primeiro ao dar um curso em Vassar, atraindo-a para o grupo de Boas. Mead, em 1925, partiu sozinha para Samoa para estudar a adolescência entre as polinésias. Foi o início de sua “jornada de vida”, pois o livro que publicaria na volta, Coming to Age in Samoa (Adolescência em Samoa), de 1928, lhe traria fama internacional e, depois de sua morte, duras críticas que tentaram, sem sucesso, desacreditar totalmente essa sua pesquisa. Naquela ilha do Pacífico, baseada em convivência e em entrevistas com as jovens nativas, Mead concluiu que ali a adolescência não representava período de crise, ao contrário, era um amadurecimento lento de interesses e atividades. As adolescentes viviam, como todos os jovens, com vários amantes e depois se casavam na própria vila, tinham filhos e se sentiam bem ao realizar essas ambições. Os habitantes de Samoa, além disso, encaravam o sexo como arte que exigia experiência e técnica. Aceitavam práticas homossexuais como brincadeira e estupros eram raros. O que tornou esse estudo sensacional foi que em um último capítulo a autora usava esse exemplo para criticar os costumes sexuais e o casamento entre americanos. Se a adolescência não era um período biológico de crise física e emocional, como mostrava seu estudo, porque para as jovens americanas era uma época tão problemática? É difícil medir o impacto que teve essa proposição na época, mas podemos fazer uma avaliação melhor se lembrarmos de que ainda hoje consideramos problemática a adolescência e os ciclos das mulheres, eventos corporais, as mudanças rítmicas que acontecem, acredita-se, têm impacto negativo o mais das vezes nas próprias mulheres e nas pessoas à sua volta. As mulheres que não eram dóceis e meigas no século XIX eram ditas histéricas, hoje existem outras e modernas síndromes, pois a cultura ainda não entende os ciclos da vida. Mead fez pesquisa também em Bali, em parceria com o marido Gregory Bateson, e esse estudo sobre o caráter balinês também ficou famoso por introduzir o uso da fotografia na etnologia. Depois dessas pesquisas e do sucesso internacional de seus livros, ela foi nomeada curadora do prestigioso Museu de História Natural o que lhe deu oportunidade, lembra Showalter, de escrever vários livros que se tornaram best-sellers e também fazer pronunciamentos antropológicos. Entre 1925 e 1975, publicou mais de mil e trezentos artigos, livros, resenhas e prefácios em ampla gama acadêmica e publicações populares. “Em seus anos pós-menopausa, anos que ela celebrou como momento de renovação de energias e deleite para as mulheres, ela era a antropóloga mais conhecida no mundo (Showalter:2001:145)”. Mead nunca abandonou seus temas prediletos e sempre fazia comparações com a sociedade norte-americana. Em um livro póstumo, Aspectos do Presente, os artigos ainda discutem casamento e divórcio, mulher atual, tabus, festas, criminalidade e pena de morte (que considera atentado contra os direitos humanos). Fala também de perigos ecológicos, do ar, da água. Fala em desarmamento, tem planos para a assistência social e analisa unidades familiares formadas apenas por mulher e filhos; como reformular a família? E a educação das crianças? Nessa área realizou experiências e influenciou centenas de outras mulheres; seus interesses foram pessoais, feministas, exploratórios e inovadores. Outra aluna e protegida de Benedict e Boas foi Zora Neale Hurston (1891-1960), a quarta mulher desse grupo de antropólogas educadas em Columbia. Nessa universidade sua presença era quase um milagre, lembra Showalter, pois tendo nascido pobre e negra, logo que pode começou a escrever para revistas literárias e em seguida foi para Nova Iorque com apenas $1,50. Queria se tornar escritora e dois anos depois, seu estilo afirmativo e seu talento peculiar tornou-a popular e proporcionou-lhe visibilidade entre os artistas da Renascença do Harlem, onde “ela irreverentemente chamava a si mesma de Rainha dos Niggerati (Showalter:Idem, 148)”. A Rainha Negra ganhou afinal uma bolsa de estudos e acabou em Columbia onde estudou o folclore afro-americano no sul dos Estados Unidos e o vodu, no Caribe. Ela combinou antropologia e arte o que lhe deu alguma vantagem, mas ao mesmo tempo colocou-a numa posição difícil, de observadora participante. As tensões para ela eram ainda maiores, lembra Showalter, na Renascença do Harlem onde a identidade negra e a autonomia estética eram celebradas. Hurston acabou entrando em “conflito com a dominância masculina no mundo da arte e com seus próprios demônios e desejos (Idem,148)”. A dificuldade de obter financiamento – a mesma que a acompanhava desde os primeiros estudos – continuou vida afora e talvez tenha sido uma das razões pelas quais não terminou o doutorado. Em sua ficção e ensaios, no entanto, Hurston conservou a liberdade de ser heterodoxa. No final desses anos vinte, na Inglaterra, foi na literatura que se estabeleceu outro marco. A linguagem é o objeto onde se inscreve o poder. Repetir a mesma linguagem faz com que o que se diz pareça natural e inato. A esta palavra que se gasta na repetição chama estereótipo. É preciso então, é possível e é o que escritores querem fazer, transformar a linguagem, livrando-a das escleroses. A literatura nunca foi, e não deve ser institucionalizada, por isso as mulheres em maior número dela se aproximaram e se tornaram autoras de peso. Na tradição inglesa a lista de escritoras importantes é longa. Na literatura escrita por mulheres, melhor seria perceber a escrita como decomposição, a arte como multiplicidade e diversidade de sentidos, como contendo as ambigüidades e os tons sombrios. Especialmente nos séculos XVIII e XIX, essa literatura faz parte justamente da tentativa de destituir a língua dos mecanismos de poder coercitivo e se opor aos estereótipos culturais. Tentativas de operar nas margens ou nas brechas da linguagem. Foi preciso, seguindo Woolf, indagar das dificuldades da artista mulher em seu processo de auto definição, que necessariamente precede toda criação, e as dificuldades eram de toda ordem. Woolf descreveu-as em um livro clássico. Em 1928, Virginia Wolf já era uma escritora consagrada. Nesse ano, foi convidada a dar duas palestras, em uma mesma semana, sobre Mulheres e Literatura. Essas palestras se tornaram a base de seu novo livro. A primeira palestra foi no King’s College e durante sua estada os rapazes lhe ofereceram um almoço requintado recriado no texto, enquanto no colégio para moças em Girton, tomou com elas uma refeição frugal, sopa de carne, bife, salada. Em seu diário anotou: “Sendo a estrutura humana o que é, coração, corpo e cérebro misturados e não contidos em compartimentos separados, um bom jantar é de grande importância para uma boa conversa. Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem quando não se jantou bem (Woolf:1985:27)”. Desde as primeiras páginas de Um quarto todo seu observa os efeitos da exclusão das mulheres das altas instituições de ensino, indagando o que teria sido pior, “as mulheres terem sido deixadas de fora de tais instituições (e por isso silenciadas) ou os homens terem sido trancados dentro delas (Gubar: xliii)”. Prossegue sua pesquisa consultando historiadores ou selecionando poemas ou romances das prateleiras, meditando sobre as privações e, paradoxalmente, vantagens de estudarem em casa. Além do brilho da prosa, a singularidade de Um quarto deriva também do momento histórico em que se originou. Escrito uma década depois de as mulheres terem conquistado o voto na Inglaterra, ele contempla o retrocesso deslanchado por essa vitória política, uma reação defensiva que escalou em ‘guerras do sexo’ que muitos de seus contemporâneos censuravam nos anos que se seguiram a Grande Guerra. As mulheres haviam adquirido alguns ganhos em educação, propriedade, profissões, direitos de divorcio, mas muitas feministas percebiam que só o voto não anularia os erros do passado e um dos méritos do livro de Woolf foi apontar as complexidades, econômicas, psicológicas, estéticas e os fatores sexuais relacionados com as mudanças. Publicado em 1929, ano da depressão mundial, Um quarto coloca a economia no centro da analise, considera que a herança recebida pela narradora é mais importante do que o direito de voto. Isso se deve talvez ao que Woolf chama empobrecimento das mulheres e examina como conseqüência da maternidade, ou de instituições sociais as quais a maternidade deu surgimento, assim como a longa historia legal que negava às mulheres casadas o direito de ter seus próprios bens. Em outro texto, Woolf incita as mulheres a procurarem não um legado, mas um salário. A necessidade de ter fundos para um sentido de autonomia saudável, a dependência de integridade intelectual de liberdade econômica, a moral embaraçosa de querer mais dinheiro do que o necessário: esses são temas que refletem uma mudança definitiva na situação pessoal de Woolf naquela época (Gubar, 2005: ii). Ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade de receita própria, Woolf fulmina “o instinto de posse, a ânsia de aquisição”, na passagem em que analisa a raiva e complexo de superioridade do Professor von X, e os faz paralelos a sua subseqüente diagnose da psicose do fascismo. Como a autoconfiança é minada pelas interdições contra as ambições intelectuais das mulheres? O gênio degenera em patologia quando as mulheres são informadas que isso as torna aberrantes ou anômalas? A psicologia da criatividade é o núcleo central de seu pensamento genealógico sobre as diferenças entre a capacidade artística de homens e mulheres. Em quais circunstâncias, ela quer saber, a criatividade incandescente se torna deformada pela humildade e amargura autodestrutiva? Como pais e mães, ou precursores maternos ou paternos inibem ou promovem o sucesso de seus descendentes? (Gubar, 2005 : iii). A importância da estética, decorrente desses questionamentos: o talento ou dom que se torna mortal se reprimido. No final do livro a capacidade redentora das obras de arte se torna quase uma fé espiritual, convoca mulheres a escreverem: “Milhares de canetas está prontas a sugerir o que devem fazer, e a repercussão que vos espera. Concordo que a minha sugestão é um tanto fantástica; prefiro, pois dar-lhe forma de ficção”. (Woolf, s/d:131) Bem mais ao sul, no Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras, nas últimas décadas do século XIX, e primeiras do século seguinte, eram várias mulheres que se sobressaiam como escritoras, tinham prestígio e eram admiradas. Elas não apareceram de repente, mas seguiram pelos caminhos abertos por autoras do século XIX que começaram a escrever nos grandes jornais, ou foram mesmo proprietárias de publicações, e que deixaram crônicas, contos e romances. E nos legaram sentenças e tarefas imperativas. Entre elas, quero lembrar antecessoras como Narcisa Amália que, em 1889, escreveu:
"[... ]eu diria à mulher inteligente (...) Molha a pena no sangue de teu coração e insufla nas tuas criações a alma enamorada que te anima (...) deixarás como vestígio (...) ressonância em todos os séculos ". (apud Reis:1949:103)
Um ano mais tarde, em 1890, uma escritora nascida gaúcha, mas que morou desde pequena na capital fluminense, Maria Benedita Bormann, cujo pseudonimo era Délia, escreveu um romance sobre a vida fictícia de uma escritora no Rio de Janeiro de então. E o fez contrapondo essa atividade à vida da mulher da época que "... ama e não calcula, desvive-se no carinho e no afeto". A escritora, ao contrário, calcula, é ambiciosa, vive em sua obra, na luta para realizá-la e na marca que deixa para o futuro. As condições que aponta como necessárias para o êxito da empreitada são uma casa própria, liberdade econômica, de idéias e sexual, condições semelhantes as que Woolf iria inscrever quarenta anos depois, em nossos corpos e em nossas almas, com Um quarto que seja seu. No percurso deste texto fiz uma colagem de imagens colocando lado a lado lugares, tempos e gentes diferentes para formar uma paisagem estranhamente nova, pois marcada pelo sucesso de mulheres que ocasionaram impactos permanentes na cultura. Outros cenários foram esboçados decorrentes da ação de uma filosofa francesa, antropólogas americanas e escritoras, uma inglesa e duas brasileiras. O encadeamento da narrativa não foca a discussão de idéias, sua aceitação ou sua contestação, mas salienta impressões de instantes iluminados que mudaram rumos, a despeito de criticas e ressalvas. Esbocei assim uma constelação de imagens/palavras em novo traçado, ao mesmo tempo em que fiz pontes entre o passado e o presente.
Nota biográfica: Norma Telles é historiadora formada pela USP, Mestre e Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP onde lecionou entre 1978-2006 junto ao Departamento de Antropologia e ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Pesquisou e escreveu sobre as escritoras brasileiras do século XIX e sobre mulheres artistas de outros períodos. Recuperou grande parte da obra da escritora Maria Benedicta Camara Bormann (1852-1895), Délia, e está disponibilizando os romances, contos e crônicas no site www.normatelles.com.br. Tradutora de vários livros é autora, entre outros de Cartografia Brasilis (esgotado); Ronda das Feiticeiras (2007); Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX (2012); e de artigos como “Belas e Feras”, “Bestiários (2008)”, “Délia ou a escrita como prática de si (2009)”, “Escritoras, escritas, escrituras 2009)”, “Fios Comuns (2009)”, “Memórias do fundo do poço(2011)”.
Referências Badinter, Elisabeth. ‘2008.Simone de Beauvoir est une héroïne, une conquérante’. In Le Magazine Littéraire, nº 471
Beauvoir,.Simone de. 1979.Le deuxième sexe. Paris : Gallimard
Beauvoir, Sylvie Le Bon. 2008 de. ‘La naissance du Castor ou la construction de soi’. In Le Magazine Littéraire, nº 471
Benedict, Ruth. s/d. Padrões de cultura. Lisboa; Edição Livros do Brasil
Bormann, MB. 1998. Lésbia. Florianópolis: editora Mulheres, , introdução e notas Norma Telles.
Campos, Narcisa Amália. 1889. “Uma Carta” in O Garatuja: Resende
Dijkstra, Bram. 1986. Idols of Perversity. New York: Oxford University Press,
Gubar, Susan. 2005. ‘Introduction’ to Virginia Woolf, A room of One’s Own. Harvest Book
Mead, Margareth. Coming to Age in Samoa. London: Penguin.
_____________. , 1982. Aspectos do presente. Rio de Janeiro: Francisco Alves Reis,
Antonio Simões. 1949. Narcisa Amália. Rio de Janeiro: Organizações Simões
Showalter, Elaine. 2001; Inventing herself. London: Picador
Telles, Norma. 2012. “Retratos de Mulher” in Gênero, Revista do NUTEG, vol. 10, n.2, 1º semestre
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