labrys,
études féministes/ estudos feministas
Especismo: conceito e história Sônia T. Felipe
Resumo: Este artigo trata da questão da discriminação contra os animais, da origem dessa discriminação na filosofia antiga e do conceito especismo, criado por Richard D. Ryder no século XX para designá-la, fazendo par com os já conhecidos, racismo e machismo.
Discriminação moral da espécie biológica de vida Atentar contra a dignidade de seres humanos por conta de sua constituição ou orientação sexual é sexismo (heterossexismo, homofobia, machismo, misoginia, androginia). Se a dignidade da pessoa é violada por conta da etnia, é racismo. Machismo, sexismo e racismo são termos que se tornaram conhecidos nas últimas cinco décadas. Entretanto, se a vida de um animal é tirada em experimentos químicos e bélicos, se sua liberdade para viver de acordo com o éthos singular de sua espécie lhe é subtraída pelo confinamento em aquários, zoológicos, circos, galpões, gaiolas, baias, residências e correntes, se o espírito específico do animal é eliminado pela doma ou domesticação, se o animal é escravizado para atender aos interesses humanos, a exemplo das fêmeas bovinas usadas para extração do leite, das galinhas usadas para produção de ovos, das porcas usadas para reprodução dos porcos a serem abatidos, e em todos os casos nos quais os humanos tiram dos animais as condições de vida dignas da espécie em questão, não se usa um termo equivalente ao que designa o abuso contra o sexo, o gênero e a raça de um humano. O termo adequado para designar a discriminação contra animais não-humanos é especismo, pouco conhecido fora do movimento animalista. Se não há um conceito designando e delineando uma ação humana, não há reflexão crítica e ética sobre ela. Sem ser designada, a ação não pode ser avaliada. Sem ponderar seu valor, não se pode ter consciência do dano que pode causar a quem sofre seus desdobramentos, seja humano, seja não-humano. A violência contra os animais permaneceu por milênios sem referência conceitual alguma na história do pensamento humano, da filosofia à ciência, do direito à arte. No banquete dos cegos (dos que não querem ver) ao redor do planeta, os resíduos da violência contra os animais são servidos em todas as dietas animalizadas: carnes, ovos, mel, leite e seus derivados; em quase todos os tipos de vestimentas encontram-se resíduos animalizados: peles, couros, seda e lã; em quase todos os medicamentos alopáticos e em muitos homeopáticos resíduos animalizados entram na composição; em quase todas as formas de divertimento humano (circos, cinemas, zoos, rodeios e similares, esportes e artes), a um custo doloroso para os animais, o riso é evocado pela performance forçada de atores não-humanos. Praticamente todos os itens do consumo humano são animalizados. Embora os resíduos tirados do animal estejam ali, sua condição é a de referente ausente (absent referent) (Adams, 1990:42-44), invisíveis ao olhar. O que lhes foi infligido de dor, sofrimento e morte, para que fosse possível a extração do butim, passa incólume pelo filtro moral tradicional. Desde os primórdios gregos, a taxonomia das diferentes espécies biológicas ensejou a hierarquização do valor da vida. Ao catalogar as espécies, Aristóteles agrupa e distingue os animais humanos e não-humanos em função de habilidades mentais e da capacidade de movimentos autônomos, considerando inferiores os vulneráveis à captura e à escravização. Sem exceção, a classificação trata de reunir indivíduos da mesma espécie, mas desprezando exatamente a singularidade individual. Por ser universal, o conceito enfatiza um traço do objeto, possível de ser encontrado em todos os objetos da mesma classe. Ao padronizar (patronizar, patriarcalizar), o conceito universal violenta o singular. Não obstante, é no singular que o éthos de cada espécie se recorta sem jamais se repetir. Segundo Aristóteles, quanto mais habilidade um ser possui para mover-se e autoprover-se no ambiente social e natural e quanto mais cercado está de seres que não possuem seus traços específicos, mais poderá servir-se deles para atingir seus fins e realizar seus propósitos. Animais humanos e não-humanos foram classificados por seu éthos biopsicológico, por sua senciência ou aparente ausência dela. Distinções particulares ocorrem em cada indivíduo, mas essas não interessam ao conceito de animal. O éthos é a marca, o traço específico a partir do qual se pode excluir ou incluir o indivíduo em determinada categoria e ter certas expectativas em relação ao seu modo de interagir natural e socialmente. O conceito de humano, por exemplo, salienta este traço peculiar a uma determinada espécie animal: a racionalidade. Ao enfatizar a racionalidade como característica específica e exclusiva dos humanos, a filosofia velou sua animalidade. Omitindo-se o óbvio, o fato de que se há racionalidade há animalidade nessa mente, ainda que mentes configuradas em organismos diferentes tenham configurações racionais também específicas, atribuem-se direitos fundamentais a humanos, por exemplo, o direito à vida, à liberdade, à escolha reprodutiva e assim por diante, escamoteando-se que tais direitos são construções destinadas à proteção da vulnerabilidade animal de todos os indivíduos humanos, passíveis de serem mortos, de serem sequestrados, aprisionados, forçados à sexualidade infligida e assim por diante. Ao eleger a racionalidade como critério para se ter direitos, a filosofia exclui do direito os animais dos quais se diz não possuírem racionalidade. Uma vez excluídos dos direitos fundamentais, os animais não-humanos passam a ser objeto de propriedade dos seres autoproclamados racionais. Temos aqui a fonte do especismo que se projeta em todos os conceitos relativos aos animais não-humanos nos mais de dois milênios de ética antropocêntrica. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles reconhece que as plantas têm alma vegetativa, um movimento destinado ao autoprovimento e à reprodução. No seu entender, elas não têm alma desiderativa, peculiar ao animal, que provoca seu deslocamento consciente em direção a algo que está em outro lugar ou em outro tempo, algo desejado. Seres que desejam algo, além do que seu organismo e seu ambiente natural e social lhes dispõem, e os animais de todas as espécies são exemplo disso, são mais complexos em seu design ou expressão mental. Essa diferença os singulariza, pois cada indivíduo é levado a mover-se a seu próprio modo para poder atender ao seu desejo. Por ser obrigado a mover-se para autoprover-se o animal se revela vulnerável à morte, à dor e à privação. A sensibilidade e a consciência são os meios dos quais o animal dispõe para cercar-se de proteção contra o que pode destruí-lo. Nisso, todos os animais são iguais, humanos e não-humanos. Animais, portanto, diferem dos seres que nascem atrelados ou fixados ao ambiente, ao solo, às pedras, às águas ou às plantas. Animais são seres que ao nascer são separados de um útero ou de um ovo, sua fonte de provimento gestacional. Uma vez nascidos, é de um ambiente em movimento e transformação que os animais têm que obter a satisfação de suas necessidades. Seres desejantes vivem sob o império do ânimo vegetativo e do ânimo desiderativo. Para suprir ambas essas almas, nos animais forja-se a mente senciente, pela qual todo indivíduo cria para si uma segunda natureza, sua consciência peculiar do que o afeta, sem a qual não saberia orientar-se no espaço e no tempo, nem sobreviveria ao próprio nascimento. Na prática, ser animal é sinônimo de ser senciente, não importando a espécie à qual pertença o indivíduo. Plantas não são condenadas ao destino trágico do nascer animal. Elas só nascem se o solo dispõe dos nutrientes necessários ao seu desenvolvimento e florescimento. Sem importar-se com a singularidade das plantas ou dos demais animais, Aristóteles os classifica em função de sua peculiaridade e também de sua utilidade para os humanos. Segundo sua concepção, cada tipo de vida está a serviço de outro, formando a tão propalada cadeia da vida, que, na tradição ocidental, torna-se a cadeia da morte infligida por interferência humana a todos os animais não-humanos. Nessa cadeia, os humanos tomam assento no poder absoluto de destruição da materialidade ou corporalidade de qualquer ser vivo das demais espécies. A justificativa para isso foi dada pela tradição filosófica especista elitista, redesenhada na tradição católica: os animais, constituídos de capacidades classificadas como mais ou menos valiosas, estão hierarquizados por natureza para melhor disponibilizarem sua materialidade física aos interesses humanos. Nesse sentido, a única espécie de vida dotada de valor inerente é a humana. Ter nascido em qualquer outra espécie não assegura ao animal a liberdade de ter seu corpo para si. Ele será cobiçado para virar alimento, peça de vestuário, adereço, meio de diversão, instrumento de experimentos químicos e bélicos etc.. A Igreja Católica, em seu Dicionário editado em 1884, no verbete “Os animais inferiores”, assinado por W. E. Addis e T. Arnold, declara: “[...] Devemos lembrar que eles são nossos escravos, não nossos iguais e, por essa razão, é correto manter tais práticas, tais quais as da caça e pesca, condução e equitação, simplesmente para demonstrar de modo prático o domínio humano sobre as bestas [...]. Tem-se visto que a defesa dos direitos das bestas está associada com a fase mais inferior da moralidade e que a bondade para com as bestas é obra meramente supererrogatória.” (Apud Felipe, 2007b:274, nota469). Enfrentando a tradição escolástica hegemônica na igreja católica, o teólogo britânico Andrew Linzey adverte: “[...] Pode ser verdade que certos moralistas no campo animal tenderam a excluir a vida não-animal do âmbito do valor. Todavia, também é verdade que não há, na saga da criação, uma definição clara do status de muitas formas de vida. Não nos foi dito o valor específico das plantas, dos pássaros, dos peixes e dos mamíferos.” (Apud Felipe, 2007b:234). A discriminação dos seres vivos por conta de suas peculiaridades específicas, ou especismo, não se resume em classificá-los em seres com alma vegetativa ou com alma desiderativa (plantas e animais não-humanos). Mais complexa do que pode parecer à primeira vista, a classificação de Aristóteles se refina, seguindo para outros tipos de movimento, possíveis somente a seres dotados de um tipo de intelecto que alcança uma espécie de soberania naqueles agraciados com a capacidade de deliberar, uma habilidade complexa presente na mente de animais dotados de liberdade em suas escolhas, espécie na qual nascem os humanos. Nessa concepção está fundado o especismo elitista, a forma de obter vantagens explorando e matando animais de quaisquer espécies, a pretexto de que eles não são livres ou de que não fazem uso da razão, devendo, por isso, servir aos humanos. Seguindo tal lógica, a filosofia, a ética, o direito, a ciência e as tradições religiosas destinam aos seres animados não dotados da racionalidade deliberativa um lugar secundário na classificação dos animais. Foi desse modo, universalizando a racionalidade para designar todos os indivíduos da espécie humana, enquanto garante que nenhum indivíduo de qualquer outra espécie possa ser introduzido nesse âmbito privilegiado, que a filosofia tradicional se afirmou antropocêntrica, hierárquica e especista elitista. Racismo, machismo e especismo são três formas de exclusão universalista, na qual todos os que não se enquadram no padrão do patrão ou patriarca são usados como meros meios a serviço dos fins que o conceito universal impõe a tudo. Para classificar os seres racionais, distinguindo-os dos não-racionais, a tradição moral não leva em conta a singularidade específica nem individual do animal. O que conta é possuir uma determinada capacidade da qual seja dotada sua espécie, impossível de ser reconhecida nos mesmos moldes em indivíduos de outras espécies. Desse modo se garante a exclusão. Toda generalização exclui. Toda inclusão cerca, molda e emoldura. Se um indivíduo é humano, mas não consegue formular um raciocínio, é discriminado. Se um indivíduo é animal, mas não consegue escapar dos ardis de outros e torna-se presa fácil, é discriminado. Para proteger humanos incapazes do uso da razão, inventamos os direitos humanos. Todavia, ainda não concedemos direitos fundamentais para proteger os animais incapazes de escaparem dos ardis humanos. Os animais humanos foram classificados como superiores a todos os demais, uma forma de discriminação especista elitista. O critério para essa hierarquização foi a capacidade da percepção intelectiva, de manter a memória dessas impressões, ressignificando-as, de usar o arquivo para orientar-se nos movimentos presentes, habilidades não reconhecidas pelos humanos em outros animais. Até a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal e Humana, proclamada em julho de 2012, a sensibilidade autoconsciente era considerada pelos neurocientistas de todas as especialidades como específica da mente humana. Ela possibilita distinguir o benéfico do maléfico e escolher o que é bom para si e para os que dependem de si, evitando o que faz mal ou prejudica. Animais não-humanos têm a capacidade de fazer tais escolhas, portanto, podem, a seu próprio modo específico, deliberar, o que os coloca no mesmo patamar dos direitos fundamentais, gozados pelos humanos, às escolhas destinadas a assegurar o bem próprio. Isso habilita a espécie humana a agir moralmente. Colocadas no centro ou como fim último da moralidade, as habilidades de distinguir o bom, do ruim, e o que faz mal aos outros, do que os beneficia, dão sustentação às concepções antropocêntricas especistas que excluem da consideração moral animais não-humanos. Tais capacidades foram tidas como exclusivamente humanas até os estudos do primatólogo Frans de Waal, o primeiro a refazer a genealogia da moralidade, atribuindo-a justamente à animalidade, não à hominidade. A capacidade de agregar benefícios para si, para os próximos a si e para os mais distantes seres vivos, exige consciência, sensibilidade e aptidão para formular juízos de valor, emocionais, em função do que as escolhas podem agregar. A capacidade de raciocínio ético depende deste último nível de complexidade, o deliberativo. Ele não existe a não ser em seres dotados da liberdade, portanto, conscientes de si, do seu poder de beneficiar e prejudicar e da vulnerabilidade ao dano que outros podem lhe causar, sejam esses outros, humanos, animais ou eventos naturais. Tal habilidade traduz simplesmente a capacidade para empreender movimentos necessários para implementar as próprias decisões com vistas à autopreservação, à preservação dos seus e de todas as formas de vida vulneráveis. Humanos e animais não-humanos possuem essa habilidade, cada um no alcance e limite de sua racionalidade e emocionalidade específicas. Neste patamar, o da liberdade moral ou capacidade deliberativa, humanos podem romper o padrão pelo qual a família, a escola, a sociedade ou qualquer outra ideologia os formatam. Podem posicionar-se criticamente em relação ao que impede sua própria evolução moral. Temos dois termos e dois conceitos, moral, para designar a tradição, e ética, para designar a atitude crítica frente à tradição, embora nem sempre seu uso respeite essa distinção no texto filosófico. Do grego, a palavra éthos designa o caráter ou traço natural a partir do qual o indivíduo se estrutura como sujeito da ação. Esse caráter tem duas dobras: a herança fornecida pela espécie na qual o indivíduo nasce; e a formatação da mente, da inteligência, das emoções, dos afetos e da sexualidade pela educação ou, conforme prefere Aristóteles, pelo exercício e a repetição. Mesmo padronizado (patronizado, patriarcalizado), o exercício e a repetição são filtrados pelo indivíduo, desdobrando-se em subjetividades específicas, peculiares, sem que o molde ou o padrão da espécie seja determinista na constituição da subjetividade peculiar a cada animal, sua singularidade. Ser ético em relação aos demais seres vivos exige dos humanos que não violem o éthos dos que se encontram na condição de vulnerabilidade na qual não podem se defender, mas podem ser afetados por elas. Este é o caso da relação dos humanos com outros animais: os outros não podem se defender dos malefícios decorrentes das ações humanas, mas podem sofrê-los. Salvando o sujeito de uma formatação moral anacrônica, sua racionalidade emocional lhe permite questionar os padrões valorativos impostos pela cultura. Este juízo crítico foi denominado pelos gregos ethiké, termo do qual deriva o português, ética. A ética, portanto, é simplesmente o exercício pelo qual o indivíduo põe em questão os valores que formatam o padrão moral tradicional, revolucionando-os e abolindo o que não tem sentido, o que fere e prejudica o outro, o que o discrimina por conta de características que ele não tem poder de alterar, por conta de seu éthos primordial, sua genética, ou de suas preferências e tendências. Exatamente este projeto, o de questionar racionalmente o padrão antropocêntrico-hierárquico especista criado pela filosofia ocidental para dar aos humanos um estatuto acima de todas as espécies de vida e facultar-lhes as ações, mesmo as que possam representar a eliminação do outro, levou alguns filósofos a questionarem eticamente o padrão de valor especista elitista, discriminador dos interesses e da vida de animais não-humanos. De acordo com a tradição, acalentada confortavelmente pelo mercado, a ciência, a filosofia, o direito, as religiões e a arte, não há nada a ser condenado nas ações humanas que causem dor a qualquer ser senciente não-humano, ou o levem ao sofrimento e à morte. Os animais não-humanos, no entender da tradição antropocêntrica especista, não dispõem da liberdade para empreender ações de acordo com suas decisões. Sem condições de decidir sobre o que lhes diz respeito, animais não-humanos estariam fora do âmbito da comunidade moral. Por essa via, os humanos se autorizam a fazer aos animais o que bem entendem. Essa lógica antropocêntrica, hierárquica e especista, hegemonizou a moralidade humana até o final do século XVIII, quando, finalmente, foi confrontada em seus pressupostos por Humphry Primatt. A concepção anti-especista No final do século XVIII, mais precisamente em 1776, ano da Revolução Norte-americana, Humphry Primatt, graduado em música e doutor em teologia, pastor anglicano em Aberdeem, dois anos antes de morrer aos 42 anos de idade, escreveu um livro pequeno, intitulado A Dissertation on The Duty of Mercy and the Sin of Cruelty to Brute Animals [Uma dissertação sobre o dever de compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos]. Não se tem conhecimento de outro texto de Primatt (Cf. Felipe, 2006a:206-210). The Duty of Mercy [O dever de compaixão], título da segunda edição do livro de Primatt, rejeita a exclusão dos animais da consideração moral humana. Ao invés de eleger a capacidade de raciocinar, de agir livremente e, portanto, de deliberar, como parâmetro para decidir quem é digno de respeito e quem não o é, Primatt lembra aos humanos que a pior coisa que pode acontecer a um ser senciente é ser-lhe infligido dor e sofrimento, quando o paciente dessa dor ou desse sofrimento não produz com seus atos os eventos dorentes e sofrentes [Ryder, 1998:45]. Segundo a crítica de Primatt aos moralistas tradicionais do final do século XVIII, para que a perspectiva do agente moral seja ética, importa levar em consideração se o afetado por nossas decisões, atos e ações pode sofrer ou ser beneficiado por elas. Os dois eixos da moralidade humana, a dor e o prazer, conforme identificados por Aristóteles, reafirmados por Hobbes e pelos demais utilitaristas ingleses e adotados pelos eticistas defensores dos animais (Jeremy Bentham e Peter Singer, por exemplo), deixam de ser parâmetros exclusivos para se avaliar a moralidade dos atos praticados contra os seres humanos e passam a ser empregues também na avaliação das ações que atingem animais não-humanos. A dor e o prazer são os eixos de acordo com o quais Primatt critica o padrão da ética tradicional, reformulada por ele para incluir os animais não-humanos no âmbito da consideração e do respeito moral. A consideração pela dor e o sofrimento de qualquer indivíduo, não importa sua espécie, oferece um novo parâmetro filosófico para a formulação do juízo moral sobre o que é certo ou errado fazer com eles, por eles ou contra eles (Singer, 1979). O erro de um gesto, uma decisão ou uma ação que afeta maleficamente outros seres sencientes não depende da posse da racionalidade e da liberdade, nem da capacidade para deliberar, de quem sofre a ação. O erro, no entender de Primatt e da concepção ética utilitarista que desencadeou o movimento de libertação animal ao redor do mundo na década de 70 do século XX, é definido em função da capacidade que uma determinada ação tem de causar dor, sofrimento ou morte àquele que se encontra vulnerável a ela. Ao buscar realizar, atender ou promover nossos interesses, se desprezamos o quanto isso pode ferir e violar emocional, moral ou fisicamente outros seres sencientes, deixamos de ser éticos. Para Primatt, a sensibilidade presentificada à consciência, portanto, a senciência, deve ser o parâmetro moral segundo o qual todos os nossos atos devem ser julgados, antes da ação. Tal concepção opõe-se radicalmente à moral tradicional. Segundo essa, o critério para julgar se um ser é digno ou não de respeito moral é o lugar que ele ocupa na hierarquia dos seres vivos. Se possui racionalidade, é digno de respeito. Se não a possui, ou se a racionalidade que possui não pode ser enquadrada no padrão da racionalidade tida como referente, o ser senciente deixa de merecer respeito moral. De acordo com Primatt, a moralidade tradicional discrimina os animais não-humanos por conta de sua configuração anatômica, fisiológica e psicológica. Concedendo às bestas o estatuto de objetos da propriedade humana, desrespeita suas emoções, sua inteligência, sua consciência, sua linguagem, enfim, seu éthos singular. A tradição moral discrimina e violenta a singularidade neuromental e emocional dos animais não-humanos, negando-lhes respeito aos seus interesses fundamentais, alegando diferenças na configuração da aparência externa do corpo animal. Conforme essa moralidade, os humanos podem continuar confortavelmente a explorar, maltratar e matar os animais sencientes não-humanos, em benefício próprio. No entender de Primatt, nenhum detalhe na aparência natural específica resulta de mérito pessoal. Por isso não pode ser usado para justificar mérito nem demérito moral. As diferenças na aparência singular de qualquer ser vivo não resultam nem do desejo, nem do mérito do sujeito, nem de seu empenho pessoal. A compleição física, a cor da pele, a riqueza, a força mental, fontes conhecidas da singularidade na constituição dos humanos, não resultam do empenho pessoal, portanto, estão aquém do mérito moral (Cf. Felipe, 2006: 219 e 220). Tal discriminação assemelha-se à que sofrem os seres escravizados e os demais humanos alijados da consideração moral em função de alguma peculiaridade em seus corpos ou mentes, escolhida pelo conceito universal dominante para justificar seu autoproclamado direito de explorar, abusar e matar quem a possua: a cor da pele, a configuração reprodutiva, as configurações de gênero, as habilidades cognitivas, o tempo vivido ou qualquer atributo físico que permita identificar o sujeito pela exclusão e assim destituí-lo de estatura moral. O que foi feito às mulheres, às negras, às índias, às deficientes, às pobres (e aos seus correlatos de quaisquer gêneros, masculino, feminino e neutro) tem sido feito aos animais. Entretanto, se a dor é uma experiência intrinsecamente má para qualquer ser humano senciente, conforme o reconhece Primatt (Cf. Felipe, 2006: 217), ela também o é para qualquer outro animal senciente. Causar dor a um ser capaz de sofrê-la conscientemente, alegando que não há nada de errado nisso, porque esse ser não tem a configuração física humana, é puro ardil da racionalidade instrumental. O argumento de Primatt expõe simplesmente a hipocrisia moral tradicional. Um ser não sente dor melhor nem dor pior, maior nem menor, por conta da configuração externa de seu organismo (Cf. Felipe, 2006: 217). Ele a sente por conta de sua configuração neuromental, seu diencéfalo, sua senciência. Foram necessários dois séculos e meio, desde o texto The Duty of Mercy de Primatt, para que as autoridades em ciência das emoções e da consciência reconhecessem a todos os animais a capacidade de sentir, de sofrer e de saber de suas sensações e de sua dor, portanto, a capacidade emocional para a dor, o prazer, o sofrimento e o estar bem a seu próprio modo, chamado pelos humanos de felicidade. Se há um aparato neurossensorial que faculta ao animal a experiência da dor, essa é um traço evolutivo para que o animal possa afastar-se de algo que o danifica ou aproximar-se de algo que o gratifica. Não há distinção entre a dor de um indivíduo humano e a dor de um indivíduo não-humano. Se há dor, ela é igualmente má, para ambos. Essa malignidade intrínseca da dor é o que precisa ser levado em consideração para redefinir nosso estatuto e o dos demais animais na comunidade moral humana. Discriminar a dor dos animais, alegando que o formato externo do corpo deles não se assemelha ao nosso, é especismo. “Dor é dor, seja infligida ao homem ou ao animal; e a criatura que a sofre, seja homem ou animal, sendo sensível à desolação que ela produz, sofre um mal; e o sofrer um mal, imerecidamente, sem o ter provocado, quando não causou dano algum e quando não pode pôr um fim a isso, simplesmente para que o poder e a malevolência sejam exibidos, é crueldade e injustiça daquele que o produz.” (Primatt, Apud Felipe, 2006:217). Em 1776, a noção crítica que formulou o conceito de especismo já existia, mas o termo mesmo, ainda não. Esse foi criado na década de 70 do século XX, também na Inglaterra, pelo cientista e filósofo Richard D. Ryder. Do conceito ao termo especismo A concepção ética de Humphry Primatt foi apresentada pela primeira vez em 1776, em Aberdeen e apropriada por Jeremy Bentham, também na Inglaterra, em 1789, em seu livro An Introduction to the Principles of Morals and Legislation [Introdução aos princípios morais e da legislação] (Bentham, 1970:282-283), no qual faz uma nota de rodapé extensa, explicando que os critérios adotados até então para definir quem seria digno de respeito e consideração moral eram preconceituosos, pois jamais inquiriam se o ser dorente era capaz, ou não, de sentir o abalo causado pela dor infligida a ele. Para Bentham, seguindo a convicção de Primatt, o que importa não é se um animal é capaz de raciocínio, ou não. O que importa é mantermos a consciência ética de que o que fazemos a ele pode lhe causar dor, dano, tormento, sofrimento e morte. Em suas palavras: “[...] a questão não é: eles podem raciocinar? nem, eles podem falar? mas, eles podem sofrer?” (Bentham, 1970: 282, nota b). Dois séculos transcorreram sem que a tradição (criticada por Bentham na esteira de Primatt) imoral de infligir dor e sofrimento a qualquer animal senciente recebesse um nome. Tinha-se a concepção clara dessa forma de discriminação, praticada pelos humanos contra os animais de outras espécies, mas ainda não havia sido criado um termo para designá-la. Mesmo Henry Salt, o primeiro pensador britânico a escrever um livro usando no título os termos Direitos Animais, em 1892, não deu nome ao conceito de discriminação contra os animais, elaborado por Primatt. A Primeira Guerra, no início do século XX, deixou a questão animal amortecida. A segunda avivou o sentimento de indignação contra a crueldade infligida a humanos vulneráveis ao totalitarismo e, mais uma vez, a dor, o tormento, o sofrimento e a morte dos animais não-humanos não entraram na pauta da reflexão ética. O tema veio à tona apenas depois do fim da guerra fria, exatamente quando floresceram os conceitos de imperialismo, totalitarismo, racismo e machismo. Em meados da década de 70 do século XX, o pesquisador behaviorista e, à época, vivissector, Sir Richard D. Ryder, criou o termo especismo para designar a discriminação praticada contra animais não-humanos em nome de sua configuração anatômica, fisiológica, emocional e mental, cujos traços e design não coincidem com as características presentes na configuração dos indivíduos da espécie humana. Segundo Felipe, que introduziu o termo especismo no vocabulário filosófico brasileiro, “O termo aparece pela primeira vez em um panfleto em defesa dos animais, publicado por Richard D. Ryder em Oxford, em 1973. Em seu livro editado em 1975, Victims of Science, o conceito especismo (em inglês speciesism) é formulado definitivamente e adotado, então, por Peter Singer.” (Felipe, 2003:20, nota 2). Uma vez cunhado por Ryder, o termo especismo passou imediatamente ao uso nos textos de Peter Singer, o filósofo australiano que deu início ao movimento de libertação dos animais em 1975 com o livro Libertação Animal, seguido, em 1979, de Ética Prática, no qual os animais são levados em conta, em igualdade com os humanos, a partir do princípio da igual consideração de interesses semelhantes, o cerne do antiespecismo. Richard D. Ryder assim esclarece o significado do termo especismo: “Uso a palavra ‘especismo’ para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra as outras espécies e traçar um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são, ambas, formas de preconceito baseadas em aparências – se o outro indivíduo parece diferente, considera-se, então, que ele se encontra além do parâmetro moral. [...] Especismo e racismo (e na verdade sexismo) ignoram ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aqueles contra quem esse discrimina e ambas as formas de preconceito revelam indiferença pelos interesses de outros e por seu sofrimento.” (Apud Felipe, 2006b:192). As teses da ética igualitária animalista antiespecista de Peter Singer estão firmadas sobre os argumentos de Humphry Primatt, Jeremy Bentham, Henri Salt e Richard D. Ryder, embora Singer os cite raramente. Seu suporte teórico são os conceitos de dor e sofrimento, prazer e felicidade. Todo animal capaz dessas vivências é um igual e por isso deve ser incluído no âmbito do dever de consideração e respeito humanos. Se um ser sofre, escreve Singer, “[...] não há justificativa moral para a recusa em considerar esse sofrimento. Não importa a natureza do ser, o princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado do mesmo modo como o é o de qualquer outro ser [...]. Delimitar essa vinculação através de certas características, tais como inteligência ou racionalidade, seria delimitá-la de modo arbitrário.” (Apud Felipe, 2006b: 197). Segundo Singer e seus predecessores animalistas, o padrão da moralidade antropocêntrica, assentada sobre o dever de não causar dor, sofrimento ou morte apenas aos seres humanos, ignorando a semelhança de todos os seres sencientes, deve ser superado através da abolição das formas de interação na qual os humanos impõem aos animais não-humanos padrões de vida que atrofiam suas mentes, algo que os animais não sofreriam se fossem deixados viver em liberdade e de acordo com o éthos de sua espécie. A analogia O termo especismo ganhou vigor na literatura ética animalista por reconhecer o tratamento dispensado pelos humanos aos animais não-humanos como tão discriminador quanto a forma tradicional de tratamento violento à qual historicamente as mulheres, os homossexuais, os negros e outras minorias são submetidos. Na mesma lógica da dominação descrita por Karen Warren em Ecofeminist Philosophy (Cf. Rosendo, 2012:42), todos os seres com uma configuração física ou psíquica singular, distinta do padrão eleito como referência para a construção da identidade de gênero, raça e sexo, o padrão do macho branco heterossexual, acabam por ser submetidos a interações nas quais seus interesses privados, sua subjetividade, sua peculiaridade, sua singularidade, seu espírito ou éthos específico não contam. Aos animais não foi reservado tratamento melhor do que aos negros, aos homossexuais, às mulheres e a todas as pessoas em condições sociais e morais vulneráveis. Esse tratamento infligido aos animais está justificado pela moral tradicional com o argumento de que os humanos são de uma natureza, as plantas de outra, os minerais de outra e os animais não-humanos de outra. Cada espécie teria um estatuto moral definido hierarquicamente pela humana, podendo ser submetida aos interesses humanos sem que haja uma contrapartida, ainda que isso a prejudique. Nessa linha de argumentação antropocêntrico-especista, todas as espécies de vida animal existem de algum modo, ainda que não revelado evolutivamente, para servir aos interesses humanos, podendo ser exploradas ou eliminadas da face do planeta. O uso do termo especismo Na literatura filosófica animalista, o termo especismo passa a configurar a cena, ocupando, com a crítica ao antropocentrismo, o papel protagonista na definição de uma ética na qual a singularidade do éthos animal não seja discriminada nem violentada. A filosofia que expõe os animais não-humanos à violência humana, justificando tais práticas com a alegação de que os animais nascem para servir a propósitos humanos, sustenta-se sobre a convicção de que o humano ocupa naturalmente o centro e o topo da cadeia da vida. A moral antropocêntrico-especista está fundada sobre a tese de que a vida dos animais humanos tem valor absoluto, enquanto a dos não-humanos tem valor instrumental (Cf. Felipe, 2006b:199-258). A tradição moral não leva em conta o fato de que os animais dotados de um sistema nervoso central e do diencéfalo, a sede dos estímulos dolorosos e prazerosos, são seres sencientes, iguais em sua vulnerabilidade à dor, ao dano, ao tormento, ao sofrimento e à morte, sem distinção em relação aos humanos. O sistema nervoso central organizado, a sensibilidade e a consciência, indicam que a vida desse animal existe para atender a seu propósito singular e autopreservar-se, em concordância com seu éthos. Se, de fato, os não-humanos nascessem apenas para atender aos propósitos humanos, por que teriam que vir dotados do mesmo sistema sensor sofisticado que permite, por um lado, esquivar-se dos estímulos desagradáveis, desconfortáveis, dolorosos e letais, e, por outro, buscar o bem-estar, o conforto, a segurança, o prazer e o bem próprio de sua natureza específica? Indignado com Descartes, por sua tese de que os animais seriam autômatas, destituídos da capacidade de sentir dor e de sofrer, Voltaire escreve: “Que lamentável e que pobreza de espírito ter dito que animais são máquinas desprovidas de pensamento e emoções. [...] Responda-me mecanicista: organizou a natureza todas as fontes do sentimento nesse animal com o propósito de que ele nada possa sentir? Tem ele nervos que o tornam incapaz de sofrer?” (Apud Felipe, 2003: 92). Se cada espécie de vida animal possui um éthos singular, onde está o sentido da afirmação de que esse éthos não tem sentido algum, essa vida não tem propósito algum e o animal está ali embutido em seu organismo somente à espera de que um humano lhe dê sentido, tirando-lhe a vida para obter carnes, marfim e pele, ou, escravizando-o para extrair leite e outras secreções, ovos, mel, lã e seda? Os desdobramentos éticos da crítica ao especismo Na sequência do uso do termo especismo como correlato de machismo, sexismo e racismo, tem sido possível aos bioeticistas animalistas aprofundar o conceito e identificar desdobramentos morais da prática discriminadora e violenta contra animais não-humanos. Mesmo entre os que se dizem protetores dos animais, expressão genérica que não designa obviamente um humano defensor de direitos para todos os animais, o especismo é recorrente. Há quem proteja uma ou duas espécies animais e discrimine outras, devorando-as, ou usando partes de seus restos mortais para vestir-se, calçar-se e enfeitar-se (pele, couro, marfim, seda, lã etc.). Sem perceber a matriz cognitiva e moral especista que formata nosso entendimento do lugar dos não-humanos na teia da vida, continuamos a discriminar positivamente o valor da vida de certos animais, eleitos para estima, companhia ou guarda, atribuindo-lhe um peso maior do que o atribuído ao valor da vida de outros, desprezados por não possuírem um atributo que possa servir de instrumento para os humanos alcançarem seus propósitos. Muitos compram ou adotam animais para estima, companhia e guarda, sentem especial afeto por eles e rejeitam a hipótese de infligir tratamento cruel, doloroso ou prejudicial a esse animal que elegeram. Entretanto, esse afeto não se expande para incluir no círculo da moralidade os animais da mesma espécie que não estão sob sua guarda, ou os que se encontram servidos em seu prato. Os outros animais são considerados de outras espécies, portanto, não dignos de respeito. Outros, impregnados da consciência de que seu animal possui inteligência, sensibilidade, linguagem e capacidade de sofrer, defendem ferrenhamente que esses animais, da espécie à qual o seu pertence, sejam tratados com os mesmos direitos humanos. Entretanto, podem admitir tratamento não tão decente no caso de animais que têm outro formato, outra linguagem e outra consciência, especialmente se nenhum cientista até agora os estudou ou confirmou tais habilidades. Nesses casos, o especismo vem recortado de preferências pessoais eletivas. Os animais eleitos para companhia, guarda ou estima, são considerados dignos de direitos iguais aos humanos nos quesitos fundamentais da vida: não sofrer maus-tratos, não passar necessidades, não ser usado ou escravizado, não ser aprisionado nem cerceado em seu espírito e não ser assassinado. Mas a indiferença reina em relação aos outros animais. O especismo eletivo tem infinitas formas de expressão. Os defensores de baleias podem comer carnes (incluindo a de peixes) e ingerir leite e laticínios, sem notar que estão defendendo a vida e o bem próprio de um animal, mas ignoram sua semelhança com outros. Nesse caso, a igualdade e a coerência, para não falar da justiça e da ética, estão recortadas, o que desvirtua o argumento de que todos os animais são iguais e, portanto, seus interesses devem ser considerados igualmente. Defender uma espécie animal não é garantia de antiespecismo. Pode-se ser um especista elitista (discriminar todos os animais não-humanos, reconhecendo valor moral apenas à vida humana), ou eletivo (reconhecer valor moral a um determinado animal enquanto menospreza ou vilipendia a vida de todos os demais). Apenas a ética abolicionista garante que não se escorregue ladeira abaixo em direção ao especismo, no confronto com a real singularidade ou dissimilaridade de cada animal. O especismo pode desdobrar-se em duas vertentes: a discriminação coletiva de todos os animais não-humanos por conta de uma alegada incapacidade de fazerem uso da racionalidade (especismo elitista), e a discriminação seletiva de alguns animais, escolhidos para serem amados e protegidos, enquanto o restante deles é mantido distante do lugar concedido aos eleitos (especismo eletivo). Em ambas as formas do especismo, a elitista e a eletiva, os humanos separam os animais em compartimentos e atribuem direitos a alguns, enquanto os outros permanecem destituídos de qualquer direito (Cf. Felipe, 2007a:143-159). Tal forma de conceber o valor da vida ainda preserva o formato da moral tradicional, para a qual a singularidade não pesa na reflexão sobre os direitos fundamentais individuais dos animais não-humanos. Não é possível fundamentar uma ética sobre tais dicotomias e incoerências. O padrão tradicional da igualdade, a racionalidade humana androcêntrica, antropocêntrica e especista, não admite a expansão do círculo da moralidade para incluir na consideração moral seres com formatos distintos do padrão humano. O padrão antiespecista, por sua vez, pode manter a moralidade androcêntrica, antropocêntrica e especista, ao buscar no animal que elege para conceder direitos, proteção e estima, um traço ou característica qualquer que, sabidamente, não está presente em animais de outras espécies, pois a vida e o bem próprio dos animais de todas as espécies não requerem enquadrar-se em qualquer sistema de valores, criados por homens (brancos e dominantes). A vida não é vivida para servir a interesses alheios impostos, nem para corresponder a padrões de valores extrinsecamente definidos, alienantes do próprio valor. Cada vida traz em si mesma um éthos e seus desígnios peculiares para forjar-se em plena singularidade. Nenhuma vida é vivida para enquadrar-se nos moldes impostados. Cada vida, em sua singularidade e preservando-se em sua vulnerabilidade, desenha para si a moldura na qual quer ser contida. E isso lhe basta. As implicações morais da ética abolicionista Para abolir o especismo elitista (que discrimina todos os animais e os inferioriza em relação a qualquer humano) e ao especismo eletivo (que discrimina todos os animais que não possuem a característica padrão do animal eleito para estima), é preciso sair do padrão tradicional da igualdade, desconstruir o androcentrismo, o antropocentrismo e qualquer outro modo de conceber um tipo de vida ou de existência como padrão, ao qual todos os demais devam seguir ou atender. A ética genuinamente antiespecista tem propósito abolicionista em relação a todas as formas de discriminação que levam seres sencientes à sofrência da dor e da morte por conta dos interesses, utilidades e preferências humanas. Segundo tal ética, o bem próprio e os interesses de quaisquer animais, humanos e não-humanos, têm valor não-instrumental. O eixo, o centro e o único fim, próprio daquele que nasce, é prover sua vida das experiências que possibilitam o florescimento de sua consciência singular. O único critério de igualdade passível de ser aplicado para abranger todos os seres sencientes é o da vulnerabilidade à dor, ao dano, ao tormento, ao sofrimento e à morte. Nesses quesitos, todos nós, animais, somos iguais em nossa dissimilaridade. Ao vivenciar a dor, o dano, o sofrimento e a morte, cada animal o faz de modo singular, em meio aos bilhões de outros que também nascem, vivem, sofrem e morrem. Cada animal herda um éthos genérico de sua espécie. Mas a trama dos conceitos imagéticos pela qual esse animal autopresentifica suas experiências sensoriais, emocionais e mentais, faz dele um indivíduo singular, sem o qual não se configura um espírito específico. Tal singularidade é o ponto da igualdade com todos os outros seres sencientes, uma igualdade não padronizada, uma igualdade que não pode ser classificada como superior nem inferior, simplesmente, dissimilar. Singularidade e vulnerabilidade são, portanto, dois conceitos fundamentais da ética abolicionista antiespecista. Para que a ética antiespecista abolicionista se concretize é preciso que seja erradicado o direito de propriedade que os humanos têm sobre todas as formas de vida desse planeta. Enquanto os animais estiverem sob o domínio humano e forem considerados objetos passíveis de apropriação, exploração e morte, a mente humana e, portanto, a proposta ética que ela engendra, será especista. Veganismo A filosofia antiespecista abolicionista desafia a consciência humana a adotar um modo de vida (díaita, para os gregos) vegano. Segundo a concepção de vida vegana, nenhum animal, seja lá de qual espécie for, deve ser usado, explorado ou destruído para se obter de seu organismo qualquer elemento destinado ao consumo ou à produção de itens a serem consumidos pelos humanos. A ética vegana é a forma mais genuína da ética animalista antiespecista abolicionista.
Nota biográfica: Dr. phil. Sônia T. Felipe é
doutora em Teoria Política e em Filosofia Prática pela Universidade
de Konstanz (Alemanha, 1991). Realizou projeto de pós-doutorado
em Bioética – Ética Animal (Universidade Lisboa, 2001-2002).
Introduziu no Brasil as teorias éticas animalistas de Peter Singer,
Tom Regan e Gary L. Francione, e seus conceitos de igualdade, valor inerente
e direitos para os animais. Foi professora e orientadora dos cursos de
graduação em Filosofia e Doutorado Interdisciplinar em Ciências
Humanas da UFSC por 31 anos. Autora dos livros: Por uma questão
de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer
em defesa dos animais (Boiteux, 2003); Ética e experimentação
animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2007); Galactolatria: mau
deleite (Ed. da Autora/Ecoânima, 2012). Colunista de Questão
de Ética – Agência de Notícias de Direitos Animais
(ANDA, desde 2009). Cofundadora da Sociedade Vegana no Brasil (2010). Referências bibliográficas ADAMS, Carol J. (1990). The Sexual Politics of Meat: a Feminist-Vegetarian Critical Theory. New York: Continuum. BENTHAM, Jeremy [1789] (1970). An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. University of London: The Athlone Press. FELIPE, Sônia T. (2008). Abolicionismo: igualdade sem discriminação. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO ANIMAL. Salvador: Evolução, v.3, n.4, jan./dez., p. 89-116. FELIPE, Sônia T. (2007a). Dos direitos morais aos direitos constitucionais: para além do especismo elitista e eletivo. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO ANIMAL. Salvador: Evolução, v.2, n.2, jan./jun., p.143-159. FELIPE, Sônia T. (2007b). Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Edufsc. FELIPE, Sônia T. (2006). Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO ANIMAL. Salvador: Instituto Abolicionista Animal, v. 1, n. 1, pp. 207-229. FELIPE, Sônia T. (2003). Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Boiteux. ROSENDO, Daniela (2012). Ética sensível ao cuidado: alcance e limites da filosofia ecofeminista de Warren. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, Programa de Pós Graduação em Filosofia. RYDER, Richard D. (1998). The Political Animal: The Conquest of Speciesism. London: McFarland & Company.
labrys,
études féministes/ estudos feministas |