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janvier / juin 2013  -janeiro / junho 2013

 

 

NOTÍCIAS DE HIPÁTIA

Salma Tannus Muchail

 

Resumo. Hipátia (370-415) viveu e ensinou em Alexandria. Astrônoma, geômetra e filósofa neoplatônica, de sua obra nada restou, senão as referências encontradas em outros autores. Este texto oferece informações e comentários sobre a vida, o pensamento e o contexto da filósofa, tomando como referências o livro Histoire des femmes philosophes, originariamente do século XVII, e o filme Agora, de 2003.

Palavras-chave: Mulher-filósofa, neoplatonismo, cristianismo, ciência, religião.

 

 

      Mulierum philosopharum historia é o título de um livro datado de 1690, de autoria do gramático francês Gilles Ménage (1613-1692). Em 2003 foi publicada a tradução francesa do texto latino, intitulada Histoire des femmes philosophes[1]. Na apresentação da tradução, desde logo, um alerta: “...este livro demonstra que se poderia pensar diferentemente”[2].

      Menos característico que os enredos de uma história, o livro se assemelha ao formato de um pequeno dicionário onde, como em verbetes, são prestadas informações sobre mulheres da antiguidade greco-latina (das quais a mais recente talvez seja Heloísa, século XII).  A sequência dos nomes não segue a ordem alfabética, como convém aos dicionários, mas uma relação por filiação filosófica. Sob este critério, o livro se organiza em doze seções. Na primeira, uma breve introdução; na segunda, mulheres que não se vinculam a nenhuma escola filosófica; nas dez seguintes, mulheres que pertencem a diferentes escolas, assim agrupadas : platônicas, acadêmicas, dialéticas, cirenaicas, megáricas, cínicas, peripatéticas, epicuristas, estóicas, pitagóricas.

      No primeiro parágrafo da introdução, o autor declara:

     “O número de mulheres que escreveram é tão grande que se poderia fazer um longo rol de seus nomes. Se, por um lado elas se consagraram a estudos agradáveis, como a retórica, a poesia, a história, a mitologia e entregaram-se aos charmes da relação epistolar, algumas delas não abdicaram de aplicar-se a uma disciplina mais séria: a filosofia”. Quanto a ele próprio, continua, encontrou “sessenta e cinco mulheres filósofas nos livros dos antigos” (Ménage, 2003, p. 11).

      Na seção sobre as neoplatônicas o comentário mais longo é dedicado a Hipátia  de Alexandria.  O que dela se informa foi colhido pelo autor em crônicas e escritos de historiadores antigos.  Do historiador Nicéfora Grégoras, por exemplo, está transcrita uma passagem que reúne os traços mais fortes de uma descrição biográfica:

     “Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipátia cujo pai era o filósofo Téon. Ele a instruíra tão bem e ela se distinguia em tantas disciplinas que sobrepujava de longe todos os filósofos; não somente os de seu tempo, como também aqueles que desde muito a haviam precedido. Foi admitida na escola de Platão para ser sucessora de Plotino. Tinha competência para dar a conhecer as ciências a todos os que o desejassem. Do mesmo modo, qualquer um que tivesse paixão pela filosofia achegava-se a ela, atraído não somente pela sua honestidade e pela seriedade que mostrava em seus discursos, como também porque abordava os homens com pudor e decência e a ninguém parecia indecente vê-la entre eles.

Todos a respeitavam e veneravam em razão de sua notável conduta. Todos a admiravam, até que a Inveja armou contra ela seu braço vingador. O fato de estar frequentemente na companhia de Orestes, prefeito de Alexandria, inspirou contra ela uma intriga junto  ao clero de Cirilo, bispo de Alexandria, que impediu a reconciliação de Cirilo com o prefeito. Foi por isto que alguns  adeptos ardorosos  de Cirilo (...)  se puseram a espreitá-la e, no momento em que ela retornava de algum lugar, retiraram-na da liteira e arrastaram-na para dentro da igreja que traz o nome de César, onde a despiram antes de matá-la com cacos de telhas. Depois, após arrancar seus membros, levaram-na a um lugar chamado Cinaron e lá a queimaram”(Id.,p. 42-43).

      Segundo outra versão ligeiramente diversa (ou complementar), Hipátia teria sido assassinada pelos “homoousianos” [3]. E o motivo, diz mais uma vez o texto, teria sido “a inveja, nascida de sua incrível habilidade nas ciências, principalmente as astronômicas” (Id.,p.43).

      Há depoimentos de que ela destacou-se em geometria; que trabalhou na invenção de modelos novos de certos instrumentos, como o hidroscópio (para a medição da pureza das águas); que escreveu um “Comentário sobre Diofanto”, um livro sobre as “Cônicas de Apolo” e reuniu regras de astronomia,”(Id.,  43-44); que “aqueles que eram  ávidos de filosofia afluíam de todas as partes para ouvi-la”( Id.,p. 42); que, além da erudição, destacava-se por sua  modéstia, sua oratória,  sua  “sabedoria nas letras” , “a distinção de sua beleza”,a doçura de sua palavra”,a amenidade de seus costumes[4]. Entre os discípulos, agregava homens de diferentes crenças religiosas e figuras importantes na política. Sinésius de Cirene, por exemplo, bispo cristão  que fora seu aluno,  em cartas  à sua “querida Hipátia” , chama-a de “mãe, irmã, mestre de eloqüência e benfeitora” (Id.,p.42-43).

      Algumas observações podem ser acrescentadas às informações de Ménage, a partir de historiadores atuais da filosofia. Eles realçam, principalmente, a forte oposição entre o neoplatonismo e o cristianismo, que teria marcado o tempo em que viveu Hipátia. Pierre Hadot escreve que “o neoplatonismo é um foco de resistência ao cristianismo”, até 529 quando o imperador Justiniano “proíbe os pagãos de ensinar”. Uma boa ilustração desta disputa é passagem, reproduzida por Bréhier, extraída do neoplatônico  Proclo (412-484), que, dirigindo-se aos cristãos, argumenta  contra a noção  de criação: “Com que intenção, após uma preguiça de infinita duração, Deus viria a criar? Porque pensa que é melhor? Mas outrora  ignorava ou não  sabia; dizer que ignorava, é absurdo; e se sabia, por que não começou antes?” Também em Bréhier lê-se que, por um lado, as escolas filosóficas  de Atenas são fechadas e, por outro,  a Alexandria daquela época “não era um  local seguro para os filósofos, como provam a perseguição que sofreram por parte do bispo Atanásio e a morte da neoplatônica Hipátia, assassinada em 415”. E Pierre Aubenque escreve: “...o neoplatonismo não pode resistir por muito tempo ao cristianismo triunfante: ele terá tido sua mártir, a filósofa neoplatônica Hipátia, assassinada em 415, em Alexandria, por cristãos fanáticos”.

      Observações como estas podem ser amplamente encontradas. Porém, o livro que data do século XVII e que, até o momento nos serviu de referência , certamente, não conta com muitos leitores. Em contrapartida, um filme recente,  Ágora,  redescobre a  filósofa  e a torna, hoje,  conhecida. Divulgado no Brasil com o título Alexandria, seu diretor é o chileno-espanhol Alejandro Amenáber, protagonizado por Rachel Weiz, datado de 2009, com magnífica trilha sonora de Dario Marianelli.

      Se o livro-dicionário de Gilles Ménage acentua o perfil biográfico de Hipátia, o filme – com a magia das imagens e do movimento - recria  o cenário em que ela viveu e nele a situa muito adequadamente. Mais ainda – com os recursos das falas e da interpretação – evoca paralelos sugestivos (sem cair em anacronismos fáceis) entre o contexto daquela época e o da nossa atualidade.

      Alexandria dos séculos IV-V é vibrante e caótica.  Centro cultural não só da província romana do Egito, mas de todo o Império e, por extensão, do mundo, é cenário de disputas intelectuais como também de contendas religiosas e políticas. Para lá acorrem pagãos, judeus, cristãos (sobretudo após a oficialização do cristianismo como religião do Império Romano, em 312-313, por Constantino) que lá convivem e, principalmente, lá conflituam.

      Mestra Hipátia circula pelas ruas da cidade, frequenta a Biblioteca, vai ao Museu, isola-se, medita, estuda e, com entusiasmo, ministra lições de filosofia, de ciência e de vida. Figura humana desenhada com traços de serenidade e de tolerância, suas atividades são paradoxalmente marcadas pela inquietação e pela lucidez.

      Hipátia interroga.  Por que as estrelas não caem do céu? E responde: porque seguem a rota mais perfeita, que é o círculo do céu em torno da Terra  que, por sua vez, é  centro do cosmos. É esta a tradição em que acredita e a que ensina.  Mas, também, movida pela curiosidade, instiga : “se você não questiona o que acredita, não pode acreditar. Eu questiono”. Na mesma direção, quando acusada de total descrença, responde: “Eu acredito na filosofia”. E a filosofia em que acredita ensina que “é preciso nos livrarmos das idéias preconcebidas”, todas elas e de todas as naturezas.  Portanto, há que se dispor ao condicional: “e se...”.

       E se a terra não for o centro fixo do universo e se o sol for “o rei das estrelas” em torno do qual a terra se move em círculo? E se a terra se move em círculo,  por que o sol muda de tamanho do verão para o inverno, e por que ora é mais frio e ora é mais quente se, a seguir o movimento circular, estamos sempre e exatamente à mesma distância do sol ? E se o movimento da terra não for circular ? E se for elíptico, já que afinal, o círculo não é senão uma elipse especial? “Suponha que a pureza do círculo tende a nos impedir de ver mais além como a luz do sol nos impede de ver as estrelas; precisamos aprender a olhar com outros olhos; tenho que repensar tudo...”. Talvez  verdade, talvez “delírio” é esta a “loucura” em que está envolvida:  “a Terra em torno do sol!”

      Esta espécie de loucura - enfrentamento da luz habitual que nos cega - é irmã gêmea da lucidez. Uma passagem, no final do filme, ilustra exemplarmente a lucidez de Hipátia. Mulher, pagã, culta, mestra e amiga de homens públicos, o arcebispo Cirilo a acusa de ateísmo e bruxaria.  A acusação justifica que ela venha a ser assassinada pelos “monges parabolanos”[5].  Porém, aparentemente uma saída restava , comparável àquela, pode-se dizer, da proposta de fuga feita a Sócrates após sua condenação, não porque fosse culpado mas  sob o argumento legítimo de sua inocência.  A proposta lhe é apresentada pelo bispo Sinésius e o prefeito Orestes. Fazendo ver o verdadeiro fundo de disputa política que a acusação encobria, pedem-lhe que aceite cumprir uma ordem lançada aos dignatários do Império para que se fizessem batizar publicamente. Afinal, embora Hipátia não pertencesse aos quadros do governo, tinha reconhecida influência sobre eles. Assim, sob o argumento legítimo de sua inocência se justificaria o gesto político de aceitação pública do batismo.

Eis o que lhe diz Orestes:  -“Se não aceitar, não poderei mais protegê-la, falar com você, nem cumprimentá-la. Sem você não posso vencer Cirilo”. E a lucidez da resposta: -“Orestes, Cirilo já venceu”.

      O filme termina com seguinte texto:

      “O corpo mutilado de Hipátia foi arrastado pelas ruas e queimado em uma pira. Orestes desapareceu para sempre e Cirilo consolidou seu poder em Alexandria. Muito depois Cirilo foi declarado santo e doutor da Igreja. Embora nenhuma obra de Hipátia tenha sobrevivido, sabe-se que foi uma astrônoma excepcional, conhecida pelos estudos matemáticos das curvas cônicas.   1200 anos mais tarde, no século XVII, o astrônomo Johannes Kepler descobriu que uma dessas curvas, a elipse, regia o movimento planetário”. 

      Nem a Ágora  é o eixo de Alexandria, nem Alexandria é a sede cultural  da terra, nem a terra é o centro do cosmos, nem os homens são o plano superior da humanidade. Não é por acaso que do começo ao final do filme repetem-se tomadas de cenas em movimento lento de aproximação e distanciamento, de baixo para cima e de cima para baixo: da ágora à cidade, da cidade ao universo, do universo à cidade, da cidade à ágora. Neste movimento lento, as pessoas vão se tornando figuras minúsculas, agitando-se na praça e nas ruas da cidade até se perderem na vastidão.  Estas tomadas de cenas fazem lembrar a noção de “visão do alto” ( tradução possível do francês,“vue  plongeante”), que Foucault, a partir dos estóicos, nos instiga a explorar[6].

Trata-se da visão “que nos coloca no lugar mais alto do mundo”, de onde podemos descerrar “o segredo da natureza” e, ao mesmo tempo, “apreender o pouco que somos” (M.Foucault, 2004, p. 337). Fazendo “o percurso da natureza inteira” podemos reconsiderar nossa compreensão de todos os esplendores do mundo e, ao mesmo tempo, descobrir “a medida do que somos efetivamente sobre a terra, a medida de nossa existência -  dessa existência que é apenas um ponto, um ponto no espaço e um ponto no tempo – (a medida) de nossa pequenez”(Id.,  p.338). Deslocamento de subida que nos leva “ao topo do universo para vê-lo em sua totalidade” e, de lá, descermos “até o cerne das coisas”(Id.,p.373).   Estas tomadas de cenas são um recurso que, sem dúvida, cumprem a particular função de circunscrever, com imagens, a ambiência histórica, geográfica e cultural em que viveu Hipátia. Mas, sem muito esforço, podemos também remetê-las a contextos de outras épocas, inclusive os de hoje. É que elas também cumprem a função mais ampla de convidar o espectador  a um ponto de vista de longo alcance, a uma perspectiva de recuo de onde os valores se relativizam e as medidas se transformam , de onde o que parecia grandioso se apequena e o que era insignificante torna-se o mais íntimo,   de onde, enfim, os olhos vêem diferentemente.

 

Nota biográfica:

 Professora Titular do Departamento de Filosofia e professora emérita da PUC/SP. Autora dos livros: Foucault, simplesmente, S.Paulo Loyola, 2004; Foucault, mestre do cuidado, S.Paulo, Loyola, 2011. Tem artigos e capítulos de livros sobre o pensamento francês contemporâneo. É tradutora de obras de filósofos franceses, particularmente Michel Foucault.

 

Referências bibliográficas

AUBENQUE, P. “Plotino e o neoplatonismo”. Em Châtelet, F. (direção) História da filosofia – idéias, doutrinas – vol. I – A Filosofia pagã. Tradução brasileira de Maria José de Almeida. Rio de Janeiro, Zahar, 1973, p.199-214.

BRÉHIER, É. Histoire de la philosophie - Tome premier, fascicule 2- Paris, P.U.F., 1967.

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito.  Tradução brasileira de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

HADOT, P. O que é a filosofia antiga?  Tradução brasileira de Dion Davi Macedo. São Paulo, Loyola, 1999.

MÉNAGE, G. Histoire des femmes philosophes. Tradução francesa de Manuella Vaney. Apresentação de Claude Tarrène. Paris, Arléa, 2003.

TARRÈNE, C. “Réparation d’une injustice”. Em G.Ménage, Histoire des femmes philosophes. Tradução francesa de Manuella Vaney. Paris, Arléa, 2003, p.5-8.


 

[1] G.Ménage. Histoire des femmes philosophes. Traduit du latin par Manuella Vaney. Présenté par Clalude Tarrène. Collection “Retour aux grands textes”. Paris, Arléa, 2003.

[2]  C. Tarrène, “Réparation d’une injustice”. Apresentação da trad.francesa de G.Ménage, Histoire des Femmes philosophes, p.6.

[3] Palavra que remete ao sentido grego de “substância” e “consubstancialidade”.Designava um grupo  de cristãos  que defendiam o “homoousianismo”,  dogma segundo o qual o  Verbo ou o  Filho participa da mesma substância divina do Pai.

[4] Ver, especialmente a passagem sobre a filósofa Eudócia, que o autor do livro compara a Hepátia  ( Id. p. 36).

[5] Nome dado a uma fraternidade de cristãos dedicados ao cuidado de doentes e pobres ,  que  assumem o papel de  “soldados” ou “guardas” do bispo Cirilo. Não se pode afirmar, embora seja verossímil,  que se trata exatamente do mesmo grupo dos “homoousianos” citados no livro de Ménage.

[6]  M.Foucault, A Hermenêutica do sujeito. Trad. de M.A.da Fonseca e S.T.Muchail. S.Paulo, Martins Fontes, 2004, curso ministrado em 1982,  no Collège de France . Este  tema  é longamente  abordado na 2ª.hora da aula de 17/02/82.

 

 

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