labrys,
études féministes/ estudos feministas
Louise Bourgeois: prática artística e crítica feminista [1] Gabriela de Laurentiis
Resumo Neste texto, apresento apoética[1] visual de Louise Bourgeois. Privilegio obras em que os corpos aparecem fragmentados ou transfigurados, formando imagens críticas às representações históricas do feminino. Palavras chaves: Louise Bourgeois, arte, feminismo
1. Runaway Girl, 1938. Uma garota de cabelos compridos e alaranjados caminha sobre as águas, segurando uma pequena mala. Ao longe, há uma casa sendo deixada para trás – essa é a imagem que vemos na obra Runaway Girl, de 1938. Ao ser questionada sobre sua relação com essa personagem, a artista Louise Bourgeois diz: “[...] a Runaway é a menina que fugiu de casa; eu obviamente fugi de casa” (Bourgeois, 2008). Naquele ano, ela saiu de Paris e mudou-se para Nova York, deixando para trás uma situação familiar conflituosa. Histórias sobre a infância ela repetiu inúmeras vezes ao longo da vida, apresentando-as como inspiração para a construção de várias de suas obras. O autoritarismo e a traição do pai, a depressão e a profissão da mãe foram expostos não apenas pela artista, mas por uma série de historiadores e críticos de arte como elementos fundantes de sua poética visual. Por outro lado, a artista afirma que devemos ler nas entrelinhas aquilo que ela fala (Bourgeois, 2008) e que uma obra de arte não necessita de explicações, pois se sustenta sozinha. “Depois que sai do estúdio, a peça inicia uma vida própria [...[” (Bourgeois, 2004: 75-76). Nessa perspectiva, as imagens podem levar-nos por outros caminhos do que aqueles originalmente elaborados pela artista. Assim, Runaway Girl emerge numa outra dimensão – é aquela que foge sim de seu lar, mas é, para além de estruturas reais, a construção de um imaginário que aprisiona as mulheres, com suas principais referências simbólicas e culturais. O lar seria o lugar feminino por excelência, conforma os corpos e as mentes, tornando as mulheres menos potentes para a elaboração de suas próprias subjetividades. Bourgeois é, sem dúvida, uma garota que escapou. Ela tornou-se artista, tarefa que, se ainda hoje é bastante difícil para as mulheres, no início do século XX era ainda mais. Julia Kristeva destaca as diversas fronteiras que tiveram de ser cruzadas por Bourgeois em seus percursos, tais como a da linguagem, a da família, a da figura paterna. Para tornar-se artista, teve de liberar-se de si e de seu espaço (Kristeva, 2007:249). Aventurando-se no território da arte, ela elaborou para sua vida uma poética visual, que pode ser analisada como uma forma de tensionar as identidades de gênero. E na qual o espaço doméstico e seus complementares, como o espaço hospitalar, desdobram-se em inúmeras imagens. Nas próximas páginas, os comentários versam sobre tais questões.
Críticas à domesticidade
2.Femme-Maison, 1946-1947. 3.Femme-Maison,
1946-1947. Bourgeois dedicou-se, na década de 1940, à criação de uma série de desenhos e pinturas intituladas Femme-Maison (Mulher-Casa), nas quais corpos femininos transfiguram-se em casas ou prédios. Com o passar do tempo, elas reapareceram construídas de diferentes formas e com distintos materiais, ocupando lugar privilegiado em sua poética visual. Os híbridos de mulheres e a arquitetura doméstica exploram a identidade feminina, evocando as mulheres como seres produzidos pela e destinados à esfera privada. Em uma das pinturas da série, ela cria uma figura cor-de-rosa sobre um fundo dividido em três partes. Na parte superior, a cabeça apresenta-se em forma de casa, trazendo a imagem de uma domesticidade que define ao mesmo tempo em que nega voz às mulheres, como sugere Chadwick (1999: 324). Os seios e a barriga cor-de-rosa misturam-se à parede vermelha exposta no fundo; o fraco contorno do corpo e a proximidade de tonalidades entre ele e a parede criam a sensação de uma mulher incorporada à arquitetura. Em outra obra, não há cores, apenas o contorno preto de um corpo feminino sobre um fundo branco. Aqui, a cabeça também se transfigura em uma casa, cuja entrada ajusta-se ao seu corpo como uma apertada camiseta. Mayayo afirma que o torso da figura foi alterado apresentando as dimensões da estrutura que o limitam (Mayayo, 2002: 13). Consideradas na época de sua exibição pelos críticos de arte uma representação da ligação natural entre as mulheres e o lar (Chadwick, 1999: 324), as obras foram repensadas pelas feministas, a partir da década de 1970, como uma crítica à identidade feminina. Nesse registro, elas emergem como uma contestação à representação das mulheres como sujeitos abnegados, voltado para o lar, para a maternidade, sem habilidade para as ciências ou para as artes. A leitura feminista permite dizer que, ao criar imagens literais das mulheres como pertencentes à esfera do privado, a artista joga com a ironia para criticar esse modelo do feminino forjado como o anjo do lar[ii]. 4.Exposição Peridot Gallery. Nova York, 1950. 5.Femme Volage, 1951. A asfixia e o aprisionamento evocados na série Femme-Maison ressurgem em inúmeras obras da artista, nas quais ela trabalha com imagens de corpos femininos espiralados. A forma espiral é recorrente em sua poética visual e aparece, sobretudo, na forma de esculturas, a partir da década de 1950. As primeiras são construídas com fragmentos de madeira encaixados sobre uma barra de metal. Algumas levam o nome de Femme Volage(Mulher Inconstante, 1951), pois, segundo sugere Mayayo, a figura espiral parece submetida a torções em direções opostas, que podem terminar fazendo com que ela perca as coordenadas de referência e passe a girar sobre si (Mayayo, 2002: 20), movimentando-se sem, no entanto, sair do lugar.
6.Spiral Woman, 1984. Na década de 1980, Bourgeois faz esculturas espirais mais arredondadas e em bronze. Na obra Spiral-Woman (Mulher-espiral) de 1984 “[...] uma víscera-espiral sai do ventre da mulher e se enrosca em seu corpo de modo ascendente, [...] aqui a mulher, como um casulo, é envolta pela espiral (...). Sem rosto ela está asfixiada pelas responsabilidades do quotidiano” (Herkenhoff, 1997: 27-28). A ideia de uma rotação sobre si mesma é reforçada nessa obra por sua disposição no espaço: pendurada ao teto por um fio, a figura parece frágil, podendo ser movimentada por quem queira, com um simples toque. O corpo está, assim, exposto às vontades do espectador. A partir dos anos 1990, ela inaugura uma série de esculturas em torno do domínio da tecelagem, focando, dessa forma, uma atividade culturalmente associada ao universo feminino (Mayayo, 2002: 67). Bordar, assim como outras atividades que envolvem linhas e agulhas, é historicamente associado ao universo feminino. No século XIX, às mulheres cabiam os trabalhos com tecidos, chamados não qualificados, subordinados a uma tecnologia específica, como lembra Michelle Perrot, a qual ressalta um texto operário, de 1867, que explicita isso: “Aos homens, as madeiras e os metais. À mulher, a família e os tecidos” (Perrot, 2005: 198). 7.Spiral Woman, 2003. É em tecido que a imagem da Spiral-Woman reaparece, numa escultura de 2003. Ela é bastante semelhante à imagem feita em 1984, entretanto, há na estratégia de criação uma clara influência do feminismo. Desde os anos 1970, os movimentos feministas reivindicam o uso de tecidos, de bordados e de tantas outras atividades associadas ao feminino, que foram deixadas de lado pela historiografia e pela prática artística masculina da arte. Assim, de tarefa inferior no mundo das fábricas e prática artesanal no da arte, a costura é colocada numa outra dimensão: de um saber considerado feminino, utilizado para o enfretamento da própria identidade Mulher.
Saber médico: maternidade e histeria
8.Femme Maison, 2005. Algumas figuras de Bourgeois foram repetidas incontáveis vezes, assim como é o caso de Femme-maison. Em 2005, ela foi refeita na forma de escultura, com tecido branco. Na figura, a cabeça, os pés e os braços estão cortados e uma pequena escultura de casa está colocada sobre o seu ventre. A posição dessa casa e sua pequena proporção em relação ao corpo parecem aludir à maternidade, à gestação e aos efeitos que tudo isso pode produzir no corpo das mulheres. É interessante perceber que Bourgeois cria no final da vida uma série de obras em torno dos temas gravidez e parto, inúmeras vezes associados à dor e à imobilidade.
![]() 9. The Woven Child (detalhe), ![]() 10.The Woven Child, 2002.
Em The Woven Child (A Criança Tecida - 2002) e The Reticent Child (A Criança Reticente – 2003), a artista constrói figuras grávidas, sem as pernas e sem os braços. Na primeira delas, esculpe em tecido branco um corpo, no qual deixa uma série de costuras aparentes, como se ele tivesse sido cortado inúmeras vezes e, depois, refeito. A escultura está colocada dentro de uma caixa de vidro transparente, assim como são deixados animais para serem estudados nos laboratórios. Sobre ela há um feto dentro de uma rede azul. The Reticent Child é composta por seis pequenas esculturas de mulheres colocadas sobre uma estrutura de metal, que lembra uma mesa cirúrgica. Atrás das figuras posiciona-se um espelho, no qual uma delass tem o rosto refletido, apresentando uma expressão de dor e de tristeza. Do meio de suas pernas dobradas sai uma pequena cabeça, criando-se o momento do parto.
11. The Reticent Child, 2003.
12. The Reticent Child (detalhe), 2003. As duas obras provocam a sensação de um corpo feminino que, fragmentado, é identificado e pensado sempre em relação à função da maternidade. Em caixas transparentes, esses corpos estão expostos para serem observados e analisados; nas mesas dos consultórios médicos e laboratórios são manuseados e submetidos a experimentos. Surge, então, a questão da medicalização dos corpos das mulheres. A ideia de corpos observados, esquadrinhados e produzidos pelo saber médico também se faz presente na obra Arch of Hysteria (Arco de Histeria, 1993). Mas antes de analisá-la, serão feitas algumas considerações.
14. Arch of Hysteria, 1993. Para falar da figura da mãe devota, afetiva e assexuada, emergente no século XIX, é preciso rememorar que esta tem como sua imagem em negativo a mulher nervosa, a histérica, como ressalta Foucault ao delimitar o dispositivo da sexualidade (Foucault, 2009:115). Abandonando a hipótese repressiva em relação à sexualidade, o filósofo observa que, ao contrário do que se havia imaginado, nunca antes em uma sociedade falou-se e pensou-se tanto em sexo, além de questionarem tanto sobre tal tema. No século XIX, há um grande investimento no controle estatal dos casamentos, dos nascimentos e das sobrevivências, e uma crescente preocupação com os efeitos do sexo entre as futuras gerações, ou seja, como o sexo poderia afetá-las com doenças e degenerações. Assim, na tecnologia do sexo, a medicina das perversões e a eugenia formaram saberes e práticas componentes de uma tecnologia de cuidado da vida da população, que Foucault nomeou de biopolítica. (Foucault, 2009:115) A histerização dos corpos das mulheres torna-se um dos principais conjuntos estratégicos de investimento do poder (um corpo saturado de sexualidade e que deve ser controlado). Ele é, então, pensado em uma comunicação orgânica com o corpo social, e como tendo uma responsabilidade biológico-moral com relação às crianças, no centro da família burguesa. Dessa forma, “[...] a Mãe, com sua imagem em negativo, que é a “mulher nervosa”, constitui a forma mais visível desta histerização” (Idem: 129). Arch of Hysteria é construída em bronze, tendo uma cor dourada. Esta obra, assim como a Spiral Woman (1984), está fixada por um fio ao teto. Há em Arch of Hysteria uma clara referência às fotografias feitas por Charcot, no final do XIX. Ele tornou-se conhecido por organizar sessões públicas, nas quais médicos, jornalistas e curiosos assistiam às pacientes, sob efeito de hipnose, experimentar fortes ataques de histeria. As sessões chegavam ao fim quando os corpos das pacientes, por estarem tão tencionados, formavam um arco, sendo este o sinal do fim da crise histérica (Mayayo, 2002: 65). A histeria, nessa obra, não figura o feminino, e sim o masculino, produzindo uma crítica à noção dessa doença como sendo intrinsecamente produzida pelos úteros. *** Charcot chamava a si de un grand viseul, conta John Rajchman (1988:105). Explicitando as discussões de Foucault sobre os discursos e as técnicas médicas, Rajchman observa que a modernidade inaugura uma fascinação visual pela sexualidade, ou seja, nós não fomos sempre encantados pelo desejo sexual, essa coisa considerada maléfica para a qual Freud teria sido o primeiro corajoso homem a olhar. Há, então, uma particularidade no voyeurismo da medicina moderna, tão interessada na sexualidade desviante, como o olhar panóptico interessava-se pelos prisioneiros. Desse modo, o local das experiências de Charcot não apenas permitiam, mas incitavam observações, as interrogações, as experiências, com os corpos doentes (Idem: 105-106). Assim, na medicina moderna “[...] o olhar deve restituir como verdade o que foi produzido segundo uma gênese: em outros termos, deve reproduzir nas operações que lhe são próprias o que foi dado no movimento mesmo da composição” (Foucault, 2008: 119). No caso da histeria, o olhar funciona como técnica para a comprovação das teorias médicas que desqualificavam o corpo das mulheres. Como observa Michelle Perrot: “O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro de maneira imediata e específica. Sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar e de rir (provocante, o riso não cai bem às mulheres, prefere-se que elas fiquem com lágrimas) são objeto de perpétua suspeita. Suspeita que visa ao seu sexo, vulcão da terra” (Perrot, 2005: 447). Imaginados, portanto, como sendo repletos de sexualidade, fragmentados e analisados os corpos são tratados como objetos de investimentos da medicina moderna. Alvos da mais viva curiosidade, os corpos femininos envolvem-se em séries de especulações traduzidas em registros escritos e imagéticos de suas supostas patologias. Em Bourgeois, esses discursos encontram um lugar crítico na elaboração artística, inscrevendo-se de formas mais ou menos diretas, em sua poética visual. Nessa dimensão, suas obras evocam, novamente, a arquitetura, a construção dos espaços, mas não o do lar, e sim dos consultórios, dos hospitais e das clínicas médicas – espaços que se complementam em imagens evocando as mulheres como esses seres sexuados, produtos de um olhar moderno.
Variações: a mamãe aranha 15.Sem título, 2001. Na escultura Sem Título, de 2011, novamente há uma figura colocada dentro de uma caixa de vidro. Entre suas pernas um buraco sugere o órgão sexual feminino, e em cima do corpo um emaranhado de tecidos remete às estranhas, aos órgãos internos, que estão expostos para análise. Do mesmo modo, o emaranhado lembra um estrangulamento do corpo, um “sufocamento do útero”, o que os discursos médicos afirmavam ocorrer em casos de histeria. Parece haver, ainda, uma alusão aos órgãos enlouquecidos, que, como animais enfurecidos, movimentam-se pelo corpo dessa mulher. Como afirma Rago, os médicos do século XIX apropriaram-se da concepção de Hipócrates, para quem o útero seria um organismo vivo semelhante a um animal dotado de certa autonomia e de possibilidade de deslocamento. Ideia reforçada na modernidade “[...] especialmente no contexto de entrada das mulheres no mercado de trabalho, na vida social e com a emergência do feminismo, questionando e desafiando o ‘dispositivo da sexualidade’ e as normas da domesticidade [...]” (Rago, no prelo). As concepções que associam os órgãos femininos a animais não parecem ter sido deixadas totalmente de lado. Basta lembrar que animais peçonhentos são constantemente evocados pela cultura popular para nomear o órgão sexual feminino, na qual a aranha é o exemplo, por excelência. A imagem da aranha compõe de maneira basilar a poética visual de Bourgeois. Aranhas aparecem em desenhos e gravuras, desde o final dos anos 1940 e proliferam em esculturas a partir de 1994 (Herkenhoff, 1997:27). As aranhas de Bourgeois são, segundo ela própria, uma homenagem à sua mãe no poema intitulado “Ode a minha mãe”.: “Minha melhor amiga era minha mãe; ela era decidida, inteligente, paciente, tranquilizadora, racional, exigente, sofisticada, indispensável, arrumada e útil, como uma aranha” (Bourgeois, 2004:326), Em São Paulo, no Museu de Arte Moderna, pode-se ver uma das Aranhas. Ali, o monstruoso animal, de nove metros de altura, fica exposto numa sala de vidro, podendo ser visto por aqueles que passeiam pelo Parque Ibirapuera. As dimensões da escultura, bem como suas patas pontiagudas de bronze evocam a proteção. Afinal, quem ousaria enfrentar um animal de tamanha proporção, com patas que podem perfurar aqueles que se aproximarem, além de ser dotado de veneno, de uma picada extremamente dolorida, capaz de tombar um touro ou um leão? A aranha -protetora é evocada pela artista em seu poema: “Ela [a mãe, assim como a aranha] também sabia se defender, e a mim, recusando-se a responder perguntas pessoais ‘idiotas’, inquisitivas e embaraçosas” (Idem). Numa outra camada de sentido, a figura da aranha representa a criação, a inventividade ligada à confecção de tapeçarias – este era o trabalho da mãe da artista. A imagem associa-se à história de Aracne, relatada pelo poeta Ovídio. Aracne andava pela cidade dizendo ser a melhor tecelã que havia. Os rumores chegaram aos ouvidos da deusa Atenas, que, então, lança a ela um desafio para saber qual das duas seria a mais virtuosa nessa arte. Enquanto Atenas retrata os deuses no Olimpo, suas belezas e histórias em seus tecidos, Aracne expõe lindamente as falhas dos deuses. Furiosa, Atenas transforma a tecelã numa aranha; seus habilidosos e rápidos dedos dão lugar a finas patas, condenas a tecer um único fio branco por toda a vida. Anne Creissels fala de uma Aracne impetuosa e talentosa, cuja falha é a hybrys ou o excesso de orgulho, não suportado pelos deuses (Creissels, 2005:2). Ela é monstruosa mesmo antes da metamorfose, pois ao reivindicar seu título como a mais habilidosa na arte da tecelagem, mais habilidosa que a própria Atenas, faz estremecer as hierarquias, abalando os limites que separam os homens dos deuses. De acordo com Creissels, descontextualizado por um olhar contemporâneo, o mito pode ser associado às dificuldades das mulheres para se afirmarem como sujeitos e como artistas (Idem). Séculos depois do poema de Ovídio, Aracne vagará aos farrapos e louca no purgatório de Dante. Associada à sexualidade feminina e à loucura, no século XIX a aranha remeterá à “viúva negra”, aquela que mata após o acasalamento. A aranha é, assim, aquela que aprisiona, enreda em sua teia a vítima, que sufoca e mata. Essa dimensão, também, está presente nas esculturas de Bourgeois e mais explicitamente numa de 1997, na qual a aranha gigante envolve suas próprias pernas num cercado circular, que lembra uma gaiola. A sensação é de que ela cria com seu corpo uma prisão, da qual é impossível escapar. Sobre a figura da aranha na tradição ocidental, Rago diz: “De Darwin a Lombroso, passando pela literatura e pelas artes, fez-se extenso uso da aranha para mostrar os perigos da sexualidade feminina materializados em figuras femininas desviantes, das ninfomaníacas às tríbades, onanistas e lésbicas,todas consideradas histéricas, perversas e loucas” (Rago, prelo). Nesse sentido, a aranha de Bourgeois evoca a seguinte sensação: a mulher-aranha, da qual não se pode escapar; como não se pode escapar da fúria da “viúva negra” ou da sedução da mulher fatal.
Ressonâncias contemporâneas O corpo feminino saturado de sexualidade não se apresenta nos dias hoje, ao menos, não tanto, como um corpo histérico. Com a liberação sexual e o movimento feminista, os discursos médicos do século XIX foram avidamente questionados. No entanto, o sexo, especialmente de mulheres, surge como grande tema midiático. Como fazê-lo, quando fazê-lo, com certa liberalização dos costumes, efeitos discursivos contraditórios das sociedades pós-industriais, pós-modernas, pós-gênero. A sexualidade feminina explode em reality shows, nas redes sociais, nas publicidades, nas músicas populares. Os assujeitamentos são outros agora – cotidianos e quase imperceptíveis, tal qual a TPM, como lembra Tania Navarro-Swain (2006), que faria dos úteros e dos ovários condutores periódicos de nossas mentes. Alguma semelhança com a histeria? Ou a menopausa que significaria a perda de nossa função biológica primeira (a maternidade) levando à falência nossos corpos (Swain, 2003; 2006). Anorexia e bulimia, transtornos majoritariamente femininos inscrevem-se nos corpos das jovens garotas[iii]. Em breve pesquisa no Google, foram observados comentários como os de Táki Cordás, médico psiquiatra e professor da Universidade de São Paulo. Segundo ele, distúrbios alimentares são acompanhados de uma série de outras patologias, tais como a depressão e, claro, a promiscuidade sexual. Distúrbio dos corpos femininos que eliminaria as características sexuais, como a menstruação, e que têm como fator indiscutível uma alteração da neuroquímica cerebral[iv]). A sexualidade feminina é colocada mais uma vez emdiscurso, re-modulando corpos doentes. Retomando as aranhas, elas costumam remeter à feminilidade. Mulheres ardilosas, destruidoras, capazes de levar à loucura até o homem mais racional. São, também, rebeldes e impetuosas, aludem à liberdade: mesmo mantidas em cativeiro, jamais produzirão seda para o consumo humano (Herkenhoff, 1997: 29). As esculturas-aranhas de Bourgeois são arquiteturas ambulantes, por sua vez capazes de tecerem arquiteturas, como sugere Herkenhoff (Idem: 28). Seus corpos constroem sua própria morada; eles produzem aquelas substâncias necessárias à vida. Constroem delicadas linhas de deslocamentos. No mito, os fios de Aracne comprometem-se com a verdade; ousam dizê-la assumindo os riscos de desafiar os deuses – uma verdade situada pelo olhar contemporâneo com base no compromisso feminista de desconstrução das imagens e dos discursos que fixamidentidades, que se hoje são aparentemente multifacetadas, não deixam de produzir efeitos asfixiantes. A poeta brasileira Angélica Freitas, com ironia, escreve: “ [...] a mulher é uma construção deve ser a mulher basicamente é para ser um conjunto habitacional tudo igual tudo rebocado só muda a cor [...]” (Freitas, 2012:45)
Garotas em fuga, entretanto, não deixam nunca de imaginar outros modos vida, mais livres e belos, criando suas próprias arquiteturas, seus espaços singulares. Não pertencem às famílias ou aos hospitais e às clínicas. Elas são, como Louise Bourgeois, artistas da vida e criam para si outras histórias.
16. Louise Bourgeois segurando
a obra Spider IV, 1996. Nota biográfica Gabriela De Laurentiis é mestranda em História Cultural pela UNICAMP e bolsista da FAPESP. Pesquisa o tema A poética visual de Louise Bourgeois e os modos feministas de criar, sob orientação da Dra. Margareth Rago.
Referências bibliográficas BOURGEOIS, Louise. 2008. Documentário The Spider, The Mistress and The Tangerine. Direção: Marion Cajori e Amei Wallach. Estados Unidos: Zeitgeist Films. ______2004 Destruição do Pai, Reconstrução do Pai. Marie-Laure Bernadac; Hans-Ulrich Obrist (orgs.). São Paulo: Cosac Naify,. ______2007. Cells. In MORRIS, Francis. (org.). Louise Bourgeois. Tate Publishing: Londres. P-71. CHADWICK, W. 1999. Mujer, Arte y Sociedad. Barcelona: Destino. CREISSELS, Anne. 2005. L’ouvrage d’arachné: la résistance en oeuvre de Ghada Amer à Louise Bourgeois, Imagesre-vues, n°1. Disponível em: http://imagesrevues.revues.org/326 CRONE, Rainer; SCHAESBERG, Petrus. 2008. Louise Bourgeois: The Secret of the Cells.Estados Unidos: Prestel. . FRONTISI-DUCROUX, Françoise. 2003. L´homme-cerf et la femme-araignée. Paris: Gallimard. FREITAS, Angélia. 2012. Um Útero é do Tamanho de um Punho. São Paulo: Cosac Naify. FOUCAULT, Michel. 2009.História da Sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo:Graal. ______ O Nascimento da Clínica. 2008 Rio de Janeiro: Forense Universitária. HERKENHOFF, Paulo. 1997. Louise Bourgeois. Rio de Janeiro Centro Cultural Banco do Brasil; Fundação Bienal de São Paulo: KRISTEVA, Julia. 2007. Louise Bourgeois: From ‘Little Pea’ to Runaway Girl. In MORRIS, Francis. (org).2007. Louise Bourgeois. Londres: Tate Publishing. pp. 246-252. MAYAYO, Patricia. 2002.Louise Bouregois. Madrid: Nere. PERROT, Michelle. 2005. As mulheres ou o silêncio da história. Bauru: Edusc. RAGO, Margareth. No prelo. Foucault, a Histeria e a Aranha. In Muchail, Salma; Fonseca, Marcio; Veiga Neto, Alfredo, Foucault e a História da Loucura. Autêntica. RAJCHMAN, John. 1988. Foucault's Art of Seeing. In October, Vol. 44, pp. 88-117 Cambridge:The MIT Press. SWAIN, Tania. 2006. Entre a vida e a morte, o sexo. In Revista online Labrys – Estudos feministas, Número 10 - junho/ dezembro. ______2003 Velha? eu? Autorretrato de uma feminista. In Revista online Labrys – Estudos feministas, Número 4, agosto /dezembro. [1] Norma Telles recorrendo à Bachelard diz “A palavra poética é o ser novo, contemporâneo, que pelo presente origina e evoca o passado, ser que é inseparável de sua expressão que por sua vez é o ser que ela própria institui” (Telles, 2012: 40).
[i] Uma primeira versão deste texto foi apresentada no evento “Mulheres fazendo arte: territórios estéticos, políticos e culturais”, realizado em outubro de 2012, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. [ii] Ver sobre o Anjo do Lar: Telles, Norma. Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil do Século XIX. São Paulo. Intermeios: 2012, pp 85-92. [iii] Estas informações estão no relatório “Prevention of Mental Disorders. Effective Interventions and Policy Options”, produzido pela Organização Mundial de Saúde, em 2004. Disponível em: http://www.who.int/mental_health/evidence/en/prevention_of_mental_disorders_sr.pdf [iv] Entrevista disponível em: http://drauziovarella.com.br/wiki-saude/anorexia-nervosa-e-bulimia/
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