labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet / décembre 2013  -julho / dezembro 2013

 

 

Por um feminismo ‘vadio’ e outras considerações contemporâneas

Maria Rita de Assis Cesar

Thayz Conceição Cunha Athayde

 

Resumo: Este texto toma o movimento feminista ‘marcha das vadias’ como um novo movimento social que apresenta estratégias particulares de luta social, colocando o corpo em evidência. A forma de ação política presente na ‘marcha das vadias’ instaura uma crítica das identidades sociais e jurídicas, que são o ponto de partida e o palco das lutas de parte dos movimentos feminista e LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), questão que analisamos neste texto a partir de considerações e conceitos de Michel Foucault e de Judith Butler. Finalmente, a ‘marcha das vadias’ é também entendida aqui como uma experiência que pode ser interpretada como uma atualização das problematizações introduzidas por Foucault nos seus últimos cursos no Collège de France sobre a estética da existência.

Palavras-chave: Marcha das Vadias; Feminismo, LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais); Estética da existência.

Résumé: Ce texte conçoit le mouvement féministe auto-nommé La Marche des Salopes comme un nouveau mouvement social qui présent des stratégies particulières de lutte sociale, lesquelles mettent le corps en évidence. En plus, on argumente que la forme d’activité politique de la Marche des Salopes instaure une critique des identités sociaux et juridiques qui constituent le point d’appui et aussi le champ même des luttes d’une partie des mouvements féministe et LGBT (Lesbiennes, Gays, Bissexuels, Travesties et Transsexuels), questions qui sont analysées dans ce texte à partir des considérations critiques et des concepts de Michel Foucault et de Judith Butler. La Marche des Salopes est finalement conçue comme une expérience qui, d’une certaine façon, pourrait être interprétée comme une d’actualisation des problématisations introduites par Foucault dans ses derniers cours au Collège de France autour de l’esthétique de l’existence.

Mots-clé:  Marche des Salopes; Féminisme; LGBT (Lesbiennes, Gays, Bissexuels, Travesties et Transsexuels); Esthétique de l’existence.

 

‘...meu corpo, minhas regras!’; ‘...meu corpo, minha escolha!’; ‘...lugar de mulher é onde ela quiser!’; ‘...o corpo é da mulher, ela dá para quem quiser!’; ‘...tire seus rosários dos nossos ovários!’ Essas têm sido frases gritadas a plenos pulmões, nos últimos anos, nas ruas das cidades mundo a fora, para, como sempre o fizeram os feminismos de todas as orientações, denunciar a violência, o machismo, além de reivindicar as ‘antigas’ questões feministas, como a descriminalização e legalização do aborto e o fim da violência contra as mulheres. A ‘marcha das vadias’ é uma das mais originais e interessantes manifestações de rua dos chamados feminismos contemporâneos. Nas frases gritadas e escritas em pele e papel, bem como na aglutinação das pessoas, há uma enorme energia política que emerge daqueles corpos desnudos que desfilam pelas ruas das cidades brasileiras e do resto do mundo, denunciando uma sociedade patriarcal caduca, que insiste na sua própria manutenção pela via da violência. Em 2011, no Canadá, um grupo de mulheres saiu às ruas para gritar um sonoro ‘basta!’ à cultura da violência e do desrespeito que, além do mais, faz das próprias vítimas as culpadas pelas agressões sofridas: ‘Mas também, ninguém mandou se vestir e se comportar como uma vadia!’ Eis o retrato da perversa lógica machista, que não apenas justifica, mas atenua, mascara e torna natural a violência sofrida pelas mulheres. (CESAR, 2013)

Com a Marcha, faz-se saber que milhares de mulheres são assassinadas, violadas, espancadas, humilhadas, desrespeitadas cotidianamente, ao redor do mundo. E tudo isso pelo fato de serem mulheres. No Brasil, se a mulher for negra e pobre, então tudo fica ainda pior, dado o preconceito de que elas só ‘servem’ para o sexo, o trabalho pesado e o chicote. Toda mulher já foi agredida física ou verbalmente, já foi chamada de vadia ou de vagabunda, dentro e/ou fora de casa. Toda mulher já foi constrangida e censurada por se vestir de maneira considerada imprópria. Toda mulher já sentiu medo e raiva ao ser abordada de maneira agressiva ou ‘insinuante’ nas ruas. Toda mulher conhece casos de mulheres aviltadas, destruídas, massacradas. Os agressores são homens criados na cultura da violência e do machismo. Isto é conhecido e o movimento feminista sempre lutou contra tais violências, denunciando-as.

A novidade presente na ‘marcha das vadias’ é a estratégia do combate. Se a lógica da violência masculina culpabiliza a mulher agredida, chamando-a de vadia, então será preciso inverter os sinais e fazer da denúncia da violência uma arma de afirmação do poder das mulheres. Foi em nome dessa inversão de valores que a ‘marcha das vadias’ se apoderou da antiga denominação e fez do termo ‘vadia’ um poderoso instrumento de contra-conduta, ressignificando e reterritorializando a linguagem. As vadias que saem às ruas não guardam qualquer parentesco com a mulher frágil, subordinada ao poder masculino. Não aceitam ser julgadas por critérios e costumes para lá de caducos. Não aceitam ser alvo constante da violência e do escárnio masculinos. Elas se afirmam livres, belas e corajosas, se libertaram dos estereótipos que as destinavam a servir e a sofrer a violência masculina. Por isso elas gritam: ‘se ser vadia é ser livre, então eu sou vadia!’ Invertendo a lógica machista que exige das mulheres que sejam bem comportadas e cubram seus corpos com esmero, preservando-se para o ‘seu’ homem, a vadia liberta é aquela que ama seu corpo como ele é.

São também as mulheres que exibem seus corpos ali onde não esperaríamos vê-lo, no meio da rua, fazendo dele o suporte da denúncia de todas as violências sofridas. E é incrível ainda hoje uma perna ou um seio à mostra possam parecer mais escandalosos que a despudorada tolerância com que cobrimos todo dia a violência que dilacera o corpo das mulheres. Neste contexto de poderosas inversões simbólicas, nomear-se como vadia não significa aviltar a mulher ou a condição feminina, significa dar a si mesma um imenso poder de resistência. Algumas mulheres ainda se incomodam com a denominação, pois foram ensinadas a fugir dela a todo custo. O que elas ainda não entenderam é que nunca houve para onde fugir da violência física e verbal do machismo cotidiano, o qual tem de ser combatido invertendo-se as regras do jogo, embaralhando-se as cartas, dando-se as cartas. Gays, lésbicas, transexuais e travestis também são vítimas da violência e do preconceito machista, motivo pelo qual também têm ocupado seu lugar na ‘marcha das vadias’. Afinal, a luta das mulheres feministas é de todos e todas que compreenderam a dignidade do combate à violência e à discriminação de gênero.

Uma pauta feminista fundamental retomada pela ‘marcha das vadias’ é a luta pela descriminalização/legalização do aborto no Brasil, assim como também a garantia dos direitos já adquiridos em relação à interrupção da gravidez. Na medida em que tais direitos são palco de disputa política-religiosa que, no caso brasileiro, corresponde a uma crescente ocupação de cadeiras nas câmaras legislativas, estaduais e federais, os direitos adquiridos em relação ao aborto e à saúde das mulheres se encontram sob constante ameaça.[1] Trabalhando com resultados de pesquisas realizadas pelo Ministério da Saúde, o movimento vem ajudando a esclerecer sobre o risco produzido pela ausência da possibilidade de realização de aborto legal e seguro e todas as consequencias desta situação, em especial para a população de mulheres pobres.[2] 

Em muitas cidades brasileiras, a ‘marcha das vadias’ traz consigo um ethos libertário e não-identitário. Reconhece-se como movimento feminista, mas além de abarcar mulheres também se fazem presentes homens e mulheres das mais variadas configurações de identidade de gênero e orientação sexual: heterossexuais, homossexuias, bissexuais, lésbicas, gays, transexuais, travestis, trangêneros. A denominação ‘vadia’, no entanto, acaba por dispensar as identidades sexuais e socias, pois ‘vadia’, no feminino, designa a todas(os). Como a crítica às identidades de gênero é um elemento marcante nesse nova configuração de movimento social feminista, faz-se importante realizar aqui uma reflexão crítica sobre o crescente apelo às identidades sexuais e de gênero no interior de boa parte dos movimentos sociais feministas e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travesties e Transexuais) contemporaneamente.

Os movimentos sociais, particularmente os movimentos sociais que abarcam as chamadas diversidades sexuais e de gênero, estabelecem-se o mais das vezes com base em discursos e práticas marcadores de uma identidade com apelo em bases jurídicas, pois as reivindicações sociais, na maior parte das vezes, dizem respeito a conquistas no âmbito do direito relativas àquelas identidades, isto é, direito de gays, direito de lésbicas, direito da travestis e transexuais, etc.[3] Especialmente na última década, acirraram-se os debates e as reivindicações promovidos pelos movimentos feminista e LGBT: a ampliação do direito ao aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, o direito ao atendimento institucional das chamadas ‘minorias’ sexuais e de gênero e, especialmente no Brasil, a condenação da violência de gênero e sobre as sexualidades não normativas.[4] As abordagens demonstram que as estratégias teóricas e políticas empregadas têm priorizado a conquista de direitos, de modo que suas práticas e discursos têm se remetido ao campo da assunção e reconhecimento das identidades. (CESAR, 2012)

Nos Estados Unidos, desde o final da década de 70, especialmente o movimento gay conferiu importância ao outing (sair do armário), numa referência às práticas de esconder a sexualidade como garantia da integridade física e moral, lutando em defesa da afirmação de uma identidade que deve se mostrar como estratégia política. Sobretudo nas décadas de 80 e 90, o outing (sair do armário) passou a ser uma estratégia política importante no combate ao preconceito no decorrer da epidemia do HIV/AIDS. Eve K. Sedgwick, inspirada pela tese foucaultiana do dispositivo da sexualidade, consolidou o conceito no meio acadêmico ao analisar as estratégias de regulação sexual e, sobretudo, ao estabelecer uma teoria social sobre o closet (armário), que se baseia no segredo, na mentira e na vida dupla. (SEDGWICK, 1990) Para parte significativa dos movimentos sociais, a ação política de ‘sair do armário’, isto é, a assunção de uma identidade – gay, lésbica, transexual, travesti ou bissexual, é tomada como central para a ação política na conquista de direitos.   

No entanto, já desde o final dos anos 70 intelectuais feministas fizeram a crítica à equação que fundamentava os pressupostos do feminismo, isto é, ‘a mulher’ como sujeito universal e identidade do feminismo. As feministas radicais, denominação que receberam nos debates acadêmicos, foram influenciadas por releituras de Simone de Beauvoir e outras correntes intelectuais, como o estruturalismo, presente na crítica literária, e mesmo o materialismo. Dentre as feministas radicais pode-se mencionar Adrienne Rich (1993) e a produção do importante conceito de “heterossexualidade compulsória”, Gayle Rubin (1993) e sua crítica etnográfica, bem como as subversões teóricas e lingüísticas de Monique Wittig (1993) e seu projeto estético-político de uma escrita sem sujeito.[5]

Certamente o conjunto de feministas é muito maior do que apresento, mas tomo essas três como reflexões paradigmáticas no âmbito da crítica do sujeito do feminismo. Os trabalhos de Michel Foucault, sobretudo sua compreensão do dispositivo da sexualidade, bem como sua análise das formas de normalização dos corpos e das experiências sexuais, foram elemento crucial na elaboração de uma parte da crítica da noção de sujeito e de uma identidade única, tanto para o feminismo como para o movimento gay. Tanto para o feminismo radical, como para os Lesbian and Gay studies e, mais recentemente, para a teoria queer, a abordagem genealógica da sexualidade proposta por Foucault teve um papel importante na definição de abordagens desnaturalizadoras e desessencializadoras do corpo e do sexo. (WEEKS, 1993 e HALPERIN, 1993; SPARGO, 2007, p. 53)

            Tendo em vista as críticas feministas à noção de sujeito do feminismo e os questionamentos em relação à identidade nos movimentos sociais, a pergunta que orienta este artigo interroga pela possibilidade de constituição de lutas político-sociais de resistência e que se desenvolvam para além do recurso exclusivo ou prioritário às figuras do sujeito e da identidade. A mesma questão que se colocava no final dos anos 70 em relação ao movimento feminista sobre o sujeito do feminismo, coloca-se agora, contemporaneamente, em relação aos movimentos feminista e LGBT. É possível uma luta política em que o vínculo comum entre os atores se constitua a partir do desempenho das suas ações e dos seus discursos, entendidos como práticas refletidas de liberdade de uma estética da existência contemporânea, e não a partir do recurso à lógica identitária e ao essencialismo subjetivista, que tendem a pautar a relação dos movimentos sociais com o Estado? É possível pensar e pôr em ação uma política de inclusão de novos e velhos ‘sujeitos’ e demandas na esfera dos direitos sem, contudo, perder de vista a capacidade destes agentes políticos para potencializar a experiência democrática ao instaurar espaços de liberdade efetiva por meio de seus atos; sua capacidade de enunciar discursos que digam a verdade em público e corajosamente; e sua capacidade para criar novas formas de relação e de sociabilidade democrática?

Entrementes, análises recentes têm mostrado que as formas de governamento no mundo contemporâneo ampliaram e diversificaram os seus controles, aumentando consideravelmente os agentes e os dispositivos nos processos normalizadores. As práticas sociais incluíram dentre seus dispositivos de normalização o mercado econômico neoliberal, as ONGs e os movimentos sociais. Formou-se, pois, todo um conjunto de novos agentes produtores de processos de ordenação e separação dos corpos e práticas, engendrando-se identidades e produzindo-se o desejo de uma vida viável no interior da norma. (CESAR, 2011) O que se observa no presente é um conjunto de novos dispositivos, atualizados continuamente, que produzem normas que identificam, desenham e limitam as práticas, ações e modos de vida de indivíduos e grupos sociais ao agrupá-los e defini-los como sujeitos de direito. (CÉSAR; DUARTE, 2010)

Em razão disso, a luta e aquisição de direitos estaria diretamente relacionada aos processos de identificação, visto que os grupos sociais passaram a se formar em torno da ideia de uma identidade comum. Em relação aos movimentos LGBT é importante ressaltar que, com o advento da epidemia de HIV/AIDS, as práticas libertárias anteriores foram sendo gradativamente substituídas pela lógica do chamado modelo ‘étnico-racial’, então já consolidado em torno da noção de identidade: “De acordo com essa nova concepção, os gays e lésbicas constituíam um grupo minoritário, composto por indivíduos iguais e ao mesmo tempo diferentes, que operava com vistas a obter direitos e proteção legal dentro da ordem reinante.” (SPARGO, 2007, p. 40) No presente, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersex constituíram-se como grupos estabelecidos em razão do compartilhamento de uma ideia de identidade entendida como essência comum, destino biológico ou direcionamento do desejo.

Frente a este diagnóstico, cabe recordar que os primeiros escritos de Judith Butler partiram das formulações realizadas pelas feministas radicais, críticas da ideia de sujeito e identidade. Inspirada pelas teorizações foucaultianas, entre apropriações e críticas, Butler desenvolveu um conjunto de reflexões e conceitos que mapeiam e aprofundam a crítica ao sujeito no feminismo. Em Gender Trouble (1990), a autora realizou uma reflexão que retomava as primeiras críticas feministas da ideia de um sujeito do feminismo, aproximando-se da reflexão crítica de Foucault sobre o sujeito de direito. (FOUCAULT, 1994)

A crítica feminista já demonstrava então que mulheres negras, latinas, lésbicas, entre outras, não eram abarcadas pelo feminismo pautado por um sujeito essencial, ‘a’ mulher. Distintamente da perspectiva teórica de Butler, algumas feministas e estudiosas do gênero multiplicaram e estenderam as identidades e os sujeitos, constituindo assim outros sujeitos como: mulheres negras, mulheres latinas, mulheres lésbicas, mulheres trabalhadoras, sem jamais abrir mão da noção de identidade. Butler, por sua vez, entendeu que a própria noção de identidade era problemática. Recorrendo à reflexão foucaultiana sobre o sujeito de direito, ela compreendeu que este é produzido pelo mesmo sistema jurídico de poder que posteriormente irá representá-lo. Trata-se aí de uma noção jurídica de poder que produz um sujeito a ser representado e que, no caso do feminismo, produz e representa ‘a mulher’ como o sujeito do feminismo. No interior desta perspectiva, o sujeito é produzido pela mesma instância que supostamente irá libertá-lo. Em se tratando do feminismo e da emancipação das mulheres, esse sistema mostra-se contraproducente na medida em que, ao produzir sujeitos generificados (homem e mulher), produzem-se sujeitos que se situam de maneira desigual sobre um eixo diferencial de dominação.

Desse modo, o sistema jurídico de poder, o mesmo que produz tanto ‘o homem’ como ‘a mulher’, é simultaneamente responsável pela produção do sistema de desigualdade entre homens e mulheres. Ou seja, o mesmo sistema que produz a desigualdade é também a suposta instância de libertação do sujeito mulher. Além disso, o sujeito jurídico é produzido no interior de práticas de exclusão que são mascaradas pelo próprio sistema jurídico que o produz. (BUTLER, 1990, p. 3) Assim, Butler demonstra que a contradição interna entre o sistema de produção dos sujeitos e a sua libertação é a razão da insuficiência dos processos de obtenção dos direitos das mulheres, propondo-nos, desta maneira, uma reflexão que poderia perfeitamente ser expandida para o âmbito das discussões dos movimentos LGBT e dos projetos educacionais a eles associados.

De maneira geral, pode-se afirmar que, até o presente momento, as teorizações genealógicas de Foucault têm funcionado como referência teórica para a crítica que coloca em xeque os sistemas normativos e as formações jurídicas constituídas em torno da ideia de uma identidade a ser libertada. Consideramos que, a fim de pensar o(s) feminismo(s), as práticas sexuais e sociais resistência e contra-conduta no presente, situando-as para além do modelo machista e heteronormativo predominante, e para além da referência hegemônica às noções de sujeito e de identidade, deveríamos retornar aos últimos estudos de Foucault, os quais podem nos oferecer uma interessante base conceitual que nos permita compreender a efetividade das práticas ético-políticas de liberdade do sujeito para consigo mesmo e para com os outros em nossos dias. Nossa hipótese é que as últimas considerações de Foucault sobre as artes do existir nos permitiriam pensar a ação política e a ação educacional sob outra perspectiva que não a do sujeito de direitos e a das identidades pré-definidas.

Em relação aos estudos de gênero, alguns importantes trabalhos brasileiros têm apontado a necessidade de se buscar no último Foucault algumas ferramentas conceituais para pensar outras práticas e formas de vida política. Em se tratando da pesquisa feminista no Brasil, as historiadoras Margareth Rago (RAGO, 2009, 2010) e Tânia Swain  (SWAIN, 2009) vêm demonstrando a potencialidade de alguns dos conceitos presentes nas últimas obras de Foucault, tais como os conceitos de subjetivação, parresia, escrita de si e estética da existência. Tais análises têm demonstrado a experiência feminina e feminista de alguns grupos de mulheres como produto de uma subjetividade autônoma e libertária.

Assim, propomos algumas reflexões sobre a ‘marcha das vadias’ tomando como referência o conceito foucaultiano de “estética da existência”, o qual nos parece permitir pensar a experiência contemporânea de uma relação crítica de si para consigo e de si para com os outros. Trata-se aí de uma reflexão e de uma ação sobre si mesmo visando transformar o próprio modo de ser e o dos outros, uma relação crítico-reflexiva que questiona as alternativas fáceis e já disponíveis: “Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais.”[6] Foucault parece incentivar esse tipo de reflexão crítica voltada para a transformação de si e dos outros no presente quando afirma o seguinte: “Meu problema é fazer de mim mesmo, e convidar os outros a fazer comigo, através de um conteúdo histórico determinado, uma experiência disso que nós somos, disso que é não somente nosso passado, mas também nosso presente, uma experiência de nossa modernidade, da qual saímos transformados.” (FOUCAULT, 1994, p, 44)

            Pensamos, portanto, que o conceito foucaultiano de “estética da existência” permitiria refinar a crítica em relação ao universo semântico da identidade e da subjetividade, na medida em que introduz a problematização da relação ético-política a partir das práticas de si para consigo e de si para com os outros. Com o conceito de “estética da existência”, abre-se espaço para a consideração da capacidade ético-política de invenção e criação de novas formas de relação de si para consigo e com os outros, isto é, novas formas de vida, de sociabilidade e de afetividade. Enfim, a introdução da noção ampla de estética da existência abre espaço para a discussão e questionamento dos padrões normalizadores, heterônomos e identitários, que formatam o indivíduo contemporâneo ao aprisioná-lo em rígidas identidades previamente definidas. Numa palavra, introduz-se assim uma discussão crítica dos padrões institucionais e institucionalizados que pautam, muitas vezes, os atos e palavras dos militantes dos novos movimento sociais e dos formuladores de projetos educacionais. As práticas refletidas de liberdade da estética da existência são processos reflexivos de constituição autônoma de si mesmo, as quais se dão sempre por meio de práticas e discursos que implicam os outros, práticas e discursos nos quais os agentes se tornam autonomamente quem são por meio de suas lutas políticas de resistência contra os poderes heterônomos de sujeição e domesticação do indivíduo moderno. (FOUCAULT, 1994)

            Outras reflexões de Foucault, também de meados dos anos 80, sugerem que suas pesquisas sobre a antiguidade greco-romana jamais deixaram de vislumbrar suas virtuais implicações para o nosso tempo. Respondendo a uma questão sobre os direitos dos gays em uma entrevista, Foucault chama a atenção para o aspecto criativo, extra-jurídico, do movimento gay, ao recordar os importantes efeitos liberadores implicados nos movimentos políticos do final dos anos 60 e início dos anos 70. Por certo, ele reconhece que tais movimentos contribuíram para assegurar o “direito” do indivíduo de escolher sua sexualidade. No entanto, a despeito daqueles ganhos jurídicos, Foucault também afirma que seria preciso “dar um passo adiante”, no sentido de estimular a “criação de novas formas de vida, de relações, de amizade, na sociedade, na arte, na cultura, novas formas que se instaurem através de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas. Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente enquanto identidade, mas enquanto força criativa.” (FOUCAULT, 1994, p. 736) Para Foucault, a potencialidade de modificação das formas de vida é o aspecto realmente importante dasqueles movimentos: “Mais do que defender que os indivíduos têm direitos fundamentais e naturais, deveríamos tentar imaginar e criar um novo direito relacional que permitisse que todos os tipos possíveis de relações pudessem existir e não fossem impedidas, bloqueadas ou anuladas por instituições empobrecedoras do ponto de vista das relações.” (FOUCAULT, 2010, p. 121)

            O momento histórico de multiplicação e maior visibilização dos movimentos gays é também aquele no qual Foucault ministrou seus últimos cursos no Collège de France. Não é casual, portanto, que no momento mesmo em que Foucault refletia sobre a questão da amizade no mundo antigo, ele também apresentasse as relações de amizade como possibilidade de resistência política contemporânea, capaz de instaurar novas formas de relação entre as pessoas. Nesse contexto, Foucault afirma estar interessado em:

 (...) uma cultura que inventa modalidades de relações, modos de vida, tipos de valores, formas de troca entre indivíduos que sejam realmente novas, que não sejam homogêneas nem se sobreponham às formas culturais gerais. Se isso for possível, a cultura gay não será então simplesmente uma escolha de homossexuais por homossexuais. Isso criará relações que podem ser, até certo ponto, transpostas para os heterossexuais. (FOUCAULT, 2010, p. 122)

Ora, o processo ético de autoconstituição se dá justamente por meio das práticas de resistência que questionam o primado das identidades sociais, abrindo o sujeito para novas formas de relação consigo, com os demais e, portanto, para com o mundo. Como afirmou Foucault, “hoje o principal objetivo não é descobrir quem somos, mas recusar o que somos. Precisamos imaginar e construir o que poderíamos ser a fim de nos desembaraçarmos desta forma de ‘dupla constrição’ política que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno.” (FOUCAULT, 1994: p. 232)

À luz das considerações precedentes, aquilo que Foucault denominou como “atitude de modernidade” poderia ser entendido como um agir crítico-reflexivo sobre si mesmo e sobre os outros, isto é, como um processo autônomo de individualização que engaja e requer os outros, bem como exige e requer a problematização do presente. Tal ação de reflexão crítica sobre o presente, sobre si mesmo e sobre os outros é assumida e levada a cabo como forma de resistência em relação aos poderes que constituíram o sujeito assujeitado, condição central para que se instaurem novas formas de relação consigo e com os outros, mais livres e mais autônomas: “Poderíamos dizer ... que o problema simultaneamente político, ético, social e filosófico que se nos coloca hoje não é o de ensaiar a liberação do indivíduo em relação ao Estado e suas instituições, mas de nos liberar a nós mesmos do Estado e do tipo de individualização que a ele se relaciona. Precisamos promover novas formas de subjetividade ao recusar o tipo de individualidade que se nos impôs durante séculos.” (FOUCAULT, 1994: p. 232) As práticas foucaultianas de autoconstituição ético-política do sujeito se desdobram, pois, nas atitudes críticas do questionamento e da resistência combativa contra aquilo que hoje se nos mostra como certo, natural ou inquestionável, tal como, por exemplo, a tendência dos novos movimentos sociais feminista, LGBT e dos projetos educacionais para encerrarem-se nos estreitos limites da identidade.

Em certa medida, talvez seja possível dizer que, sob alguns aspectos, em especial em relação ao desnudamento do corpo e à recusa das identidades sociais e sexuais, a ‘marcha das vadia’ seja capaz de acionar elementos presentes nas indagações foucaultianas sobre os desdobramentos de uma estética da existência no presente. Ao colocarem o corpo em evidência, ou ao politizarem o corpo desnudo, aquilo que é posto em xeque são os pertencimentos e pertinências normativas, por meio da reterritorialização e transformação do corpo nu. A ‘marcha das vadias’ vale-se de uma estratégia política inovadora ao ocupar e politizar as ruas, expondo os corpos nus (ou vestidos) a fim de veicular mensagens políticas de denúncia de todas as formas de violência de gênero. Distintamente dos movimentos identitários de minorias, que tendem a privilegiar os canais burocráticos da representação política institucionalizada em sua atuação, a ‘marcha das vadias’ faz da rua o local da política e do próprio corpo o suporte vivo de veiculação de uma outra relação entre vida e política: uma política da vida escandalosa ou da vida como escândalo político, que muito faz lembrar as considerações de Foucault sobre a estética da existência e as posteridades do cinismo, tema abordado no seu último curso no Collège de France, A coragem da verdade. (FOUCAULT, 2011) Ao subverter-se a linguagem e transformar-se o sentido de ‘vadia’ para ‘liberta’, o que ocorre é uma nova politização da linguagem. Assim, se ser vadia é ser livre, sejamos todas vadias.

 

Referências Bibliográficas:

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Notas biográficas:

Maria Rita de Assis César: Doutora em Educação pela UNICAMP, Pós-doutorado em Filosofia na Université Paris XII (Paris-Est). Bolsista Produtividade de Pesquisa – CNPq 2. Professora do Setor de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Laboratório de Investigações em Corpo, Gênero e Subjetividade na Educação - LABIN e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero. Autora do livro a Invenção da Adolescência no discurso psico-pedagógico (2008) Ed. Unesp, além capítulos e artigos sobre corpo, gênero, sexualidade, teoria queer, estudos foucaultianos na educação, subjetividade e estética da existência.

Thayz Conceição Cunha de Athayde : Graduada em Psicologia – UNIBRASIL e Mestranda em Educação no PPGE/UFPR. Bolsista CAPES. Pesquisadora do Laboratório de Investigações em Corpo, Gênero e Subjetividade na Educação - LABIN e do Núcleo de Estudos de Gênero. Coordenadora da Marcha das Vadias – Curitiba/PR. Organizadora e colaboradora do Blog – Blogueiras Feministas.


 

[1] O Projeto de Lei 478/2007 – Estatuto do Nascituro (CAMARA DOS DEPUTADOS. www2.camara.leg.br) representa um retrocesso em relação aos direitos das mulheres, na medida em que cria um novo estatuto para o embrião, considerando-o como ‘sujeito’ de  direito e  concomitantemente destituindo as mulheres do exercício dos seus direitos em relação à interrupção legal da gravidez.

[2]Sobre a questão do aborto no Brasil veja-se BRASIL, 2009.

[3] Aqui o conceito de diversidade é tomado como problemático porque mantém uma relação entre um sujeito central e os outros sujeitos, isto é, a diversidade. Para essa discussão veja-se SIERRA, 2013.

[4] Os próprios movimentos sociais feministas e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais) vêm obtendo  conquistas. Entretanto, é importante ressaltar que tais conquistas, aliadas à maior visibilidade destes grupos, têm resultado no aumento e na explicitação da violência contra eles. Alguns/mas autores/as trataram desse tema da violência e rejeição aos homossexuais através do conceito de pânico moral. Sobre o tema veja-se: RUBIN, 1993.  

[5] O conjunto de autoras que fizeram a crítica do sujeito do feminismo é certamente mais extenso do que aquele aqui mencionado.

[6] FOUCAULT, 1994, p. 180.

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet / décembre 2013  -julho / dezembro 2013