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julho/dezembro 2015 - juillet/décembre 2015

 

As escritoras brasileiras do século XIX:

história e legado de uma pesquisa[1]

 

Constância Lima Duarte (UFMG – CNPq)

Assim, as mulheres não tiveram guarida no nosso cânone literário por critérios outros, que passam por questões de gênero; portanto, um projeto de resgate é antes de tudo um projeto feminista, logo, político. (MUZART, 2004, 24-5)

 

 

Virginia Woolf (1929), ao visitar bibliotecas à procura de obras escritas por mulheres, atribuiu à misoginia o número quase insignificante desta produção. Em seu célebre ensaio concluiu que, para o talento feminino surgir, era preciso ser minimamente independente e instruída, pois a exclusão cultural estava irremediavelmente associada à submissão e dependência econômica.

Mais de um século depois, Diana Taylor (2013), em interessante estudo sobre a memória cultural nas Américas, vem contribuir para o desafio de se rever os escritos de autoria feminina, e reinterpretar os séculos de história literária. A partir dos conceitos de repertório, arquivo e performance, ela explica como a produção do conhecimento é sempre um esforço coletivo e político, com múltiplos resultados.  Arquivo e repertório seriam “fontes de informação memorialística” que “encenam tempos históricos” e permitem que se faça, no presente, debates importantes sobre o passado. Enquanto o saber do repertório é visto como “efêmero”, seja em termos de expressão verbal ou não verbal, e diz respeito à memória dispersa nos gestos, na música, nas narrações orais e outras manifestações; o arquivo representa os documentos, textos e vídeos considerados materiais duradouros, e é responsável por sustentar o poder. Arquivo, do grego: edifício público, espaço onde se guardam os registros. Repertório: inventário, tesouraria. Ora, o gesto de arquivar apenas parte do conhecimento, culmina com o apagamento de outros saberes relacionados ao repertório. As performances, por sua vez, “funcionam como atos de transferência vitais”, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social. (TAYLOR, 2013: 18-50)

Ora, ambas as pensadoras estão corretas em suas conclusões. Apenas uma elite – dentre as mulheres da elite – teve acesso à instrução. E mesmo as que gozavam de independência financeira enfrentaram toda sorte de obstáculos para publicar seus escritos e serem aceitas no mundo masculino das letras. Suas obras eram acolhidas com reserva por parte da crítica, e muitos prefácios confessam o sentimento de insegurança que as dominava, ou a consciência de estar invadindo um espaço proibido.    

Curiosamente – ou não –, só a timidez das nossas mulheres, sua invisibilidade e inércia, ficaram registradas na história nacional.[2] As outras – as exceções –, simplesmente foram alijadas da memória canônica do arquivo oficial. E seu repertório literário, praticamente anarquivado. E foi tão sistemático esse trabalho de alijamento que, quem se aventurasse buscar as que romperam o silêncio, precisou enfrentar a desordem, o vazio, o ‘arquivo do mal’, na arguta expressão de Derrida.

Foi o que um grupo de pesquisadoras, sob a coordenação de Zahidé Lupinacci Muzart, enfrentou, no início dos anos 90, ao abraçar o projeto de resgatar escritoras brasileiras do passado. Como tive o privilégio de participar, estas reflexões são também testemunho do processo. Como pesquisadora fui, segundo Diana Taylor, um ator social. Enfim, era um tempo sem Internet, sem Google, sem Watzap. Nossos contatos se faziam por telefone, por fax, e pelo bom e velho correio... Como trocamos, e como esperamos cartas, pacotes, disquetes! Os acervos das escritoras – quando existiam – estavam dispersos em bibliotecas (que era preciso visitar pessoalmente), ou eram localizados por fragmentos, em jornais carcomidos por traças e pelo descaso oficial. Se buscar a memória cultural em um país que não cultua a memória, não é tarefa fácil, mais ainda quando se trata de recuperar registros de autoria feminina.[3]

Mas, bastou começar a pesquisa e logo fomos todas dominadas pelo “mal de arquivo”, outra expressão de Derrida. E estar com o “mal de arquivo”, segundo ele,

É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. (DERRIDA, 2001: 118-19)

E quando montávamos os nossos puzzles, peças fundamentais, como os livros escritos pelas mulheres, custavam a aparecer. Primeiro descobríamos o título, depois tinha início a batalha por sua localização, autêntico trabalho de arqueologia tão caro à crítica feminista. Nesse momento, todos os recursos eram acionados: desde o contato com sebos e a visita às bibliotecas e instituições – como Casa de Rui Barbosa, Fundação Joaquim Nabuco, Institutos Históricos e Academias de Letras – até o apelo aos conhecidos bibliófilos do país. Que, aliás, sempre foram generosos e nunca nos negaram sua guarita.  

Como disse, a realização de um projeto dessa magnitude só foi possível porque contou com a coordenação séria, firme, carinhosa, e acima de tudo competente da professora Zahidé Muzart. Foi ela a idealizadora do projeto; e a responsável por aglutinar colegas de diferentes instituições, distribuir, ajudar, e cobrar tarefas. Não só nesse momento, mas em sua trajetória profissional, Zahidé foi capaz de juntar a teoria com a prática feminista. Se não temos livros, vamos fazer estes livros. Se não temos quem publique nossos livros, façamos uma editora.

E é o resultado deste projeto que se encontra nos três volumes intitulados Escritoras brasileiras do século XIX, pela Editora Mulheres, de Florianópolis. (Abro um parêntese: com certeza não seria justo atribuir o sucesso da editora apenas à publicação das antologias, pois, desde que surgiu, em 1995, com o propósito de reeditar principalmente antigas escritoras, ela vem recebendo o reconhecimento público por sua decisiva contribuição à cultura nacional. Hoje são algumas centenas de títulos publicados, entre romances, poesias, contos, ensaios, cartas, etc. etc. Apenas afirmo que as antologias contribuíram efetivamente para o fortalecimento da Mulheres no cenário editorial do país. Fecho o parêntese.)

Voltemos às antologias. O primeiro volume veio a público em 1999, com 910 páginas, e cinquenta e duas escritoras oriundas de diferentes regiões do país. O segundo, em 2004, com 1170 páginas, e cinquenta e três autoras. E o terceiro, em 2009, dez anos após o primeiro, com cinquenta e seis escritoras distribuídas em mais de mil e cem páginas. E, como nas anteriores, a maior parte pouquíssima conhecida do público leitor.[4]

Há de tudo nas páginas destas antologias: desde escritoras que nunca foram mencionadas nas histórias literárias, até outras que, apesar da calorosa recepção de ilustres leitores, como Machado de Assis e Olavo Bilac, também desapareceram, excluídas pela historiografia e crítica de perspectiva masculina, que sistematicamente eliminou as mulheres do cenário letrado do país. As informações biobibliográficas, junto com amostras representativas de suas produções literárias, nos permitem afirmar que existiram sim, mulheres atuantes e produtivas em nosso país, ao longo de todo século XIX, e primeiras décadas do XX, cujas obras expressam com vivacidade suas emoções e visão de mundo.

Ao apresentar o primeiro volume da antologia, Nara Araújo, conhecida ensaísta cubana, fez o seguinte registro:

[a obra] não se limita à acumulação cronológica e numérica de textos de 52 autoras, olvidados ou mal lidos, mas chega à etapa superior, a da multiplicação e frutificação, na qual o documento perde a pátina, se livra da poeira e se vivifica ao ser situado e contextualizado. A obra pertence igualmente à tendência de uma crítica feminista interessada no estabelecimento de uma tradição literária escrita por mulheres: uma literatura própria. Porém vai mais além desse propósito, pois, ao mesmo tempo em que contribui para a história da escritura feminina no Brasil, participa da (re) escritura de sua história cultural. (In MUZART: 1999: 14)

A ensaísta chama a atenção para a contribuição que os estudos de cada escritora representavam para a crítica literária feminista, ainda emergente entre nós. A revisão do cânone e do lugar da escritora na história cultural do país devia ser lida, portanto, como uma “contribuição ao desenvolvimento da teoria e da práxis literária feminista em geral”. (in MUZART, 1999, 15)

Sintomaticamente, o primeiro volume inicia com uma escritora baiana que havia publicado, anonimamente, uma interessante obra intitulada As mulheres: um protesto por uma mãe, em Salvador, em 1887[5]. E anônima ela ainda permanece, pois, apesar das muitas investidas neste sentido não foi possível identificá-la. O livro trata de questões fundamentais da vida das mulheres naquele tempo, que aliás, era o da maioria das escritoras estudadas. A valorização das funções reservadas aos homens, o rebaixamento social da mulher, o reduzido mercado de trabalho e a absurda diferença salarial entre homens e mulheres, entre outros, são alguns dos aspectos que ela aborda, citando inúmeros escritores, a maioria europeia e contemporânea. Vejam: independente de ser casada, de dominar línguas estrangeiras, e ter uma formação intelectual aprimorada, ainda assim a escritora não assinou seu trabalho optando por permanecer desconhecida.

Na segunda antologia, Nádia B. Gotlib também observa, no prefácio, a construção de um “novo olhar crítico” e a produção artística diversificada presente no volume. Segundo Nádia,

Examinados em conjunto, [os textos] desenham o perfil da mulher brasileira em luta pela consciência e pela construção de sua própria identidade, ora mais ora menos atrelada a uma linha da tradição, ora mais ora menos compromissada com um campo renovador e, por vezes, desconstrutor de velhos estereótipos redutores. (In MUZART, 2004:. 18)

A recuperação de antigos repertórios – novas memórias –, transformando-os em novos arquivos, se configurava em experiência ímpar, pois nem sempre sabíamos o que seria encontrado quando a pesquisa tinha início. Tornou-se impositivo buscar novos conceitos e instrumentos de análise que tratassem de gênero, história cultural e história das mentalidades, para reconstruir trajetórias de vida e interpretar obras desconhecidas.

Já na antologia de 2009, Simone Schmidt destaca o “alargamento do campo feminista” na crítica brasileira, a partir da publicação das antologias. São suas palavras:

O que de início era visto como ‘moda intelectual’ efêmera, cópia de modelos estrangeiros, e alvo de outros atributos desabonadores da mesma ordem, hoje se afirma como uma área de pesquisa de reconhecida consistência e de invulgar solidez, haja vista o número de publicações,  seminários, congressos sobre temas afins ao feminismo (...). (In MUZART, 2009: 13)

Como disse, estávamos dominadas pelo “mal de arquivo’, dedicadas a restaurar o arquivo justo onde ele parecia escapar, intuir o que está fora da listagem – a ausência da memória. A cada escritora encontrada, outras, muitas outras sucumbiam no silêncio de seu repertório. A censura e a repressão trabalham juntas para destruir o arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido, já havia dito Derrida. Pulsões de morte jogam o arquivo na amnésia, na aniquilação da memória, na erradicação da verdade. (DERRIDA: 2001, 118-19)

Cito dois casos curiosos. Sobre a pernambucana Rita Joana de Sousa (1696-1718), por exemplo, Eliane Vasconcellos levantou uma extensa bibliografia de vinte e um títulos, mas não logrou obter um dado sequer sobre a sua vida. No caso de Maria Josefa Barreto, que nasceu em 1786, ocorreu diferente: ela é citada em inúmeros artigos e verbetes de dicionários biobibliográficos como respeitada poetisa, mas só foi possível, até hoje, localizar um único poema de sua autoria.  Impasses entre arquivo e repertório.

Enfim, são muitas as reflexões que se impõem quando realizamos pesquisas como estas: a primeira ‘escavação’ demanda outra e mais outra e muitas outras e nada pode ser desprezado. Para Compagnon, qualquer documento – uma simples carta, uma pequena nota – pode ser tão importante quanto um poema ou um romance, “quando se busca a apreensão do ato de consciência que representa a escritura como expressão de um querer-dizer”. (COMPAGNON: 2001:45) Os arquivos e repertórios de nossas escritoras ainda demandam mais investigações, até porque a história intelectual da mulher brasileira está por ser escrita.

Ao recuperar parte significativa desta produção e fazer circular novamente seus escritos num legítimo efeito multiplicador, as antologias da Editora Mulheres se configuram, portanto, em um novo arquivo. Basta atentar para as inúmeras teses, dissertações e livros surgidos nos últimos anos, dedicados ao estudo das escritoras, que tiveram as antologias como ponto de partida. Além disso, elas têm propiciado a revisão de conceitos, da historiografia literária e de pressupostos tradicionais da crítica, que está resultando na configuração de uma historiografia feminista, entre outros procedimentos.

Concluo falando mais uma vez da Editora Mulheres. Se, quando surgiu, alguns se espantaram com sua ousadia e acharam que ia fracassar; para muitos (e muitas) a notícia soou como um presente, pois finalmente teríamos – nós também –, uma editora voltada para o mercado feminino e feminista. Finalmente alguém tomava a iniciativa de recolher as contribuições literárias de mulheres e de construir um novo arquivo. A história, sabemos bem, é uma narrativa, que não se faz sem documentos. Se hoje, os nomes de Andradina de Oliveira, Carmen Dolores, Emília Freitas, Júlia Lopes de Almeida, Nísia Floresta, Maria Firmina dos Reis, Maria Benedita Borman, Maria Ribeiro, entre tantos outros, soam assim familiares, isso se deve principalmente ao empenho, à determinação de quem está – esteve – à frente desta editora. Nossa amiga, a sempre querida Zahidé Muzart.

 

Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. 2008. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Trad. José Gradel. Rio de Janeiro: Zahar,. P. 302-03.

COMPAGNON, Antoine. 2001. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG

DERRIDA, Jacques. 2001. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará

MUZART, Zahidé Lupinacci. 1999. (Org.) Escritoras brasileiras do século XIX. Antologia. Florianópolis: Editora Mulheres

MUZART, Zahidé Lupinacci. 2004. (Org.) Escritoras brasileiras do século XIX. Antologia. Vol. II. Florianópolis: Editora Mulheres

MUZART, Zahidé Lupinacci. 2009. (Org.) Escritoras brasileiras do século XIX. Antologia. Vol. III. Florianópolis: Editora Mulheres

TAYLOR, Diana2013.. O arquivo e o repertório. Performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG

WOOLF, Virginia. 1985.Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira


 

Notas

[1] Este texto foi originalmente apresentado durante o III Encontro Luso-Afro-Brasileiro: “As Mulheres e a Imprensa Periódica”, ocorrido na PUCRS, Porto Alegre, em novembro de 2014, numa mesa de homenagem a Zahidé Lupinacci Muzart.

[2] Em 2012, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul lançou o seguinte projeto “Afinal, onde estão as mulheres no APERS? Gênero, memória e história”, com o objetivo de destacar acervos salvaguardados na instituição, que pudessem ser úteis à pesquisa na área de história das mulheres e de gênero. Não tenho notícias do andamento do projeto, mas espero que tenha sido bem sucedido. 

[3] Hoje, em curtíssimo espaço de tempo muita coisa mudou, e fazer pesquisa ficou incrivelmente fácil e confortável. Basta acessar – da própria casa – os acervos das principais bibliotecas do país, e do exterior, que vêm sendo digitalizados numa rapidez espantosa. 

[4] A distribuição das escritoras nos três volumes obedeceu a um critério cronológico. No primeiro, estão as nascidas até 1860, além de 3 do século XVIII. No segundo volume ficaram as que nasceram de 1861 a 1880. E, no terceiro, as nascidas entre 1881 e 1900. O título da coleção foi mantido, apesar de muitas terem publicado nas primeiras décadas do século XX, porque suas obras estavam presas à estética romântica e à realista.

[5] Tenho palpite que o título correto devia ser: Às mulheres: um protesto por uma mãe, com crase.

 

 

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