labrys,
études féministes/ estudos feministas
Domesticação ou rebeldia: o que os shojo mangá ensinam às suas leitoras Otavia Alves Cé
Resumo: Os mangás, histórias em quadrinhos japonesas, constituem um fenômeno crescente entre jovens do mundo todo. Eles possuem uma forma de editoração peculiar, com segmentos de mercado divididos por sexo e faixa etária. O shojo mangá (mangá adolescente feminino), é o segmento mais rentável do mercado editorial japonês. Em sua maioria de autoria feminina, o shojo poderia constituir um veículo de subversão da imagem feminina domesticada, entretanto, muitas autoras insistem em reafirmar estereótipos submissos de acordo com a ideologia patriarcal. O presente trabalho traz uma análise da representação das protagonistas do mangá NANA, o mais vendido no Japão. A fundamentação teórica busca sustentação na Análise Crítica do Discurso (ACD) na Gramática Visual nos Estudos de Gênero e na cultura pop japonesa. PALAVRAS-CHAVE: gênero; representação; cultura pop japonesa; mangá
Tradição e modernidade – a cultura pop O Japão é um país que agrega diferentes facetas. É o país das gueixas e dos samurais, com toda a sua tradição milenar, ao mesmo tempo em que também é considerado uma das maiores potências tecnológicas do mundo, lar de inovações e exportador de cultura po Figuras tradicionais do folclore, mesclam-se à jovens de cabelos arrepiados e coloridos vestindo roupas extravagantes no imaginário popular que constitui a identidade nipônica contemporânea. Nesse contexto, a cultura pop japonesa, um fenômeno crescente, ganha cada vez mais espaço dentro e fora das fronteiras nipônicas. É importante conceituar, então, o que se entende por cultura pop. Diferentemente da cultura popular (folclore), que abrange um conjunto de tradições e crenças, cujo conhecimento é universal para um determinado povo, e que foi construída ao longo da história, a cultura pop é um fenômeno mais “imediato”, que faz uso da mídia para a criação e divulgação de novos ícones. Segundo Sato, “[...]trata-se do impacto da industrialização e da massificação na geração de referências que se tornam comuns a um povo” (2007: 12). A característica marcante de um elemento integrante da cultura pop é que, obrigatoriamente, este possui uma grande identificação popular. Os fenômenos da cultura pop podem ser medidos de acordo com o índice de vendas e audiência ou com o tempo de permanência no mercado ou exibição na mídia. Diferente do folclore, os elementos da cultura pop são marcados por modismo, ou seja, são febre e fazem sucesso apenas por um determinado período de tempo, por mais extenso que este possa parecer. Outro fator que diferencia a cultura pop da cultura popular é a facilidade que o pop possui de ultrapassar fronteiras. Transportada através, da música, da moda, da arte, do cinema, entre outros, a cultura pop carrega em si valores ideológicos que são consumidos e reproduzidos em diferentes partes do mundo. A própria cultura pop japonesa ilustra bem essa afirmação. Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão, na condição de nação derrotada, se viu invadido por valores e produtos norte-americanos. Juntamente com o governo de ocupação de Tóquio, vieram filmes de Hollywood, rock n’roll e comics. Segundo Sato, o Japão se viu tomado por “[...] tudo que havia sido proibido ao público japonês, ou desprezado pelos japoneses durante a guerra por serem consideração símbolos do inimigo” (2007: 14). Até mesmo produtos alimentícios, como a Coca-Cola e os tradicionais hambúrgueres, e expressões da língua inglesa passaram a fazer parte do cotidiano nipônico.Entretanto, ao invés de meramente consumir tais produtos, a sociedade japonesa se apropriou dos mesmos e os reinventou e acrescentou elementos do seu imaginário e cultura.Esse não era o primeiro caso de customização estrangeira na história do Japão. Sua escrita atual e a religião praticada por muitos de seus habitantes, são exemplos que receberam grande influência externa, vinda em sua maioria da China e da Coréia. Modelando o American way of life à sua maneira, o Japão criou seus próprios ícones do pop contemporâneo, “ocidentalizado na forma, mas nipônico no conteúdo” (SATO, 2007: 15). Em 2002, o jornalista Douglas McGray publicou uma reportagem na revista Foreign Policy chamada “Japan’s Gross National Cool”, na qual sugeria que o verdadeiro poder japonês era oriundo do apelo e inserção global que sua produção pop cultural possuía. A propagação da cultura pop japonesa pelo mundo acabou por criar um movimento intitulado Cool Japan. Tal conceito propõe divulgar e estabelecer o país como uma referência em entretenimento, moda, arte e cultura contemporânea, entre outros aspectos da cultura po O Cool Japan tornou-se uma febre na mídia e na política. Entre o período que compreendia os anos de 1992 a 2004, a Japan External Trade Organization (JETRO), realizou uma pesquisa apontando a média de crescimento das exportações japonesas apontando para a marca de 20%, entretanto, a média de exportação de produtos da cultura pop, quando analisados separadamente, batiam a marca de 300% de crescimento (GALBRAITH, 2009: 50). A cultura pop japonesa tem atraído a atenção de todo o mundo com o Cool Japan e se mostrou como uma forma de revitalizar a economia, a sociedade e a cultura do pais e de maneira proativa espalhar conceitos e valores do Japão no exterior. Dentre as produções da cultura pop, destacam-se produtos tais como os mangás (histórias em quadrinhos) e animes (desenhos animados, normalmente originados dos mangás), por meio dos quais “crianças e jovens fisicamente distantes do arquipélago passaram não só a cultuar super-heróis com nomes em japonês, como também a conhecer muitos elementos da estética e do comportamento japonês – e a incorporá-los no cotidiano” (SATO, 2007: 22). Mangás e animes, com seus heróis caricatos, de cabelos multicoloridos e olhos gigantes, contribuem para a significação do Japão moderno, “cada vez mais ocidentalizado na forma, mas revelando aspectos tão antigos quanto os das imagens tradicionais” (SATO, 2005: 28). Responsável por cerca de 40% da indústria editorial no Japão (GALBRAITH, 2009:.141), os mangás, além de compor um mercado altamente rentável, são considerados como um dos mais importantes produtos exportadores da ideologia nipônica. A partir do final da década de 90, mangás e animes tornaram-se amplamente aceitos como forma de entretenimento no Ocidente, e os meios de comunicação de massa os tornaram acessíveis em todo o mundo (NATSUME, 2000; WILSON & TOKU, 2003). Além da estética diferenciada e atraente, a enorme influência social e comercial que os mangás atingiram ao redor do mundo pode ser atribuída à sua popularidade na construção de identidades de jovens por meio da cultura popular (TOKU, 2001c; WILSON, 2003; WILSON & TOKU, 2003). Ao redor do mundo é possível encontrar leitores e fãs de mangá que começaram a fazer as suas próprias histórias em quadrinhos inspiradas nos quadrinhos japoneses, além de formar fã-clubes e construir sites para exibir suas próprias criações com base no seu objeto de admiração.
O fenômeno mangá O termo mangá é empregado para denominar histórias em quadrinhos exclusivamente japonesas, ou seja, toda história em quadrinho produzida no Japão, da mesma forma como é o gibi no Brasil, comics nos EUA e mahwa na Coréia, por exemplo. A palavra mangá é o resultado da união dos ideogramas man (humor, algo não sério) e gá (grafismo, desenho), sendo sua tradução literal para o português “caricatura”, “desenho engraçado”. A palavra mangá foi usada pela primeira vez em 1814, para se referenciar à gravuras ukiyo-ê[1] feitas pelo ilustrador Katsushita Hokusai (1760 – 1849) , por muitos considerado como o maior mestre japonês da gravura. (GRAVETT, 2004: 24). Entre 1814 e 1849, Hokusai produziu um conjunto de obras em 15 volumes retratando cenas do dia-a-dia que o rodeava, deformando o desenho das pessoas que retratava de forma a salientar seus traços marcantes. Estas caricaturas de época receberam o nome de Hokusai mangá e representam os primeiros passos das charges e das histórias em quadrinhos no Japão. Com a chegada da Era Meiji na segunda metade do século XIX, o Japão saiu de um isolamento cultural de aproximadamente 200 anos o que propiciou um maior contato com o Ocidente. Sedentos por inovações, os japoneses procuraram assimilar tecnologias, costumes e ideologias que vinham do estrangeiro. Nessa época o trabalho do inglês radicado no Japão Charles Wirgman (1832 – 1891) destacou-se, pois este em 1862 criou a revista de humor Japan Punch, abrindo através das charges políticas um novo tipo de arte cômica aos japoneses. Além do trabalho de Wirgman, destacou-se também e a obra de Rakuten Kitazawa (1876 – 1955), que criou os primeiros quadrinhos seriados com personagens regulares e batalhou pela adoção da palavra mangá para designar histórias em quadrinhos no Japão. Com toda a modernização do país e com o desenvolvimento de uma linguagem de quadrinhos própria aos costumes e à realidade japonesa, o termo mangá se tornou sinônimo de caricaturas e HQs. A ideia de mangá como um estilo de desenhos e narrativa só surgiu no pós-guerra, com o trabalho de Osamu Tezuka (1928-1989), também conhecido como “Deus do mangá” (McCLOUD 2006: 128). Osamu Tezuka é considerado o criador do estilo de desenho que retrata as pessoas com olhos grandes e brilhantes. Seu trabalho foi influenciado pela obra de Walt Disney e pelo cinema europeu, já que na década de 40 ele adaptava para a linguagem dos quadrinhos técnicas de cinema como close-ups, long-shots e slow-motion, revolucionando a narrativa quadrinhística e fazendo com que os leitores se envolvessem mais com as histórias que criava. Apesar da influência estrangeira, os mangás, todavia, “[...] não são quadrinhos, pelo menos como as pessoas conhecem no Ocidente” (GRAVETT 2004: 14). Diferente dos comics e gibis, os mangás possuem um estilo de narrativa bastante peculiar, remetendo à linguagem visual advinda do cinema, como os story boards. Os mangás carregam um grande significado econômico, social e político no Japão. Eles são capazes de mediar “[...] questões sociais, como sexualidade e violência fora do discurso político, porque eles são taxados como uma forma popular, juvenil e subcultural de entretenimento” (GALBRAITH, 2009: 141). Autores de mangás possuem liberdade, quase infinita, de expor suas idéias e veiculá-las para as massas. Uma característica peculiar dos mangás é a própria forma. Seguindo uma evolução ao longo da história, o aspecto da sua apresentação atual nada tem em comum com os quadrinhos americanos e brasileiros, mais parecendo grossas listas telefônicas do que revistas. Os mangás possuem normalmente as mesmas características de formato: 18 por 25 centímetros, de 150 a 600 páginas. São impressas em papel jornal e monocromáticas. Cada revista apresenta várias histórias de autores diferentes, em sua maioria com continuidade serializada, convocando o leitor para a compra da próxima edição e, uma vez terminadas estas histórias, são compiladas no formato de livros de capa mais grossa, papel de qualidade superior e formato menor, os chamados tanko-hon. Segundo Luyten (2002), esta forma de editoração esta relacionada ao hábito de manuseio de revistas no Japão. Por sua enorme quantidade de páginas (em torno de 300), a armazenagem das revistas, lançadas semanalmente, se tornaria um verdadeiro estorvo. Desse modo as revistas de mangá são um produto descartável e “[...] é comum vê-las largadas nos metrôs, trens e ônibus, nas próprias estações depois de lidas. Ou então são vendidas a peso para reciclagem de papel“ (LUYTEN 2002: 44 ). O admirador de alguma história em particular poderá adquiri-la posteriormente no formato tanko-hon quando a série terminar. Além do formato, os mangás são caracterizados pelo seu sentido de leitura, da direita para a esquerda (mantido em suas versões ao redor do mundo), pela dramatização intensa, expressa através de linhas de movimento e expressões faciais e físicas exageradas e pela representação gráfica dos sons (onomatopéias) como integrante da composição do desenho. Não há limites para os temas abordados nas histórias do mangás. Os temas abordados variam tanto quanto a quantidade de títulos existentes. Fantasia, aventura, vida escolar, drama, romance, ficção científica, horror, entre outros, constituem gêneros temáticos plausíveis de exploração. Outro fator que merece especial atenção é a construção das personagens nas histórias japonesas. Diferentemente dos heróis épicos, os mangás adotam personagens com características humanas, que, mesmo sendo capazes de feitos extraordinários, demonstram suas emoções com freqüência, tendo como princípio básico a perseverança para atingir um objetivo. O caráter humano das personagens reforça sua popularidade junto aos fãs. Heróis e heroínas dos mangás, em geral, são personagens com defeitos e qualidades como qualquer pessoa, o que possibilita a criação de uma empatia e identificação dos leitores para com seus heróis. O sistema editorial dos mangás também é diferente do que se encontra no Ocidente, onde a indústria de quadrinhos é abertamente direcionada ao público masculino. No Japão, os mangás são divididos e classificados por faixa etária e sexo, abrangendo desde crianças em fase de alfabetização até homens e mulheres adultos. Cada segmento possui características próprias, contando com linguagens, códigos e estilos de personagens adequados a cada gênero temático. Dentre os mais populares e rentáveis, destacam-se o shonen e o shojo[2], os mangás destinados ao público adolescente masculino e feminino, respectivamente.
O shonen e o shojo As histórias do shonen mangá, em geral, apresentam um jovem garoto em busca de um sonho que, para alcançá-lo, precisa passar por vários obstáculos até o desafio final (seja no cenário que for). A arte é detalhada e os traços são fortes. Segundo McCloud : “[...]as emoções podem aflorar, como o rosto dos protagonistas constantemente nos lembram, mas o senso de participação é físico, provocado pelo movimento subjetivo e por enquadramentos com pontos de vista vertiginosos” (2006: 220). Em grande parte, as histórias contadas nesses mangás privilegiam a aventura, a violência e o humor. Os temas deslocam-se desde guerreiros invencíveis, esportistas dedicados, até aventureiros em busca de um sonho, tendo como constante. condutas japonesas típicas tais como auto disciplina, perseverança, profissionalismo e competição. Alguns shonen mangá apresentam situações de erotismo leve e muita nudez, o que os classificariam como obras para maiores de idade no Ocidente. A arte é realística, buscando utilizar ao máximo recursos cinematográficos. Em especial nas cenas de batalha (seja ela uma luta de espadas ou uma partida de tênis), os autores do shonen esforçam-se em enquadrar detalhadamente cada momento, esticando a cena ao longo de vários requadros, imitando o efeito de cenas em câmera lenta. Tal técnica valoriza a dramaticidade da cena, enquanto personagens exageram em suas expressões transpirando seus anseios e desejos. O leitor do shonen é convidado a adentrar a ação, onde as composições de página e a linguagem corporal almejam gerar empolgação. Essa preocupação com a participação faz com os leitores experimentam, segundo as palavras de McCloud (2006: 221) uma “vibração visceral”. Em contraponto ao shonen, existe o chamado shojo mangá, os quadrinhos direcionados às garotas adolescentes. Contando com uma diversidade maior de títulos atualmente em publicação no Japão do que o shonen, o shojo é o segmento editorial que mais cresce dentre os mangás. Suas histórias são fundamentalmente compostas por romances, focando nas relações de amizade e amor entre garotas e garotos. Não diferente do shonen, os cenários onde as histórias do shojo se desenrolam não possuem um contexto fixo. Podem ser contados desde romances nos corredores de colégios, até lendas sobre a paixão de princesas e sacerdotisas habitantes de mundos de fantasia. Em sua maioria, os shojo são produtos de autoria feminina. Segundo Luyten, “[...] enquanto em outros países as histórias femininas são desenhadas por homens, no Japão é da mulher-desenhista para a mulher-consumidora, geralmente adolescente” (1985: 56). As autoras se fazem valer dos desejos e inseguranças do seu público alvo para contar histórias sobre heroínas com fácil identificação popular, compondo histórias que vendem “[...]sonho e fantasia em doses homeopáticas semanais e mensais dentro do clima de romantismo que as caracteriza” (LUYTEN, 2002: 51). Valorizando enredos melodramáticos, repletos de interações complexas entre personagens, o shojo transita entre temas como amores impossíveis, rivalidade entre amigas, separações dolorosas e escolhas dramáticas. Lágrimas vertem dos enormes e brilhantes olhos das personagens freqüentemente no decorrer de suas trajetórias cheias de provações. Essas muito comumente culminam em casamento e finais estilo “e viveram felizes para sempre”, ou em soluções dramáticas envolvendo a morte. Luyten considera perturbadora a tendência que louva a beleza do suicídio. Embora este faça parte da tradição japonesa, a autora salienta o enorme caso de heroínas solitárias, infelizes ou que sofreram agressões, tanto físicas quanto morais, e que encontram a solução no suicídio, ”[...] renascendo depois para uma românica vida após a morte” (2002: 54). A arte é bem detalhada, com traços finos e leves. Os olhos grandes são usados para demonstrar todo o drama da história. Embora a arte difira de artista para artista, o shojo mangá possui uma aparência e atmosfera “distintamente feminina” (GALBRAITH, 2009: 205). Suas páginas são altamente decoradas e preenchidas por retículas. Tipicamente apresentam padrões com ornamentos floridos, close up de página inteira e personagens cujos corpos extravasam os limites dos requadros desenhados nas páginas. O foco do shojo não é físico, pois os dilemas emocionais ocorrem internamente, na consciência das personagens. Muitas falas não se apresentam delimitadas pelos característicos balões, significando assim o pensamento da personagem. Desta maneira, quando as emoções afloram no shojo – fato frequentemente explorado – a “ação” da cena se dá na montagem de rostos expressivos precipitando-se por páginas rebuscadas. Nas palavras de McCloud: " Seja por meio de efeitos expressionistas para sugerir emoção, seja por transformações exageradas de corpos inteiros, a abordagem de shojo convida as leitoras a participarem da vida emocional de seus personagens, em vez de meramente observá-los "(2006: 220). As personagens femininas, sendo as protagonistas, são geralmente bonitas e com um estilo de desenho elegante, enquanto que os rapazes, ao contrário do que acontece no shonen, são muitas vezes andróginos. A imagem do homem idealizado está sempre presente e a busca do amor perfeito faz o shojo mangá caminhar. Apesar da aparência agradável, as protagonistas, em geral, são garotas cheias de dúvidas, que buscam o amor de seu par ideal e encontrar o seu papel e local na sociedade.
Shojo mangá, meninas e comportamento No Ocidente, a imagem das mulheres orientais, em especial a japonesa é muito associada à submissão e ao sistema patriarcal, devido à celebração das gueixas e cortesãs, lindas, dóceis e caladas, retratadas em gravuras, livros e filmes. Entretanto, anterior à Era Tokugawa (1600 – 1868), mulheres e homens possuíam direitos e deveres iguais na sociedade nipônica. Nessa época, ambos eram habilitados a exercer autoridade em assuntos relacionados à comunidade e assumir o posto de chefe de assumas famílias, assumindo a gerência e administrando seus negócios. A figura domesticada das mulheres foi incorporado à sociedade japonesa com a introdução da doutrina confucionista, a qual sugeria que toda “[...] mulher deveria viver uma vida de total subordinação feminina” (GRAVETT, 2004: 78). Dessa forma, muitas mulheres foram depostas de seus cargos de chefia em suas famílias, sendo reduzidas ao interior de seus lares e a trabalhos manuais e domésticos. Tal processo teve seu início nas classes mais elevadas da sociedade e aos poucos foi sendo introduzida às famílias menos favorecidas. Com o final do Xogunato e o princípio da Era Meiji (1868 – 1912), a subordinação feminina tornou-se uma realidade coletiva. Com a chegada da filosofia imperialista e militarista, a partir de 1930, os últimos resquícios de independência feminina foram apagados da sociedade japonesa. Era impossível manter uma família ou uma vida digna sem a presença de uma figura masculina. O panorama de subordinação extrema sofreu mudanças em 1947, com o final da Segunda Guerra Mundial e a supremacia americana. Fora imposta ao Japão uma nova constituição através da qual era concedido o direito de voto e igualdade perante a lei às mulheres. Entretanto, mesmo com este avanço, as mulheres continuaram exercendo sua condição domesticada, ao passo que eram desencorajadas a trabalhar, devendo abdicar de uma possível carreira em favor da criação dos filhos e do lar. A realidade cotidiana das mulheres japonesas era transposta para os primórdios dos mangás, os quais, até então, eram todos de autoria masculina. De acordo com Gravett (2004: 78), “[...] os artistas homens reforçavam essas expectativas limitadas com suas histórias sobre mães sábias e filhas obedientes nos mangás para meninas”. As histórias destinadas à garotas do pós-guerra refletiam a ideologia patriarcal vigente: meninas, que não eram mais crianças, porém também não eram adultas, deviam se preocupar em tornar-se mulheres refinadas, aptas ao casamento e à maternidade e dóceis e obedientes para com seus futuros maridos. O estereótipo das mulheres submissas e dóceis dos mangás sofreu um abalo em 1953, pelo autor Osamu Tezuka. Nesse ano ele publicou sua primeira série destinada à garotas, chamada Ribon no Kishi (que pode ser traduzido como “cavaleiro de lacinho”), a qual, anos mais tarde, viria a ser conhecida no Ocidente como A Princesa e o Cavaleiro. O mangá conta a história da princesa Safiri, uma garota que nasceu com duas almas e vê obrigada a esconder sua parcela feminina, e conseqüentemente seu amor pelo príncipe encantado, para lutar por seu reino e assumir o trono. A protagonista de Tezuka “[...] não era nenhuma rebelde feminista, mas foi um ponto de partida para as garotas mágicas e suas ambigüidades sexuais que se tornariam características do mangá shojo” (GRAVETT 2004: 81). Pouco mais de dez anos depois, os sinais de uma possível mudança no panorama dominado por visões masculinas começaram a se manifestar. O ano de 1964 marca a publicação do primeiro shojo mangá de autoria feminina. Nesse ano, Machiko Satonaka, uma garota de dezesseis anos venceu um concurso de talentos realizado pela revista feminina Ribon, possibilitando assim a publicação de seu mangá Pia no Shôzo (“Retrato de Pia”). A história sobre vampiros que Machiko escreveu e desenhou, abriu as portas do mercado editorial para autoras, sexo feminino. Nessa mesma época, outra mulher, Nishitani Yoshiko começou a criar histórias que retratavam romances envolvendo adolescentes japoneses contemporâneos. O shojo como é conhecido hoje, começava a ser modelado. Os anos 70 presenciaram uma invasão de mangakás mulheres. Com isso, revistas femininas semanais ganhavam cada vez mais espaço no mercado editorial. As MAGNIFICENT 49ERS, Ryoko Ikeda e Yamamoto Sumika são exemplos de nomes importantes dessa época. As autoras haviam conquistado seu espaço e criavam personagens mais complexas e convincentes que suas antecessoras. Segundo Gravett. “[...] essas mulheres levaram o gênero a territórios inexplorados e ajudaram a mudar toda a superfície da página do shojo, transformando-a numa tela do coração” (2004: 83). Entretanto, mesmo tendo posse de uma ferramenta tão poderosa, capaz de instruir e influenciar garotas, e até mesmo fazendo-as questionar sua condição submissa, muitas autoras seguem insistindo em reproduzir, de maneira geral, um estereótipo fragilizado e doméstico de mulher. Muitas heroínas dos shojo mangás são retratadas como tímidas, atraentes e encantadoras, normalmente descritas como femininas, frágeis e jovens. Seus conflitos são repletos de dúvidas e incertezas, comuns a qualquer adolescente, porém, em geral, essas protagonistas precisam ser impulsionadas por um fator externo – normalmente a busca pelo amor de um príncipe encantado. Elas podem possuir superpoderes, ou serem reverenciadas como deusas, porém seu objetivo final foca-se em encontrar um par ideal e viver uma feliz vida doméstica. Tal panorama exclui heroínas independentes e fortes. Mas estariam todas fadadas a viver a tragédia da incapaz princesa em apuros? Com base nesse questionamento desenvolvo a seguir uma análise comparativa entre as duas personagens principais do shojo mangá NANA, o qual possui a marca de maior vendagem no Japão, contando com mais de 34 milhões de exemplares vendidos[3].
Sobre NANA NANA é um shojo mangá de autoria da mangaká Ai Yazawa (1967 - ) publicado na revista Cookie, da editora Shueisha. Sua publicação foi iniciada no ano 2000 e atualmente encontra-se em hiato[4]. NANA conta atualmente com 21 volumes, além de uma séria de anime com 47 episódios e dois filmes live-action. No Brasil o mangá foi publicado pela editora JBC e, em 2011 o anime foi exibido na MTV Brasil. A história de NANA trata da vida de duas garotas japonesas, ambas chamadas Nana, palavra cujo significado é “sete”, considerado um número de azar no Japão. Apesar do nome idêntico, as duas protagonistas possuem personalidades e experiências bastante diferentes. Na trama, Nana Komatsu (o ideograma “Ko” no seu nome significa pequeno) e Nana Oosaki (a qual o “Oo” significa grande) acabam se conhecendo e fazendo amizade por acaso, quando ambas saem de suas cidades no interior do Japão para tentar a sorte em Tóquio. Depois de muitas coincidências, as duas acabam indo morar juntas num apartamento numerado como 707.
Figura 1. Nana Komatsu (esq.) e Nana Oosaki – páginas de abertura dos volume 1 e 3 de NANA, respectivamente. O mangá apresenta uma leitura um tanto mais adulta que a maioria dos shojo mangás, ao passo que suas heroínas não são colegiais adolescentes, mas sim jovens no início dos seus vinte anos. Todavia, conforme dita a cartilha do shojo, o mangá conta a história de garotas que buscam seus sonhos e tentam encontrar seu lugar na sociedade, regadas à altas doses de romance, drama e lágrimas. No decorrer de suas páginas, várias marcas de produtos reais são propagandeadas na série, tais como a grife de roupas e acessórios de Vivienne Westwood, instrumentos musicais das marcas Fender e Gibson e várias marcas de cigarros. Juntamente com a identificação com as personagens, tal divulgação acaba influenciando as leitoras de NANA a desejarem e comprarem tais produtos.
Metodologia de Análise
As bases teóricas para este estudo concentram-se nos fundamentos da Análise Crítica do Discurso, nas categorias de análise da Gramática Visual e nas teorias sobre gênero e representação. A Análise Crítica do Discurso (ACD) pode ser definida como “[...]campo fundamentalmente interessado em analisar relações estruturais, transparentes ou veladas, de descriminação, poder e controle manifestas na linguagem” (WODAK, 2004: 225). Ela concebe a linguagem como prática social (FAIRCLOUGH; WODAK: 1997) e considera o seu contexto de uso como elemento vital (WODAK, 2000). A análise crítica do discurso em essência não constitui um método, mas sim “ [...] um domínio de práticas acadêmicas, uma transdisciplina distribuída por todas as ciências humanas e sociais” (VAN DIJK, 2008: 11) e “[...] que estuda principalmente o modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados, reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político” (VAN DIJK, 2008: 113). Caracterizada como heterogênea e transdisciplinar, a ACD também se diferencia de outras teorias por tratar o discurso de uma maneira que extrapola a esfera do verbal, incluindo em seu campo de análise elementos visuais, possibilitando uma ampliação do universo a ser pesquisado. Para Van Dijk, a ACD pode ser definida como “[...] uma perspectiva compartilhada sobre como fazer análise lingüística, semiótica e do discurso” (1993: 131). Como no presente estudo proponho-me a analisar representações de personagens advindas do mangá – um meio impresso cuja leitura e significação se dão tanto pelo texto verbal como pela linguagem visual – torna-se relevante o emprego de mecanismos de análise da gramática visual proposta por Kress e van Leeuwen. Com sua teoria os autores buscam “[...] desenvolver um quadro descritivo que possa ser usado como ferramenta para análises visuais” (KRESS; VAN LEEUWEN: 1998, 12 – tradução minha). Da mesma forma que a linguagem textual, a linguagem gráfica também é um campo onde as relações sociais se manifestam. Cartazes, fotografias, histórias em quadrinhos entre outros, comunicam e produzem – e também reproduzem ou alteram – sentidos e significações. Partindo deste pressuposto, Kress e van Leeuwen buscaram compreender e identificar possíveis padrões que se repetem nos diversos modos de se representar visualmente e nas relações que estas representações constroem. E, assim como as gramáticas de línguas descrevem como combinar as palavras em frases, sentenças e textos, a gramática visual de Kress e van Leeuwen busca descrever a forma como pessoas, lugares e coisas relacionam-se em composições visuais de maior ou menor complexidade e extensão (KRESS; VAN LEEUWEN, 1998: 1). A pesquisa do presente trabalho centra-se nas duas protagonistas de NANA, focando seu grau de representatividade em relação à construção de identidade e performance de gênero. Uma triagem foi feita ao longo dos 80 capítulos publicados na edição brasileira, selecionando falas e cenas representativas de cada protagonista, a fim de verificar como se relacionavam, o que diziam, como se comportavam, que reação geravam uma na outra. Os recortes aqui apresentados são aqueles onde há uma marcação maior em termos de representação de gênero e nos quais processos ideológicos são mais claramente percebidos. Convém lembrar que a ideologia é aqui concebida como parte do processo interpretativo, no qual estou implicada como produtora de significados. Em momento algum nesta análise criei expectativas de uma ilusória neutralidade, pois como prega a ACD, nossas escolhas como analistas não são “esterilizadas”, ou separáveis de nossa bagagem cultural. Tomando como fundamento as categorias de análise propostas por Kress e van Leeuwen em sua gramática visual, foram explorados basicamente recursos associados a: a) Modalidade, para verificar o grau de veracidade contido na cena, analisando as tonalidades e os recursos gráficos nela utilizados; b) Perspectiva, no intuito de verificar o quão presente se faz a participação do observador, conferindo a relação que a imagem estabelece com ele; c) Saliência, para identificar uma valoração maior ou menor na representação dos personagens em uma determinada situação, de acordo com a forma como se colocam dentro da imagem; e d) Transitividade, para verificar a relação que cada personagem assume perante o outro no contexto. Foram ainda considerados os processos simbólicos, presente no código de leitura e compreensão dos mangás. A seguir, encontra-se uma descrição das duas personagens que formam o corpus final de análise. Busca-se responder as seguintes questões: quem é, como é, o que diz e o que dizem a ela/sobre ela.
Nana Komatsu A trama de NANA começa apresentando a história de Nana Komatsu, contando sua vida nos últimos anos em que viveu em sua cidade natal antes de se mudar para Tóquio. Nesse prelúdio, ela é apresentada como uma colegial que era amante de um homem mais velho e casado e vê seu mundo desabar quando este a dispensa. Ao longo desse capítulo introdutório, Nana se apaixona por diversos homens diferentes, sempre tentando se moldar ao que ela acredita ser, gosto de cada um. Ela muda seu corte de cabelo, vestuário e até suas atividades de acordo com o que acha que despertará o interesse de seus possíveis pretendentes. Segunda filha de uma família que conta com três garotas, Nana Komatsu apresenta-se como uma garota fútil, importando-se muito com a aparência e beleza externa. É descrita como uma garota jovial, de feições agradáveis, vaidosa e com temperamento que beira o infantil. Seu objetivo de vida é encontrar um príncipe encantado e viver como uma princesa. Cega por esse objetivo, Komatsu não consegue se decidir sobre que rumo dar à sua vida enquanto não encontra o marido ideal. Quando ela finalmente acredita ter encontrado seu amor, o rapaz, Shoji Endo, se muda para Tóquio. É nesse ponto que Nana Komatsu decide que juntará dinheiro e se mudará para Tóquio, indo atrás de seu amado. Chegando à capital japonesa, seu namoro logo acaba e Komatsu se vê envolvida em outros romances até engravidar. Seu jeito promíscuo faz com que a princípio não tenha certeza sobre quem é o pai da criança. Mesmo estando apaixonada pelo sonhador Nobuo Terashima, o rico e bem sucedido Takumi Ichinose é quem acaba assumindo a paternidade e por ventura casando com Nana Komatsu. Apesar da infidelidade do marido, a garota comporta-se de maneira dócil, pois finalmente conseguiu o que queria: uma casa luxuosa, estabilidade financeira e viver uma vida doméstica, sem precisar se preocupar em ter uma carreira. Nana Komatsu é uma garota de coração bom, gentil e carinhosa, sempre preocupada em ajudar seus amigos, em especial Nana Oosaki. Possui uma personalidade infantil e dependente, o que faz com que as outras personagens da trama a vejam como alguém que requer cuidados e atenção. Nana Oosaki apelida Nana Komatsu de “Hachi”, que significa ao mesmo tempo “oito” e é um diminutivo para Hachiko[5]. Em ambos os sentidos, o apelido tem um tom pejorativo, pois coloca Komatsu como seguidora de Oosaki. Komatsu entretanto, não parece se importar, assumindo o apelido como carinhosos e sentindo-se feliz por fazer parte da vida de Oosaki. Komatsu é o estereotipo das mulheres submissas e domesticadas. No prelúdio apresentado no volume 1, enquanto, vestida como faxineira, está limpando o apartamento de seu namorado e cozinhando um banquete para ele - fato que a “impediu” de ir procurar trabalho e um apartamento para alugar - a personagem exclama: “ [...] se eu pudesse passar meus dias cuidando dele assim... eu seria tão feliz!” (Capítulo 1: 46). Quando confrontada com adversidades, Komatsu sempre apresentada duas respostas: ou chora, impotente como uma criança, torcendo para que resolvam seus problemas por ela, ou foge, deixando tudo como está ou negando, indo se ocupar com suas futilidades. “Vou fazer compras. Vou comprar tudo que quiser! Roupas, cosméticos...” (Capítulo 10: 91), diz a garota quando se sente excluída ao descobre que alguns de seus amigos saíram sem convidá-la. Quando esses retornam de seu passeio, Nana Komatsu briga e chora, ao invés de simplesmente expor seu lado da situação. Komatsu é uma garota cheia de incertezas, volúvel e facilmente fica deslumbrada. No seu primeiro encontro com Takumi, seu futuro marido, Nana sente-se culpada por se jogar nos braços do rapaz pensando: “Está na cara que vai me levar pra cama uma vez e depois me abandonar” (Capítulo 16: 146). Durante todo o trajeto que fazem de carro até um hotel, a garota mantém um olhar aflito e sofre refletindo sobre o que Takumi estaria pensando. “Ele deve estar achando que sou uma mulher tola e leviana.” (Capítulo 16: 151), pensa Komatsu, de cabeça baixa enquanto entra no quarto. Toda a sua preocupação se esvai quando percebe a riqueza e o luxo da suíte para eles reservada. (figura 2)
Figura 2. Capítulo 16: 152 Num primeiro momento, estarrecida e com os olhos brilhando, Komatsu roda pelo quarto deslumbrada. Seu rosto chega a deformar-se para expressar tamanho encanto. Logo em seguida, com o rosto ainda exageradamente expressivo e com os olhos brilhantes cheios de lágrimas de emoção, a garota sente-se como uma princesa - tanto que é representada trajando um vestido típico das princesas de contos de fadas, com direito à coroa. As mãos unidas e o fundo reticulado expressionista transformando-se em flores reforçam o sentimento de deslumbre. Ao fundo, Takumi encontra-se sentado sorrindo, não entendendo tamanho exagero por parte da garota, conforme demonstram a gota de suor estilizada em sua testa e o fio de cabelo rebelde que se desprende do resto de suas madeixas. O caráter consumista de Nana Komatsu também é bastante explorado na séria. Ela gosta de roupas e sapatos da moda e corta seu cabelo imitando atrizes. A garota deseja vestidos e acessórios que vê na televisão e em revistas com freqüência. É comum vê-la reclamando de falta de dinheiro no inicio da trama, porém está sempre comprando roupas e utensílios para o apartamento que dividia com Nana Oosaki Como o casamento é o seu maior sonhos, Komatsu toma isso como uma verdade para todas as mulheres. Ela reage com emoção ao descobrir que Nana Oosaki pretende se casar (figura 3). Lacrimejando, ela imagina sua amiga num vestido de noiva romântico e magistral – que pouco reflete a personalidade de Oosaki, como desenvolverei no próximo tópico – recebendo o carinho e amor de seu noivo sob uma cruz adornada com um coração enquanto sinos soam. O quadrinho ainda é marcado por um balão onde se lê the end, pois no imaginário de Komatsu esse seria o final perfeito para qualquer relacionamento romântico. A frase “mas o amor sempre vence no final”, arremata a cena do que seria um desfecho feliz para ela. Figura 3. Capítulo 43: 68. Inocentemente, Nana Komatsu acredita que o casamento e a maternidade são o final feliz que todas as mulheres almejam. Mesmo que para isso tenham que abdicar de suas carreiras e vidas profissionais. Durante a maior parte da história a personagem é vista em cenários domésticos, normalmente vendo televisão ou cozinhando. Depois que passa a viver ao lado de Takumi e não precisa mais trabalhar, Komatsu só é vista fora de casa em raras ocasiões, normalmente quando vai comprar alguma coisa ou nas raras visitas que faz à amiga Oosaki. Até onde Ai Yazawa mostrou, Nana Komatsu caminha para o seu final feliz, assumindo o papel de mãe responsável e esposa devota de um marido rico e infiel. Em momento algum ela confronta as freqüentes traições de Takumi, apesar de praticamente ter certeza do que ocorre. “Ele sempre volta para casa”, repete como um mantra em diversos momentos do mangá.
Nana Oosaki A outra protagonista do mangá, Nana Oosaki, pouco tem em comum com Nana Komatsu. Vocalista de uma banda punk chamada Black Stones (também referenciada como BLAST), seu sonho é ver seu conjunto se tornar famoso e ter sua música conhecida pelo mundo. No prelúdio de Nana Oosaki, descobrimos que a garota, órfã, vive junto de seu namorado e baixista da banda, Ren Honjou, desde os dezesseis anos. Nana e Ren são casal apaixonado, cúmplice e felizes mesmo não tendo uma vida muito estável. A BLAST fazia sucesso na cidade, mas nada além do meio underground. A vida dos dois resumia-se a pequenos shows e rodadas de cervejas com os outros integrantes, até o dia em que Ren foi convidado a integrar já famosa banda Trapnest e precisaria se mudar para Tóquio. Decidida, Oosaki resolve ficar na sua cidade e seguir em frente com a BLAST, mesmo sem Ren, preferindo cultivar sua própria carreira ao invés de segui-lo e tornar-se apenas a namorada de um rockstar. “O Ren vai crescer numa banda que tem uma vocalista incrível, enquanto eu fico em casa, preparando o jantar e esperando ele voltar. Não quero isso de jeito nenhum. Isso seria humilhante...” (capítulo 1: 155), diz ela. Orgulhosa, ela o leva até a estação de trem onde se despendem, só desabando em lágrimas quando ele já havia partido e não a veria desabar. Tempos depois, sem nunca mais ter tido contato com seu antigo namorado, a garota resolve ir tentar a sorte na capital japonesa, levando como bagagem apenas algumas roupas e seu violão. Nana Oosaki é descrita como uma garota bonita e que chama atenção, com visual rebelde, roupas estilo punk – com preferência pela grife de Vivienne Westwood – coturnos, correntes e cabelos curtos, os quais, por vezes, usa espetados. Ela utiliza maquiagem carregada que destacam seus olhos. É comum vê-la bebendo cerveja ou fumando, o que completa sua atitude de bad girl. Diferente de Komatsu, Oosaki é uma garota independente, que fala o que lhe convém e se esforça para ter seus sonhos realizados. Descrita como cabeça dura e teimosa, por vezes torna-se agressiva quando as coisas não saem do seu jeito. Seu alvo principal é Nobuo, antigo companheiro de banda, que conhece sua trajetória e suas fraquezas. Todavia, esse seu lado agressivo é normalmente representado de maneira cômica, como pode ser observado na figura 4. Nessa situação, Nobue está reclamando que a comida que Oosaki preparou não estava do seu agrado (é dito ao longo da trama que ela não sabe cozinhar direito e nem é uma mulher prendada). A reação exagerada de Nana Oosaki é chutá-lo como se fosse uma artista marcial, com a expressão facial deformada demonstrando seu desagrado. No quadrinho seguinte, com a boca inumanamente escancarada, a garota arranca o prato de Nobuo e grita com ele enquanto o rapaz reclama da dor ocasionada pela agressão. A cena, apesar da temática violenta, serve como um alívio cômico, dado toda a sua leitura exagerada.
Figura 4. Capítulo 4: 173. Algumas personagens taxam suas atitudes como masculinizadas, dizendo que ela parece agir como um garoto. Em certo ponto da trama, Oosaki começa a trabalhar como carregadora de mudanças para ajudar no seu orçamento mensal. Tal fato horroriza Komatsu, que não acha esse tipo de trabalho adequado para um mulher. Nana Oosaki possui uma personalidade forte, comportando-se como líder. É ela quem toma a maioria das decisões importantes a respeito da BLAST e seu futuro. Seu espírito livre não se conforma com algumas normas impostas pela indústria da música, fazendo com que ela se torne ainda mais rebelde. Violência e palavras agressivas e sarcásticas são as armas de Nana Oosaki quando esta se sente contrariada. Com olhar forte e expressivo, Oosaki desafia tudo e todos à sua volta. Conforme visto na figura 5, durante a apresentação e uma nova música da sua banda para sua gravadora, a vocalista, com uma expressão de raiva estampada em seu rosto, chuta violentamente seu microfone em direção aos dois produtores que a assistiam. Na sequência, olhando-os de cima para baixo, com ar de superioridade e uma expressão indolente questiona-os sobre suas impressões. Figura 5. Capítulo 31: 128. Apesar da aparência forte e inabalável, Oosaki também possui suas incertezas e dúvidas. Entretanto, diferentemente da grande maioria das heroínas dos shojo mangás, as inquietações dessa Nana em pouco tem a ver com relacionamentos amorosos. No decorrer da trama, ela e Ren Honjou reatam seu relacionamento, fazendo com que Komatsu vibre , achando que a amiga finalmente conseguirá ser feliz. Todavia, em um momento de reflexão Oosaki pensa: “É assim que me sinto, mesmo quando estou com o Ren. Incompleta. Por mais profundo que seja o amor...acho que ninguém pode me completar.” Num primeiro momento sua afirmação poderia remeter a incertezas sobre a situação do seu namoro, porém em seguida ela completa “Eu só me sinto plena quando estou no palco” (Capítulo 31:152). Fica claro que a paixão de Oosaki é sua carreira, ter sua independência e seu sucesso. Sem precisar se apoiar no seu cônjuge. Nesse sentido, quando Ren a pede em casamento, sua primeira reação é negar, acreditando que isso a faria ser eternamente uma sobra do rapaz, já famoso e bem sucedido. Mesmo repetindo para si mesma o quanto ama Ren, Oosaki não suporta a idéia de que pessoas pensem que eles se casariam somente para facilitar seu acesso ao estrelato. O dilema segue por vários capítulos, até que ela enfim aceita o pedido. Entretanto, seu discurso não é o esperado de uma noiva feliz. Pensativa, com olhar baixo e distante, Oosaki reflete antes de anunciar que está noiva para a mídia: “Convenções sociais como casamento nunca haviam passado por nossas cabeças. (...) Revelar para o mundo todo que nós realmente nos amamos... e casar, como prova desse nosso amor. Isso deve enlouquecer de raiva alguns fãs mais ardorosos. Mas o resto das pessoas deve entender que se trata de uma história de amor com final feliz. Estou me sentindo uma atração de circo” (Capítulo 40: 168). Nana Oosaki se mostra desconfortável com a idéia de expor seu relacionamento e o casamento, para ela, não passa de uma convenção. Nos seus pensamentos, ela e Ren nunca precisariam seguir esse tipo de tradição. Em momento algum da história, ela parece se empolgar ou se importar com valores associados ao feminino, como o vestido de casamento, a cerimônia ou a festa. Mesmo noiva, seu orgulho e gana por atingir o sucesso colocaram-se no caminho entre ela e seu amado. Por motivos profissionais, ela e Ren acabam discutindo e brigando, fazendo com que se afastem. Tal evento expõe as fraquezas do rapaz, dependente químico, que acaba se envolvendo em um acidente de carro que culmina com sua morte. Ai Yazawa parece punir sua personagem, tirando-lhe o amado, quando essa preferiu investir em sua carreira ao invés de contentar-se com o papel da esposa dedicada. Outra questão que incomoda Oosaki é a gravidez. Acompanhando todo o processo vivido por Komatsu, a Nana vocalista parece temer que algo assim aconteça com ela. Quando Komatsu fala sobre instinto maternal, a resposta de Oosaki é vem em forma de pergunta: “É normal que toda mulher possua?” (Capítulo 26: 77). Sua expressão enquanto questiona denota preocupação, seguida de tristeza, como se não compreendesse o que a amiga sente ou fosse incapaz de tal feito. Nana Oosaki não demonstra interesse em ser mãe, sendo que é sabido que toma medidas preventivas, fazendo uso de pílulas anticoncepcionais. Até o ponto que a história foi escrita, Nana Oosaki foi sentenciada a uma vida de exílio, perdendo o namorado para a morte e a melhor amiga Nana Komatsu para o seu maior desafeto, Takumi. Sua banda punk também se desfez, sem nunca se consolidar como um verdadeiro sucesso, e solitária, ela vaga cantando em bares e restaurantes, vestindo-se como uma cópia da vocalista da Trapnest, a antiga e bem sucedida banda de Ren. Suas palavras “[...] o roteiro para o meu futuro brilhante... eu mesma tenho eu escrever” (Capítulo 40: 167), soam agora como um sonho distante, esmagado por uma ideologia patriarcal que castiga as mulheres que, de alguma maneira, tentam subverter sua condição domestica e submissa.
Considerações finais NANA é um shojo mangá que desfaz muitas das fantasias inocentes, típicas de garotas adolescentes. Apresentando uma história sobre amizade contextualizada na época atual e tendo a indústria da música como pano de fundo, o mangá aborda temas como morte, traição e gravidez indesejada. Sua leitura é mais crua do que é encontrado comumente nas páginas floreadas das histórias para garotas. Todavia, sua ideologia pouco se distancia. Mesmo apresentando uma personagem subversiva como Nana Oosaki, o mangá transmite valores convencionais de uma sociedade focada no patriarcado. O pecado de Oosaki é querer vencer por mérito próprio, ser uma mulher independente e viver de acordo com suas próprias regras. Ela paga caro por isso e vê seus sonhos e ambições escaparem por entre seus dedos. Por outro lado, Nana Komatsu, domesticada e dócil, tropeça várias vezes no decorrer da trama, mas seu conformismo e submissão fazem com que, mesmo de uma maneira medíocre, atinja seus objetivos. Apesar de suas boas intenções, seus deslumbres fúteis fazem com que acabe parecendo uma personagem boba e vazia, em relação à amiga de mesmo nome. Como leitora do mangá posso afirmar que senti uma grande insatisfação quando percebi o rumo que a trama estava tomando. Minha heroína caminhava para a ruína, enterrando-se em tristeza e desilusão juntamente com sua atitude e pensamento, que podem ser considerados feministas. Enquanto isso, a outra, tola e frágil seguia sorrindo, sendo agraciada pela simpatia de todas as outras personagens da série. Ai Yazawa, assim como muitas outras autoras de mangás, inocentemente, talvez não perceba o que está contando para suas jovens leitoras: que é mais seguro baixar a cabeça do que erguer-se e lutar por seus objetivos. Referências Bibliográficas BUTLER, Judith (1998). Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do ‘pós-modernismo’. Cadernos Pagu, n.11, 11-42. BUTLER, Judith (2008). 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Otavia Cé é doutoranda do Programa de Pós Graduação em Letras: Lingüística Aplicada da Universidade Católica de Pelotas e atuou como bolsista PDSE da CAPES, desenvolvendo suas pesquisas junto ao Institute of Performing Arts da Tisch – School of the Arts, na New York University. Sempre gostou de histórias em quadrinhos e quando entrou em contato com os Estudos de Gênero, já que ambos conjuntamente poderiam formar um amplo e interessante universo de pesquisa.
[1] Conhecido também por estampa japonesa,é um estilo de pintura desenvolvida no Japão ao longo do período Edo (1603 – 1867). Foi uma técnica amplamente difundida através de pinturas executadas com o auxílio de blocos de madeira usados para impressão. Geralmente representava temas teatrais. (GRAVETT, 2004). [2] Também grafado shoujo. [3] Fonte: http://www.icv2.com/articles/home/10537.html [4] Não teve sua publicação finalizada até o presente momento por motivos de doença enfrentados pela autora. [5] Famoso cão da raça akita que é lembrado por sua lealdade a seu dono, que perdurou mesmo após a morte deste.
labrys,
études féministes/ estudos feministas
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