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études féministes/ estudos feministas Vidas Madalenas: subjetividades e visibilidades em construção dentro e fora das telas Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro Resumo Este artigo é um exercício de leitura feminista do filme Em Nome de Deus (Magdalene Sisters, 2002, direção de Peter Mullan. Irlanda/Reino Unido, cor, 119 min). A película reconstrói a história de uma instituição católica irlandesa onde cerca de 30.000 mulheres foram recolhidas, trabalharam sem remuneração, em regime de trabalho extenuante, e sofreram abusos sexuais. A película desvela uma engenharia de inteligibilidade das Lavanderias de Madalena e encena experiências históricas e repulsivas, além de resistências possíveis, no interior da maquinaria que serviu às autoridades eclesiásticas e políticas ao longo do século XX para modelar corpos de “mulheres pecadoras”, portanto corpos considerados sedutores, perigosos, desvalidos, desprezíveis, abjetos, de mulheres que se desejava marcar, condenar, confinar, isolar e talvez corrigir. Palavras-chave: Madalenas, subjetivações, lutas, escritas, feminismos. Abstract The article is a feminist critics about Magdalene Sisters (2002, Peter Mullan. Ireland/Great Britain, colour, 119 min). The film rebuilds the history of that Irish Catholic institution where thirty thousand women have been confined to work hard, and have suffered sexual abuses. It reveals the functionary of those ancient Laundries as it shows historical and repulsive experiences, as well as possible resistances in daily life inside that machinery. Those asylums served to political and ecclesiastic authorities all twentieth century long to create bodies of “sinner women”. Bodies and identities of women that were produced and considered dangerous, miserable, contemptible, abjects that society wanted to mark, to condemn, to confine, to isolate and maybe to correct. Keywords: Magdalenes, subjects, struggles, writings, feminisms
O filme Em Nome de Deus, de Peter Mullan, (Magdalene Sisters, 2002, direção de Peter Mullan. Irlanda/Reino Unido, cor, 119 min) reconstrói a história de uma instituição católica irlandesa que, dependendo do mirante histórico de onde se olha, poderia ser lida como um lugar de acolhimento de mulheres pecadoras, ou um esconderijo social destinado a prover-lhes a necessária penitência e salvação espiritual, quem sabe, em direção à vida eterna, acompanhando a trajetória bíblica e exemplar de Madalena. Poderia também ser vista como local de produção de imagens de mulheres desvalidas e de rendas na forma de serviços materiais e simbólicos altamente lucrativos naquela sociedade em movimento. Aos olhos espectadores do nosso tempo e lugar, a película desvela experiências possíveis e repulsivas no interior dessa maquinaria econômica e religiosa que serviu às autoridades eclesiásticas e políticas até o final do século XX para modelar corpos de mulheres naquela sociedade. Quero dizer, tal maquinaria serviu para produzir enunciados performativos, para constatar e reiterar os contornos daqueles corpos que se desejava excluir, isolar ou corrigir e, por oposição a estes, insinuar aqueles que se resignariam ou deveriam ser constrangidos à norma do sexo, materializado no corpo, lido, portanto, como ideal regulatório (BUTLER, 2010:154-5)[1]. As Lavanderias de Madalena foram instituições mantidas pela Igreja Católica para o confinamento de jovens mulheres consideradas perigosas. Elas eram recolhidas, geralmente levadas por seus pais, e ali trabalhavam sem remuneração. Além de exploradas pelo regime de trabalho extenuante, foram mulheres-objeto de abusos inclusive sexuais. Mullan recria um universo de relações sociais verossímeis de extrema intensidade e validade histórica. Embora não tenha a preocupação de relatar o que de fato aconteceu, o diretor se inspira em relatos, testemunhos, coloca em cena a rotina cotidiana e o ambiente litúrgico do asilo, sugere as ações e motivações das personagens e suas famílias. A película desvela um jogo histórico e político que se observa nas estratégias de sobrevivência e de luta tanto de mulheres responsáveis pela clausura quanto daquelas enclausuradas. E atinge um efeito de real que possibilita a versão plausível dos acontecimentos, expostos na trama de relações e representações sociais. Sob o enfoque das representações sociais, a História, em diálogo com a linguagem do cinema, as tecnologias da imagem e da identidade, possibilita analisar roteiros, argumentos, sequências, comportamentos, gestos, ou seja, irromper um conjunto de significantes e significações para tratá-los, como ensina Jodelet, como fenômenos cognitivos e culturais com implicações afetivas e normativas, ou ainda, como “[...] produto e processo de uma atividade de apropriação de uma realidade exterior e de elaboração psicológica e social dessa realidade”. (JODELET,2001:22). Neste artigo[2], proponho estabelecer um diálogo com as teorias feministas e pensar as representações sugeridas na película, aqui reeditadas em cinco sequências ou pontos de inflexão recortados na/da narrativa cinematográfica. Pensando as grades do asilo como metáfora das grades do pensamento, a proposta é um esforço de se exercitar a análise fílmica, transitando dentro e fora do espaço da encenação, praticando ao mesmo tempo um olhar de historiadora e um olhar de Madalena. Como ensina Lauretis, transitando também no space off, isto é, dentro e fora do gênero e do sistema sexo-gênero.
SEQUÊNCIA 1 – Cenas de um casamento: a festa e o estupro Não por acaso, o casamento. A família e o casamento, nas primeiras cenas, são territórios de sentidos, e funcionam como plataformas de sustentação da narrativa e do gênero, ou do heterogênero, como assinala Swain, referindo-se à Ingraham e ao território conflagrado da cultura binária androcêntrica no patriarcado moderno (SWAIN,2009:33). É possível lembrar, com Foucault, os dispositivos em operação. Segundo o filósofo, os principais códigos da lei ocidental centraram-se no dispositivo de aliança. Através do casamento e da procriação regulada, a aliança foi ligada à troca e à transmissão de riqueza, da propriedade e do poder (DREYFUS & RABINOW,2010:224). O padre canta e toca tambor na festa de casamento no Condado de Dublin – 1964. Olhares concentrados, pensativos, admirados, estarrecidos e enternecidos diante do ritual, do condutor, do tambor, do canto e do encanto da festa... O primo leva a prima pela mão ao interior da casa e a estupra. A criança que tudo ouve tapa os ouvidos. A cena do relato, a conversa dos homens. A câmera capta a festa, a dança, o crucifixo, sob o som alto da música e das palmas, que não conseguem esconder, nas imagens entrecortadas exibidas na tela, a articulação dos homens para varrer para longe o feito, ou mal feito, do jovem da mesma família. No dia seguinte, o padre e o pai levam Margaret, a prima estuprada, para o asilo. Bernadette dorme. As meninas a acordam. Querem pentear seu cabelo e perguntam: “É pecado ser bonita? Não, é pecado ser vaidosa, responde Bernadette”. Ela é alvo dos olhares e comentários dos jovens que olham as moças nas grades do orfanato de St. Attracta. Órfã, a falta da família e a beleza explicam sua vocação para Madalena e o fato da adolescente ter saído do orfanato encaminhada para a reclusão no asilo. Explica? Rose está na maternidade e acaba de ter um filho. No quarto, sua mãe não consegue olhá-los. O pai aparece na porta e não fala. Pe. Doonigan, da Sociedade de Adoção São João, apresenta-se e explica a destinação ideal para o filho bastardo e ilegítimo, que, de outra forma, seria para sempre humilhado e rejeitado: um lar de pais católicos e amorosos. Os pais de Rose estão envergonhados. O Padre leva a criança e ela suplica: “Quero meu bebê! (...)” Nos treze minutos iniciais do filme, são apresentadas as histórias das personagens que se juntam no asilo e desenham-se as linhas do conflito principal: linhas que expõem a trama do imperativo heterossexual atuando sobre identificações sexuadas que impedem ou negam outras identificações (BUTLER,2010:155). Emergem na tela aquelas existências que gritam no confinamento e no silêncio, ao mesmo tempo rebeldes e assujeitadas, que não gozam o status de sujeito, confinadas em corpos “abjetos”, por isso destinadas às “zonas inóspitas e inabitáveis da vida social”[3]. Sirvo-me de Judith Butler para reler o território recriado no filme e pensar as vidas madalenas naquelas zonas inabitáveis e ao mesmo tempo densamente povoadas da/na vida social que são fabricadas com a força da exclusão e da abjeção, para que o domínio do sujeito e do fantasma normativo do sexo seja circunscrito. Reitera a Irmã Superiora: “A própria Madalena era uma pecadora da pior espécie, que vendia seu corpo a depravados. Sua salvação veio somente com a penitência de seus pecados, a negação de todos os prazeres da carne, inclusive comer e dormir, e o trabalho árduo além do limite humano”... Sobre as imagens do trabalho na instituição, ela continua: “Em nossa lavanderia não há simplesmente roupas e lençóis: esses são os meios terrenos para purgar a alma de vocês e remover as nódoas dos pecados que cometeram. Aqui vocês podem se redimir, com a ajuda de Deus, se salvar da danação eterna”, explica Irmã Bridget. As falas se destacam no ambiente de silêncio ou silenciamento, de orações e pecado, no internato que promove castigos da carne e promessas de salvação, no regime de produção de trabalhos e temores, no cotidiano de orações e punição. Expiação? No dia-a-dia da instituição encenada, observa-se, com as lentes de Foucault, a operação de outro dispositivo: entre regras de decência, um controle das enunciações sobre o sexo, a economia restritiva da palavra; um cerceamento das regras de decência que provoca um contra-efeito, uma valorização e intensificação do discurso indecente. Assim, o dispositivo da sexualidade é tanto o acontecimento quanto sua representação, ao fazer operar, por um lado, a sexualidade exacerbada nos corpos condenados, por outro. “ [...] a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar, a fazê-lo falar ele próprio, sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado” (FOUCAULT, 1998: 22). As representações articuladas no filme evidenciam nas práticas da instituição o discurso sobre o sexo e a produção do corpo abjeto, marcado pelo sexo-gênero. O processo de materialização dos corpos de pecadoras garante que a diferença sexual seja lida, entendida (mesmo que nem sempre introjetada ou assumida), resultando em uma performatividade. Recorro novamente a Butler para observar que o sexo, a diferença biológica e o desvio aparecem materializados naqueles corpos, cujas imagens e localizações cuidadosamente descritas acionam uma “prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que nomeia” (BUTLER, 2010:154-5).
SEQUÊNCIA 2 – Corpos marcados, machucados, humilhados, que falam e significam O corpo crucificado de Jesus Cristo, filho de Deus, aparece exemplar e regularmente no recinto. Bernadette e Crispina, outra que foi interna por ter sido mãe-solteira, levam chicotadas nas pernas após contrariarem as normas do asilo. Corpos desnudos são examinados na hora do banho para que se possa conhecê-los em detalhes, aferir o tamanho dos seios, a quantidade dos pelos, mensurar o apelo à sedução. Aliás, os pelos têm um valor específico. Una, a colega que após a fuga reapareceu no asilo arrastada pelos cabelos pelo pai, tem os cabelos cortados pela irmã superiora. Mais adiante, Bernadette, a bela, também tem o cabelo raspado e é machucada. Significativo do corpo feminino, do corpo sedutor, o cabelo é marca de sexo-gênero que identifica, também na beleza, a localização singular inferiorizada e o potencial para o desvio. Cortá-lo é uma forma de corrigir, punir a mulher, e marcar a cara que se desfigura, para reafirmar o corpo desprezível e desgraçado. Sangue, castigos, ameaças de morte e de suicídio exibem na dor os mecanismos de disciplina do corpo indócil, e também os limites na carne e as tensões permanentes do movimento de disciplinarização. A encenação do jogo da dominação no interior do asilo tem relação orgânica com o corpo social, cuja fecundidade regulada ele deve assegurar. Mais uma vez, a narrativa remete-nos ao dispositivo em operação ao fazer performar uma sexualidade misteriosa e difusa, que reside em alguma parte e em toda parte do corpo. (DREYFUS & RABINOW, 2010: 225)
SEQUÊNCIA 3 – Revanche e fuga: um horizonte de quase liberdade Margaret enxerga o Padre que, às escondidas, abusa de Crispina, humilhada e coagida pela autoridade religiosa masculina. E arma a revanche. Busca urtigas no quintal. Lá, ela vê a porta aberta e a saída do convento: a imagem do campo poderia representar a liberdade. Mas o contato com o rapaz que para o carro e a olha com desdém evidencia sua marca de Madalena, e o limite estreito de possibilidades de sobrevida no interior da moral androcêntrica. Ela desiste de fugir e volta ao convento. Sua expressão é de consternação. Mais uma vez ela se espanta e depara com a marca indelével daquela existência abjeta diante do território de discriminações sociais em que habitam as mulheres, dentro e fora do cárcere de Madalena. SEQUÊNCIA 4 – O grito Festa na cidade. Procissão e Missa Campal no convento, com a presença de autoridades locais. Durante a leitura do Evangelho segundo São João, ao falar da carne e do sangue de Jesus, o Padre sente a irritação das urtigas no próprio corpo, sai correndo, tira as roupas, enquanto todos olham com perplexidade a cena grotesca do padre nu se coçando. Mas além do abuso do eclesiástico, a revanche descortina a humilhação da vítima. Crispina também começa a se coçar e exibe as pernas irritadas, que desvelam o segredo. E, aos berros, ela clama e reclama: “Você não é um homem de Deus!” “Você não é um homem de Deus!” O grito não vem apenas do corpo violentado, saturado de sexualidade. O diretor poderia ter cortado a cena, mas escolheu deixá-la para que aquela repetição insistente, quase insuportável, marcasse o momento em que o conflito se revela explosivo. A violência silenciada se manifesta e exacerba. Espectadores na cena e do filme, homens e mulheres, não podem deixar de perceber ali a crueldade dos poderes em operação. O rosto da mulher que grita, a sequência que parece infinita. O grito reiterativo e suas ressonâncias esparramam indignação para além da tela e das balizas do tempo-espaço... A imagem parece querer extravasar os contornos da película, do tempo, da realidade e da escrita do filme que, como a História, poderá ser mil vezes entreolhada e redescrita. Crispina é agarrada e, pela segunda, vez excluída, fraturada, isolada e confinada. Desta vez, medicalizada e encaminhada ao setor dos doentes mentais no Hospital Saint Vermont. Assim, tanto a identidade privada da mulher como a saúde da população pactuam na mesma conjunção de saber e poder investidos na materialidade do corpo (FOUCAULT,1988). SEQUÊNCIA 5 - O desfecho e o tempo O irmão de Margaret vai buscá-la quatro anos depois de ser levada de casa, e ela pergunta indignada: “Durou quatro anos? O que vpcê estava fazendo? Ele responde: Estava crescendo... Patrícia, codinome de Rose, e Bernadette fogem do asilo, em uma sequência eletrizante... Por fim, o texto corrido na tela revela o desfecho daquelas trajetórias: Bernadette muda-se para a Escócia onde abre seu salão. Casou-se e divorciou-se três vezes. Patrícia volta a ser Rose e vai para Liverpool, onde se casa e tem duas filhas. Encontra o filho 33 anos depois de ter sido levado para adoção. Margareth se dedica à educação primária e não se casa. Crispina, que se chamava Harriet, morre no Hospital, anoréxica, em 1971, aos 24 anos. Ao explicar desdobramentos da vida das personagens, o texto final forja a impressão de que aquelas foram experiências vividas e, assim, a ficção se traveste de um valor documental. As primeiras e últimas imagens, que apresentam o título e descerram a trama, trazem uma lista de nomes de mulheres ao fundo, registrados em branco e preto, como um memorial às madalenas, sujeitos que foram violados, violentados, espoliados de/em suas histórias. A cinematografia proposta por Mullan acompanha o movimento contemporâneo da História, dos feminismos e da crítica da cultura, quando não se contem, como adverte Rago, em trazer mulheres submissas e glamourizadas para o interior da grande narrativa elaborada por ‘vencedores’(RAGO, 1995). Ela procura abordar experiências silenciadas na história e reações possíveis, no plural, dando visibilidade a novas dimensões da vida social. A câmera adentra a história dos asilos de Madalena e, no sistema de encarceramento das mulheres consideradas desviantes, quer dar a ler a organização da norma, a orquestração dos dispositivos e a produção funcional do desvio. Assim, a narrativa possibilita perceber outras formas de existência e significação de sujeitos sociais no feminino, ainda que pela punição de seus corpos investidos de sexo e da sexualidade exorbitante. Ela entretece fronteiras de identidades consideradas desviantes, para retirá-las do silêncio, e mostrar as condições históricas de sua construção, dando nova luz às imagens de mulheres designadas como sedutoras, vadias, prostitutas, pecadoras, fujonas, loucas, madalenas, produzidas em corpos sexuados de irmãs, filhas, mães, mulheres no plural... Ante as tecnologias políticas, na escrita de Mullan, as três Madalenas reconfiguradas na película conseguiram escapar de suas destinações culturais. A quarta sucumbiu. Nessas experiências narradas, o filme apresenta a representação do gênero e a sua construção, ou seja, um registro da história dessa construção e o funcionamento do aparato semiótico que atribui valor, identidade, significado aos indivíduos naquela sociedade (LAURETIS,1994:212). E, além disso, como ensina Lauretis, aponta para o espaço fora da tela, fora da norma, para o outro lugar do discurso, os pontos cegos ou o space off: aqueles espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas dos aparelhos de saber-poder[4] (ID., IBID.:237). Destaca-se que a escrita cinemática de um autor reconhecido em sua identidade masculina é, aqui, fertlilizadora do pensamento feminista, e não deve ser definida pela atribuição espontânea de um discurso a seu produtor, como adverte Foucault, mas, ao contrário, por uma “[...] série de operações específicas e complexas, não de um indivíduo real, mas de um lugar de vários egos, ou várias posições de sujeito” (FOUCAULT, 2001:284). O filme ocupa o lugar necessário de uma “instauração discursiva” de que fala o filósofo, ou seja, para fazer retornar aquilo que foi construído como um esquecimento, “não esquecimento acidental, não encobrimento por alguma incompreensão, mas esquecimento essencial e constitutivo”. A história dos asilos-lavanderias, tal como narrada no filme, exibe, além da maquinaria política de produção dos corpos desviantes, a posição e a funcionalidade do “autor”, conforme a perspectiva foucaultiana. Posição e funcionalidade, estas, que se manifestam no ato de instauração discursiva, ao serem devolvidas as condições de existência histórica àquelas subjetividades que quase foram soterradas no território conflagrado do discurso androcêntrico, ou seja, ao fazer com que aquele esquecimento não acidental seja investido de operações precisas, que permitem situar, analisar e reduzir pelo próprio retorno a esse ato instaurador. Retorna-se, assim, na escrita com a luz e em movimento, “[...] ao próprio texto, ao texto em sua nudez e, ao mesmo tempo, no entanto, retorna-se ao que está marcado pelo vazio, pela ausência, pela lacuna do texto. Retorna-se a um certo vazio que o esquecimento evitou ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou má plenitude e o retorno deve recobrir essa lacuna e essa falta; o perpétuo jogo que caracteriza esses retornos à instauração discursiva – jogo que consiste em dizer por um lado: isso estava aí (...)” (FOUCAULT,2001:289) Além de repensar o autor como uma função ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula de maneira complexa o universo dos discursos, ou na especificidade de um lugar socialmente construído e de uma função política provavelmente escolhida, o filme nos instiga a pensar que o aparelho cinematográfico também sugere “não apenas o modo pelo qual a representação de gênero é construída pela tecnologia específica, mas também como ela é subjetivamente absorvida por cada pessoa a que se dirige” (ID. IBID.: 222). Nesse sentido, a película apresenta possibilidades outras de interpelação e subjetivação e sensibiliza espectadores/as do presente, convidando-nos a reagir, a reler experiências históricas de um passado recente; ensina-nos a estar dentro e fora do gênero, a repensar poderes em movimento e invadir espaços que o referencial androcêntrico exclui ou, mais exatamente, desejaria tornar irrepresentável. Ao encenar a violência do sistema sexo-gênero em algumas de suas condições históricas de possibilidade, o filme possibilita o exercício da crítica a uma história centrada no referente masculino (e que dissimula permanentemente esse lugar central), por isso contribui para que se consiga repensar o discurso e o pensamento. Como sugere Margareth Rago, por um lado, ensina a se desfazer a noção abstrata de ‘mulher’ referida a uma essência feminina única, a-histórica, de raiz biológica e metafísica, para se pensar as mulheres enquanto diversidade e historicidade de situações em que se encontram (RAGO, 1995). Por outro, a experiência espectadora e crítica, com base nas teorias feministas, ensina e nos convoca a “lutar politicamente para mudar o imaginário social e político de nossos tempos e construir uma linguagem e uma poéticas feministas, a partir das quais as mulheres possam pensar e se expressar adequadamente” e, assim, contribuir para mudar o pensamento falocêntrico, branco e ocidental, ou seja, para mudar o mundo (RAGO, 2013:316). Nota biográfica Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro. Doutora em História pelo PPGHIS da Universidade de Brasília/UnB, é Professora Adjunta do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia / UFU / MG. Pesquisa na área de História do Brasil, à luz da epistemologia feminista e dos estudos culturais, particularmente na problematização de conceitos/ categorias identitárias de sexo-gênero, raça-etnia, nação e poder. BIBLIOGRAFIA Butler, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, Guacira Lopes. 1999. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica. Dreyfus, Hubert L. & Rabinow, Paul. 2010. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª ed. Revista. Trad. Vera Portocarrero, Gilda Gomes Carneiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Foucault, Michel. 1988. História da Sexualidade. A
vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal. Lauretis, Teresa de. A Tecnologia de Gênero. In: Hollanda, Heloisa Buarque. 1994. Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco. Jodelet, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet, Denise (org.) 2001. As Representações Sociais. Trad. Lilian Ulup. Rio de Janeiro: EdUERJ. Rago, Margareth. 1995. As mulheres na historiografia brasileira. In: Silva, Zélia Lopes de et al. (org.) Cultura Histórica em Debate. São Paulo: Unesp. _______________. 2013. A Aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas/SP: Editora Unicamp. swain. tania navarro. Heterogênero: “uma categoria útil de análise” Educar. Curitiba, n. 35, p. 23-36, 2009. Editora UFPR 23. [1] Para a autora: “O “sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural”. (BUTLER, 2010:154-5) [2] O artigo é resultado de uma comunicação realizada no Congresso FAZENDO GÊNERO 10, promovido pela UFSC, em Florianópolis/SC, em 2013. [3] Conforme Butler, “essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito: ela constitui aquele local da temida identificação contra o qual – e em virtude do qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida”. (BUTLER, IBID, 155-6) [4] Para Lauretis, “(...) é aí que os termos de uma construção diferente do gênero podem ser colocados – termos que tenham efeito e que se afirmem no nível da subjetividade e da auto-representação: nas práticas micropolíticas da vida diária e das resistências cotidianas que proporcionam agenciamento e fontes de poder ou investimento de poder; e nas produções culturais das mulheres, feministas, que inscrevem o movimento dentro e fora da ideologia, cruzando e recruzando as fronteiras – e os limites – da(s) diferença(s) sexual(is). (LAURETIS, IBID.:237) labrys,
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