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janvier / juin 2013  -janeiro / junho 2013

O Futuro das Princesas

   Liliane Machado

Resumo:

Trata-se de uma análise do filme Valente, animação produzida em 2012 pelos estúdios Pixar, com o objetivo de investigar dois conjuntos representacionais presentes à obra: a ausência da figura do príncipe encantado e a regeneração da figura materna. Utilizo como aporte teórico os estudos feministas e de gênero e as representações sociais e, como metodologia, emprego a análise de discurso francesa. Ao final, teço considerações acerca dos possíveis impactos que tais injunções provocam nas representações acerca das mulheres no mundo contemporâneo.

Palavras-chaves: Valente. Estudos Feministas e de gênero. Representações Sociais. AD francesa.

 

            O destino tradicional das princesas de contos de fadas, seja aquele narrado em livros, filmes e/ou desenhos animados, pode estar com os dias contados. Valente, dirigido por Mark Andrews e Brenda Chapman, animação realizada pela Pixar e distribuída pela Disney no ano de 2012, é um exemplo de que a indústria midiática está atenta aos novos valores associados às mulheres. Dessa vez, a ousadia dos midas de Hollywood criou uma princesa que não está em busca do príncipe encantado e, sim, da liberdade de forjar suas escolhas, construindo uma existência livre das convenções sociais. Mega-produção, cujos custos ultrapassaram os 180 bilhões de dólares, consagrou-se rapidamente como um retumbante sucesso, do ponto de vista comercial.

          A protagonista é uma jovem princesa, de fartos cabelos ruivos e encaracolados, que ama cavalgar pelos campos do seu reino – ambientado na Escócia – e que tem como paixão o manuseio do arco e flecha. Exímia atiradora, mantem-se livre na infância e na adolescência para cultivar hábitos, sem dúvidas, pouco comuns na vida de uma princesa até que, na juventude, é obrigada a enfrentar o destino que a mãe, a rainha, reservou-lhe: sucedê-la no trono, após casar-se com um dos príncipes que disputarão sua mão, em um torneio organizado pelos pais.

            Valente despertou-me a atenção por evocar o tema da tese de doutorado que defendi no Departamento de História da Universidade de Brasília, em 2006, na extinta linha de pesquisa de Estudos Feministas e de Gênero[1]. À época, escolhi, dentre outros objetos, filmes de animação, distribuídos internacionalmente, portanto com ampla visibilidade, graças a sua exibição em circuitos de cinema e TV e disponibilidade em VHS e DVD e cujas protagonistas fossem jovens, munidas de talentos e poderes especiais, tais como inteligência, perspicácia, disciplina militar, sagacidade e coragem.

            Os eleitos – a saber: A Bela e A Fera; Mulan e Shrek - com suas respectivas continuações — A Bela e A Fera: O Natal Encantado; Mulan II: A Lenda Continua e Shrek II — datam de 1998 a 2004, e apresentam - além das imagens acima registradas, que classifiquei de inovadoras, em relação ao modelo tradicional de personagens vistas na grande maioria da produção midiática, feita até então no âmbito da animação infantil do mundo ocidental - outras, tradicionais e evocativas do modelo da verdadeira mulher, como as da beleza, meiguice, bondade, juventude e cuidado para com o outro. A noção de verdadeira mulher é uma crítica à ideia de que haveria um paradigma correto e perfeito a ser alcançado e desincumbido por todas as mulheres. De acordo com Navarro-Swain

 “[...] tecida em uma densa rede discursiva que imbrica memória, tradição e autoridades diversas, a representação da ‘verdadeira mulher”, mãe/esposa/dona de casa é ainda em nossos dias, a imagem e o quotidiano da maioria das mulheres. A multiplicidade que compõe o desejo e a experiência das mulheres, é esquecida pelo efeito homogeneizante da imagem do Mesmo (...) o ‘eterno feminino” se atualiza no senso comum, nos mídia (televisão, cinema, imprensa, música, etc) nos discursos dotados de autoridade”(2000: 56).

        Dentre as várias considerações feitas ao final da pesquisa, afirmei que:

"[...] ao relacionar o arranjo textual das fontes às suas condições de produção sócio-históricas, observei que a estratégia adotada pelos produtores culturais consiste em fazer concessões frente às demandas de determinados grupos sociais desejosos por mudanças, no caso, o de grupo feministas tentando, ao mesmo tempo, não precipitar uma revolução de costumes. Tal arranjo permite que, por um lado, as mulheres sejam percebidas como seres dotados de inteligência, perspicácia, disciplina, entre outros valores positivos, os quais, durante muito tempo, foram atribuídos unicamente aos homens e, por outro lado, que sejam vistas como as guardiãs da família, destinadas ao casamento "(2006: 228).

       Passados seis anos do término da pesquisa e oito da realização de Shrek 2, à época o mais recente dos filmes analisados, defronto-me com Valente e, aparentemente, com novas injunções representacionais acerca das meninas/garotas/mulheres na produção midiática. Duas questões, particularmente, chamam minha atenção na obra, ao compará-la aos filmes produzidos entre o final dos anos 1990 e a primeira parte da década de 2001: a figura do príncipe encantado está praticamente ausente da história e, por outro lado, a figura da progenitora assume contornos diferenciados: quer impor sua vontade a jovem filha rebelde, mas, também é carinhosa, amável e, ao final, o conflito de gerações cederá espaço para a cumplicidade entre a mulher mais jovem e a mais velha.

Novas rupturas?

      Meu objetivo neste artigo é deter-me na investigação acerca das duas questões anteriormente levantadas, por meio da análise das representações sobre os feitos e sonhos de Mérida, a protagonista da obra, concomitante à investigação acerca dos sentidos que a obra impetra acerca da relação entre mãe e filha, no caso, rainha e princesa. Parto do princípio de que o filme dá continuidade ao processo de ruptura representacional acerca das mulheres, no âmbito da produção cultural midiática, dirigida ao público infanto-juvenil, na medida em que imprime novas perspectivas para o processo de subjetividade das mulheres.

       A noção de ruptura é trabalhada por Foucault, com o propósito de corroborar a assertiva de que não cabe ao pesquisador preocupar-se apenas com as grandes transformações sociais, motivadas por hecatombes, tais como as guerras ou as revoluções. Fundamental, para o filósofo e historiador francês é: “renunciar a todos os temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso (...) é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos”. (1995: 28). Portanto, cabe-nos a função de olharmos para a realidade com uma postura de constante inquietude e curiosidade. O cotidiano e seus desdobramentos são uma fonte infinita de possibilidades para que se compreenda o contínuo movimento do imaginário social e as mídias, sem dúvidas, constituem uma fonte privilegiada para esse propósito, graças ao seu poder de sedução e encantamento.

        Utilizarei como aporte teórico os estudos feministas e de gênero, as representações sociais, o imaginário social, bem como os estudos culturais da mídia. Como aporte metodológico concentrar-me-ei na análise de discurso francesa, na tentativa de compreender a materialidade do discurso engendrado na obra. A AD francesa (como é chamada na sua forma reduzida no Brasil) tem como objetivo, segundo Maingueneau, “articular a enunciação com o seu lugar social” (2000: 13/14). Dessa forma, cabe ao analista levantar e compreender as questões relativas à linguagem, propriamente dita, tais como o uso das figuras de linguagem, projetando os sentidos do que é dito no espaço sócio-histórico em que é articulada a enunciação.

        Dessa forma, destacarei, em primeiro lugar, algumas das cenas e diálogos de Valente que me propiciem investigar, uma a uma, as duas questões levantadas: a pouca importância que a história dispensa à figura do príncipe encantado e a assertividade da relação mãe e filha. Será fundamental trazer a materialidade do discurso, em primeiro lugar, para que fique claro que o método da AD francesa descarta a possibilidade de se ver além ou aquém do que está dito e, também, para que os nossos interlocutores possam acompanhar melhor a segunda etapa do processo analítico, aquela em que se procederá à diferenciação das representações presentes no filme em relação às obras trabalhadas na tese.

           Jodelet afirma que a representação social pode ser caracterizada “como uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (2001: 22). O seu estudo permite que se adentre na atividade de apropriação da realidade que as sociedades perpetram, num movimento contínuo, já que as representações não são imutáveis.

          Por fim, projetaremos tais questões no âmbito dos estudos feministas e de gênero e seu possível impacto no processo identitário. De acordo com Butler, “seria errado supor que a discussão sobre a ‘identidade’ deva ser anterior à discussão sobre a identidade de gênero, pela simples razão de que as ‘pessoas” só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do gênero” (2003: 37). É uma assertiva que integra os estudos feministas pós modernos e que trabalha a ideia de que sexo e gênero são construídos concomitantemente e não de maneira separada e subsequente, como formulado nos primórdios da pesquisa feminista.      

 

O príncipe sumiu

         A tradicional figura do príncipe encantado está ausente da história de Valente. Em seu lugar, temos em cena a princesa Mérida, seus pais, o rei e a rainha, três irmãos caçulas, os criados do castelo, meros figurantes, e os pretendentes à mão da moça, acompanhados de seus pais. Outra figura de destaque é uma bruxa, que cumprirá, a seu bel prazer, os desejos de Mérida, pregando-lhe uma peça muito incômoda e, por fim, o cavalo, a quem ela devota atenção e carinho e de quem espera apoio nos momentos mais arriscados da sua aventura.

          Os realizadores concentraram-se em uma questão diferente das que o público está habituado a ver nessas produções: a necessidade da protagonista afirmar seus desejos e ser respeitada em suas opções de vida. Não aceita o fardo de ser a sucessora da rainha se, para isto, tiver que abrir mão da sua liberdade de ir e vir, de cavalgar com os longos cabelos embaraçados ao vento e de atirar com arco e flecha tão bem quanto qualquer outro cavalheiro.

            Esse é o mote principal da história, tratado de forma pueril, como é de hábito nos filmes de animação produzidos pelos estúdios estadunidenses, mas, nem por isso, menos capazes de encantar as platéias, espalhadas por países de continentes diversos, entre os quais, o Brasil. A fórmula continua dando certo e não pode ser apreendida apenas como uma fonte de alienação, com efeitos narcotizantes, como afirmaram veementemente, por exemplo, os teóricos frankfurtianos, no âmbito do que, hoje, comumente, agrega-se na alcunha das teorias da comunicação. O melhor é vislumbrarmos em filmes como Valente suas possibilidades de impacto e de diálogo com as questões que envolvem o ser humano no mundo contemporâneo.

            Kellner observa que as mídias tem um efeito pedagogizante, o qual precisa ser levado em consideração pelos analistas dos produtos midiáticos, já que provoca enorme impacto nas identidades dos usuários contumazes. Também observa que essa capacidade é obtida pelos produtores e realizadores, graças à habilidade de trabalharem com questões emergentes no cenário das culturas, tais como a inclusão das reivindicações de grupos socialmente emergentes, como o das mulheres, dos negros, entre outros. Segundo o autor (2001, p.124) um estudo cultural multiperspectivo utiliza uma ampla gama de estratégias textuais e críticas para interpretar, criticar e desconstruir as produções culturais.

 

A princesa assume o protagonismo

           

         Sem dúvidas, o que está presente na personalidade, desejos e sonhos de Mérida não é nada de novo no cenário das preocupações das garotas do mundo ocidental contemporâneo. A personagem vivencia exatamente aquele período da vida em que o indivíduo deixou de ser criança, está em estado adiantado da adolescência e quer firmar-se no mundo. Para obter sucesso na sua busca necessitará de distanciar-se das fantasias que os pais tecem a seu respeito.É possível observar uma coerência nas atitudes de Mérida do início ao final da obra. Logo nas primeiras cenas, que aludem à comemoração de seu aniversário, ainda muito criança, ela defronta-se com a arma do pai, depositada em cima da mesa e pede-lhe:

Mérida: posso disparar uma flecha, posso, posso, posso? Por favor, posso?

Pai: Com isso não. Porque não usa isso? Parabéns minha pequenina!.

        O diálogo entre pai e filha é melhor compreendido quando se visualiza a cena em sua integralidade. Mérida, ao tentar empunhar a arma do pai, cai no chão, devido o seu peso. Ri e o pai tira do bolso um arco menor, proporcional ao tamanho da garotinha e o entrega dando-lhe os parabéns pelo aniversário. Ao recebê-lo, a menina, que traja um vestido verde confortável, usa cabelos longos e soltos, visivelmente embaraçados, pula de contentamento e, imediatamente, começa a praticar com o novo brinquedo. Erra, na primeira tentativa, mas não desistirá.

      Não se parece, de faato, com uma princesa habitual dos contos de fadas Disney, pois é irrequieta, risonha, olhos muito abertos de curiosidade, como se estivesse devorando o mundo ao seu redor. Não tem maneiras delicadas e gentis, como de hábito no comportamento das crianças pertencentes à nobreza e quando erra o alvo e fica decepcionada consigo mesma, não chora nem pede ajuda. A mãe, por sua vez, a incentiva a ir procurar a flecha e ela sai correndo, em direção à floresta, para procurá-la.

      Há um corte na cena. Mérida adentra a floresta e procura a flecha. Encontra-na e, em seguida, depara-se com pontos brilhantes de luz, que se movem rapidamente, e exclama, extasiada:

Mérida: Então é verdade, eles existem!

          Volta correndo para os pais e diz que viu um Punhado. A mãe lhe diz que a vontade dos punhados leva as pessoas ao seu destino.

         Novamente é preciso observar o conjunto da cena para que se apreenda melhor o inusitado da história. Mérida entra na floresta sozinha, não se mostra assustada, ainda que ao seu redor vejamos árvores imensas, de aparência assustadora para alguém tão jovem e pequena. Sombra e luz alternam-se, originando um cenário mágico. Um rumor de folhas ao vento sugere uma descoberta iminente até que encontra os Punhados, seres mágicos da floresta. Não há uma amiga ou amigo junto dela, nem criadas e guardas, está sozinha diante de um mundo fascinante. A maneira como vivencia a situação demonstra sua impetuosidade e coragem. Corre atrás dos pontos brilhantes de luz e, finalmente, retorna para a companhia dos pais.

         A chegada inesperada de um enorme urso interrompe seu diálogo com a mãe e as duas fogem, deixando o pai enfrentando a fera. Corte da cena e narrativa em off com os seguintes dizeres:

     Voz em off: Alguns dizem, o nosso destino está entrelaçado com a Terra.

      É uma parte de nós como nós somos dela.

      Outros dizem, o destino está entrelaçado como um pano.

Então isso é um destino entrelaçado como os outros.

      É a única coisa que procuramos ou lutamos por mudar.

      Alguns nunca o encontram.

      Mas há alguns que são guiados.

            É o ponto de virada da obra, aquele que antecede e pontua os conflitos que virão a seguir. Qual é o destino reservado à criança que, na cena seguinte, já aparece jovem, por volta dos 18 anos? A impetuosidade e os hábitos despojados cederão espaço para um comportamento mais condizente com o de uma princesa? A Rainha fará de tudo para que isso ocorra, como se observará nas cenas seguintes, entretanto a garota demonstra tenacidade para fazer valer sua vontade. Mérida aparece andando de forma largada, comendo uma maçã com as mãos, ainda portando um vestido largo e confortável, com os longos cabelos ruivos cacheados soltos. Enquanto isso comenta:

Mérida: Minha mãe está encarregada de cada dia da minha vida!  

            Ao pronunciar a frase faz um muchocho com a boca e põe a mão no queixo com enfado. A dica acerca dos desentendimentos entre mãe e filha é corroborada nas cenas seguintes, nas quais Ellinor, a Rainha, tenta educar a filha com lições de história, boas maneiras e música, instando-a ser perfeita em tudo o que faça. O trabalho parece fadado ao fracasso diante do desdém de Mérida e da sua preferência em cultivar hábitos antigos. Sempre que consegue, escapa da vigilância da mãe e sai cavalgando com os cabelos soltos ao vento, atirando com o arco e flecha e escalando rochedos íngremes.

            O Pai não colabora com a vontade da Rainha, prefere lutar com a filha, criando uma cumplicidade que parece mais propícia à relação entre um filho e o progenitor. Abaixo disponho a reprodução de um take do filme. Em primeiro plano, estão dispostos Mérida e o Rei, que se divertem em uma luta amistosa, enquanto Ellinor os observa do alto das muralhas do castelo, com uma expressão visivelmente contrariada. O ar de alegria e triunfo da Princesa, vestida de forma displicente e com os cabelos ruivos e cacheados, soltos sobre os ombros, é flagrante.

            A diferença de postura entre a mãe a filha também são visíveis. A Rainha, em trajes elegantes, cabelos trançados em um penteado perfeito, exala altivez régia, enquanto a filha lembra mais uma camponesa. A ruptura com a representação de uma princesa típica é implementada na prática do esporte, no figurino e no penteado. Sem dúvidas, trata-se de uma interferência no imaginário social que não pode ser desprezada pelo analista, pois indica o redimensionamento de uma prática social

 

 

              A rebeldia, a inadaptação às regras e conveniências também foram percebidas, inicialmente, nas heroínas de A Bela e A Fera, Mulan e Shrek. A diferença é como o conflito será trabalhado e resolvido. Mérida não submeter-se á aos caprichos da Rainha e fará de tudo para fazer valer a sua vontade. Quando é informada sobre a chegada iminente dos candidatos à sua mão e da realização de um torneio, cujo ganhador será o eleito, questiona a mãe:

     Mérida: Eu pensava que uma princesa fazia o que queria!

      Rainha: A princesa não cria a sua voz. Isto é aquilo para que fostes preparada a vida inteira.

      Mérida: Não, é aquilo que preparastes para a minha vida. Não te safes desta. Não me podes obrigar! Pretendentes, casamento? Não é justo!

      Rainha: Oh Mérida, é um casamento, não é o fim do mundo!

           A princesa deixa a companhia da mãe e busca a de Angus, o cavalo, com quem conversa expressando sua inconformidade:

     Mérida: Eu não quero que a minha vida acabe. Eu quero a minha liberdade. Eu juro Angus, isso não vai acontecer, não se eu tiver uma palavra a dizer.

            Ao invés de chorar ou lamentar-se, como foi o caso de Mulan, ao ser rejeitada como noiva e assim ter exposto a família ao ridículo, Mérida partirá para o ataque. Veremos que não se tratam de meras palavras de alguém que não aceita ser contrariado, a princesa realmente julga que o casamento será o fim da sua liberdade e contra isso envidará todos os esforços possíveis. A impetuosidade da princesa a levará a adotar uma atitude ousada durante o torneio dos pretendentes à sua mão. Uma das provas consistirá em atirar com arco e flecha num alvo distante. Ao ver os pretendentes errarem o alvo ela adentra o torneio, reivindica para si a possibilidade de representar a si mesma e acerta a mira duas vezes seguida.

            Observe-se a reprodução do take que compõe a cena, disposta abaixo:

  

            Mérida havia sido cuidadosamente trajada por sua mãe para comparecer na frente dos candidatos à sua mão: vestido justo e cabelos presos em uma touca. Quando desce para arena, retira a touca, rompe as costas do vestido, cujo corte impedia-na de movimentar bem os braços e mostra-se, de novo, como a garota de movimentos livres e postura despojada. Em primeiro plano, ela empunha o arco e flecha, sob o olhar atordoado dos pais, localizados à direita da cena e de dois dos candidatos a noivos, dispostos à esquerda.

            A sua expressão é de absoluta concentração, como de hábito nos grandes arqueiros. É uma vitória de tirar o fôlego da platéia, que a vê acertar o alvo duas vezes seguidas. Dessa forma, os diretores do filme empreendem uma nova ruptura na representação das mulheres, visto que a personagem, de maneira emblemática, recusa a possibilidade de que alguém possa representá-la, assumindo para si o protagonismo da cena.

            Mas a atitude de Mérida apenas enfurece a sua mãe, momento em que as duas rompem a relação, com a subseqüente saída da princesa do palácio. Ela vai em busca da ajuda dos Punhados, os seres mágicos do destino que habitam a floresta, que a auxiliarão a encontrar uma bruxa, a quem pedirá que lhe faça um feitiço:

     Mérida: quero um feitiço que mude a minha mãe. Isso vai mudar o meu destino!

            A bruxa satisfaz-lhe a vontade e cozinha-lhe um bolo mágico. Quando o dá de comer à mãe, esta transforma-se em um urso. Tem início uma árdua luta da princesa para conseguir impedir que a rainha seja morta, pois é vista como uma fera perigosa, que precisa ser eliminada. Não me deterei nessas peripécias do enredo, por enquanto, preferindo concentrar-me no embate vitorioso de Mérida, frente a sua mãe. Ao final, ela conseguirá convencer todo o reino de que a vontade do indivíduo tem que prevalecer frente às obrigações que lhe são atribuídas. Sua fala a seguir, expressa sua vitória:

Mérida: Eu decidi fazer o que é certo. Não seguir a tradição A minha mãe, a Rainha, sente no seu coração que eu...que nós somos livres para escrevermos a nossa própria história...seguirmos os nossos corações e encontrar o amor a nosso tempo. A Rainha e eu colocamos a decisão em vocês, meus lordes. Os vossos povos podem decidir com quem vão casar e ficar?

Lorde: Está feito. Vamos deixar que os rapazes tentem ganhar o coração das senhoras antes de ganharem a sua mão. Se conseguirem!

Rei: Como a tua mãe! Seu Diabo!

         É importante salientar que a palavra dela é respeitada e acatada. O clássico adágio “Palavra de Homem”, que pulula no imaginário social brasileiro e que se presta ao significado de que a promessa feita por alguém do sexo masculino vale como um documento, no filme ganha outro significado: o da mulher que cumpre o que promete. Lembre-mo-nos que ela havia jurado para o cavalo que seria ouvida e que não se curvaria aos desígnios maternos. Assim foi dito, assim foi feito.

       Ao remeter a obra aos filmes anteriormente analisados na tese há outra diferença eloqüente: Mérida obtém sua vitória sem que haja a necessidade de ajuda de um cavaleiro ou de um príncipe. Saliento que nos três filmes bem como em suas respectivas continuações a figura do homem nobre, generoso, combatente e capaz de resolver os problemas enfrentados pelas heroínas foi uma constante. Mulan, Bela e Fiona sofriam com sérios problemas identitários, que só o advento do salvador foi capaz de resolver.

      Bela sentia-se deslocada na aldeia em que vivia, pois era a única moça que gostava de ler e que, ademais, desprezava o galã do lugar, um grosseiro que não via nos livros nada mais que um passatempo perigoso para as mulheres. Já Mulan, era acossada pelo pesadelo de não ser uma boa filha de pais que ela amava incondicionalmente, visto que não conseguia portar-se como uma dama capaz de arranjar um bom casamento e assim honrar a família. Fiona, por sua vez, é vítima de um encantamento que lhe confere dupla personalidade, mal que só será extirpado com o beijo do verdadeiro amor.

      Três heroínas que realizam feitos invejáveis em suas trajetórias, mas que só terão seus problemas resolvidos, em definitivo, após a chegada do homem de suas vidas. É o contrário do que ocorre em Valente: a heroína não contará com a ajuda de um príncipe encantado – caso de Bela -, ou de um ogro protetor e de bom coração – caso de Fiona - ou mesmo de um bravo capitão, ex-colega de farda, - caso de Fiona. Caberá à Mérida resolver seus problemas sem a interferência do referencial masculino.

      Não é uma mudança irrelevante, a meu ver. Em um curto período de tempo  - oito anos distanciam a realização entre Shreck II e Valente – o homem, a idealização  romântica e o casamento deixam de ser as principais preocupações da heroína ou a possibilidade de seu amadurecimento e realização existencial. O seu destino, como predisse inicialmente a narração em off, é uma busca que ela terá que empreender sozinha, pois sua principal meta é ter seus desejos respeitados.

      Apenas, ao final da obra, quando a mãe desiste de impor-lhe um marido é que se alude ao ideal do amor romântico. O que ocorre de forma irônica, visto que são os pretendentes que se mostram satisfeitos com a chance de, no futuro, escolher casar-se com pessoas de que gostam e não submetidos aos interesses do reino.

     Ao final, a voz em off de Mérida conclui:

Mérida: Alguns dizem que o destino está para lá do seu controle, que o destino não é teu. Mas tu sabes melhor. O nosso destino vive em nós. Só tens que ser corajoso e veloz!

 

A regeneração da figura materna

      Quem estará ao seu lado, primeiro, como inimiga, e depois como aliada, será a mãe, figura emblemática que, praticamente, estava ausente nos filmes que compuseram o corpus da tese. Mulan tem mãe, mas seu desejo é, acima de tudo, agradar o pai. E esta não lhe ajuda em nada em sua odisséia. Bela, por sua vez, não tem mãe e o pai é a única figura familiar de que dispõe. Já Fiona foi abandonada pelos pais na Torre, à espera que um príncipe que fosse salvá-la.

     Valente, sem dúvidas, alcança um grande salto qualitativo na representação da mãe. Esta se transforma de figura ausente e/ou temida em uma companheira, na medida em que se torna, ao final da história, em uma aliada da filha projetando a ideia da solidariedade entre duas mulheres, o que não é para ser desprezado, ao contrário, comemorado como uma das novas representações acerca das mulheres nas mídias.

      A cópia do take que disponho abaixo mostra o momento em que Mérida luta para salvar a Rainha (transformada em urso) dos caçadores que querem eliminá-la. A espada que a princesa empunha e maneja de forma hábil será fundamental para que vença os homens ao redor. Observem a sua expressão decidida frente aos algozes de Ellinor e o olhar de súplica da ursa, cuja única defensora é a jovem filha, vista antes como uma garota indisciplinada e rebelde.

   

       Outra quebra na representação tradicional das mulheres: uma salva a outra. Tornar-se-ão definitivamente aliadas quando a ursa for transformada em gente, novamente. Elas aprendem a respeitarem-se mutuamente possibilitando-lhes o desenvolvimento da cumplicidade mulher-mulher/ mãe-filha.

      Afinal, se em vários produtos midiáticos a figura da mãe é negativa, em outros, por outro lado, ela é vista como a essência da mulher, o destino para o qual todas nós fomos criadas. Navarro-Swain, ao criticar a tentativa de se atribuir às mulheres um modelo, uma forma singular centrada em seu corpo, em sua capacidade reprodutora afirma “a mãe é o modelo da mulher, a mulher no singular, uma figura fractal, que reproduz infinitamente a mesma imagem, reduzida a um sentido unívoco do ser” (2007: 204). No filme, entretanto, a maternidade não é exaltada como um fim em si mesma, pelo contrário, é criticada, posta em questão pela filha, quando decide que não aceitará as imposições de que seja uma moça delicada, gentil, esposa e rainha.

     Mérida confronta a mãe, obriga-a rever seus posicionamentos no mundo – masculino e perpetuador de tradições patriarcais. Após muitos desentendimentos, a rainha aceita que a filha se assuma como sujeito de sua história. Melhor, solidariza-se com ela assumindo uma postura menos rígida: aparecem juntas cavalgando pelos prados do reino: a mãe de cabelos soltos, sorridente e tranqüila.

    Tania Rivera afirma que a condição de mãe pode trazer outros horizontes para as mulheres que não apenas o fatalismo da reprodução: “Inventar-se como mulher, a partir do rígido lugar de mãe que lhe é oferecido, e poder torna-se também, se for o caso, uma mãe-mulher (e não mais a mãe mulher que vimos em Freud” (2007: 195).

     Seria exagero dizer que estamos diante da morte definitiva da figura do príncipe encantado, salvador de nossas belas princesas. Ou que a figura materna, habitualmente relegada ao papel de coadjuvante ou de bruxa, foi plenamente reabilitada. Entretanto, não observar as mudanças no imaginário midiático seria fecharmos os olhos à possibilidade de mobilidade intrínseca às representações sociais.

 

nota biográfica

 

Liliane Machado possui graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (1987), mestrado em História pela Universidade de Brasília (1999) e doutorado em História pela Universidade de Brasília (2006). Tem experiência como repórter e redatora no Jornal de Brasília e Correio Braziliense e como assessora de imprensa em órgão público. Atualmente é professora do Departamento de Comunicação da Universidade de Brasília. UnB. Na função de professora, desenvolve pesquisas concernentes aos seguintes temas: jornalismo público, jornalismo investigativo, cinema, desenho animado, feminismo, gênero, representações sociais, imaginário e análise de discurso. Também edita a Revista Dialogos, periódico científico que aborda a pesquisa e extensão em âmbito nacional.

 

Imagens: Sítios consultados

www.cinepolis.com.br/filmes/fotos.php?cf=4241

 

Fontes

ADAMSON, Andrew e JENSON, Vick. Shrek- edição especial. Dreamworks, E.U.A, 2004.

COOK, Barry e BANCROFT, Tony. Mulan. Buena Vista, S.P., 1998.

TROUSDALE, Gary e WISE, Kirk. A Bela e A Fera. Abril Vídeo, S.P, 1998.

ANDREWS, Mark e CHAPMAN, Brenda. Valente. Disney/Pixar, S.P., 2012

 

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. R.J., Civilização Brasileira, 2003.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 4ª. Ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.

JODELET, Denise. “Representações Sociais: um domínio em expansão” in As Representações Sociais. Org.: JODELET, Denise. Rio de Janeiro, Eduerj, 2001.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, Edusc, 2001.

MACHADO, Liliane Maria Macedo. E A Mídia Criou A Mulher: como a TV e o cinema constroem o sistema de sego/gênero. UnB, Instituto de Ciências Humanas – IH Programa de Pós Graduação de em História, Brasília, 2006.mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm

MAINGUENEAU, Dominique. Termos-Chave da Análise do Discurso. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2000.

NAVARRO-SWAIN, Tania. “A Invenção do Corpo Feminino ou “A Hora e A Vez do Nomadismo Identitário?” in Feminismos: Teorias e Perspectivas. Org.: NAVARRO-SWAIN, Tânia. Revista da Pós-Graduação em História da UnB. Brasília, Editora da UnB, 2000, Vol. 8, números 1/2.

RIVERA, Tânia. “Um amor outro: ensaio psicanalítico sobre a feminilidade, criação e maternidade”. In Maternidade e Feminismo: diálogos interdisciplinares. Org. STEVENS, Cristina. Florianópolis, Ed. Mulheres; Santa cruz do Sul: Edunisc, 2007.


 

[1] MACHADO, Liliane Maria Macedo. E A Mídia Criou A Mulher: como a TV e o cinema constroem o sistema de sego/gênero. UnB, Instituto de Ciências Humanas – IH Programa de Pós Graduação de em História, Brasília, 2006.

 

 

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