labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2017- junho 2018 /juillet 2017-juin 2018

 

A vigilância do gênero: socioeducação e seletividade penal

Cecilia Nunes Froemming

 

resumo:

O artigo propõe refletir sobre a vigilância do gênero e a seletividade penal à qual estão expostas as adolescentes em atendimento socioeducativo. Escolhido como objeto de análise os documentos do atendimento socioeducativo, fica explícito a lógica disciplinar que os acompanham. A pedagogia social produzida pelos documentos emerge a tentativa dos agentes do Estado de pacificação dos conflitos sociais por meio da adequação das adolescentes às regras do capitalismo e a subordinação ao gênero, no contexto do Estado patriarcal. A política de política de produção de verdades dos documentos é base para a constante vigilância do gênero feminino. O atendimento socioeducativo transmite ser realizado como controle social seletivo das mulheres pobres, fundamental no sistema de dominação patriarcal do capital.

palavras-chave: SINASE. Adolescentes. Justiça Juvenil.

 

 

introdução

A produção teórica das abordagens de socioeducação e os mecanismos públicos (tanto governamentais como da sociedade civil) invisibilizam as adolescentes. Este não é um fenômeno isolado destes estudos; mas um viés da vida cotidiana das mulheres. O andocentrismo das ciências é acompanhado da não referência, ou melhor, das exclusões raciais e de gênero. No caso do debate teórico da política socioeducativa isto explicíta uma falha, há muito já superada pelas políticas feministas, que compreende estes fatores como não – políticos ou mesmo parte de bases da política pretensamente neutra que trata de fatores como “universalidade”, “igualdade”, “o sujeito dos direitos”.

Distante disto, este artigo parte do olhar de uma feminista sobre as ciências sociais críticas e a política de atendimento socioeducativo destinada a adolescentes, por meio de uma análise documental das que ingressaram no período de dois anos no Distrito Federal pela atribuição do cometimento de tráfico de drogas.[1] Neste texto, utilizo de dois modos de falar: os técnicos sociais serão referenciados em masculino, seguindo o domínio patriarcal da linguagem, visto que são atores do poder patriarcal. Eles movem a engrenagem da questão social em um marco de direitos, sob a ótica punitiva. As adolescentes serão a referência em feminino.

Minha intenção foi analisar os escritos sobre cada uma das adolescentes que emergiram dos laudos, atendimentos técnicos, sentenças e demais relatórios sociais. O foco não é interpretar a ausência de políticas públicas ou serviços no atendimento socioeducativo de privação de liberdade. Também não tive como foco compreender a origem da criminalidade feminina, a delinquência feminina ou do ato infracional na perspectiva da legalidade. Donna Haraway (1995) diz que o conhecimento feminista é sempre um saber localizado.

O conhecimento aqui produzido é localizado em uma feminista pesquisadora que olha o sistema socioeducativo de forma ampla, e compreende que a política de socioeducação como uma política pública deveria proteger as adolescentes, mesmo que – e inclusive por isso – elas tenham cometido algum ato contra a lei.  O que é o tráfico de drogas senão uma forma de economia política ilegal? Assim, entendo que a objetividade desta pesquisa privilegia a contestação e a “esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver” (HARAWAY, 1995).

A materialidade ontológica fictícia do gênero e do sexo, para usar os termos de Judith Butler (1998), implicam, entre outras questões; na abstração do atendimento as adolescentes internas em unidades socioeducativas com tipicidades relativas às mulheres: pinturas rosas, comportamento dócil, limpeza e outras exigências burguesas. Porém, este tipo de vigilância do gênero está vinculado a um projeto de genocídio dos corpos que não importam. Em especial, pobres e negras, mas de modo eminente, às mulheres. 

socioeducação e gênero

Mesmo com um largo repertório de teses que vinculam o encarceramento da população pobre, ou excedente nos termos marxistas (Rosa del Olmo,2004; Loic Wacquant, 2008) e até mesmo a prisão da população negra como estratégia permanente da dominação racial e de classe (Angela Davis, 2003; Vera Malaguti, 2012); estes estudos ainda não tem o mesmo impacto nas análises relativas a socioeducação. Por um lado, uma inferência pode ser relacionada ao forte marco no Brasil do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, promulgado em 1990.

O ECA representa um giro na forma punitiva anteriormente ministrada por meio das políticas menoristas do Código de Menores. Baseado de forma explícita na Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas - ONU, o ECA inova ao alicerçar as bases do SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Mesmo com uma série de controvérsias, o SINASE não é explicitamente parte do direito penal; tendo em seus marcos normativos vínculos com políticas sociais.

O ECA define por ato infracional “a conduta descrita como crime ou contravenção penal” praticada por criança ou adolescente e prevê, em seu artigo 112, a aplicação de seis modalidades de medida socioeducativa: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional (BRASIL, 1990).

Para cada uma, a legislação descreve os marcos por onde deverão ser executados os serviços da política socioeducativa. Quatro das medidas do ECA são executadas em espaços públicos sem privação de liberdade do ou da adolescente: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida.[2] A internação em estabelecimento institucional é de privação de liberdade e a semiliberdade é de restrição, devendo a aplicação de ambas seguir os princípios de brevidade e excepcionalidade.

Compreende-se que para as mulheres nesta sociedade capitalista e patriarcal os impacto dos domínios de precarização da vida são ainda maiores. Das peças documentais analisadas, algumas adolescentes já haviam passado uma parte da infância em situação de rua. Suas famílias já tinham sido atendidas pelo Estado. A mão punitiva do Estado só reconheceu sua (pseudo) cidadania ao captura-las como criminosas. Sendo que há, ainda, a perspectiva social e legal de que o tráfico de drogas é trabalho infantil. Elas não traficantes: são adolescentes envolvidas com a política de guerra às drogas no Brasil. Políticas estas que são espaços de captura da população pobre do país.

A trajetória das adolescentes e seus atendimentos descritos nas peças analisadas podem ser consideras tentativas do Estado de solaparem a sua potência. Isto pois os agentes públicos envolvidos na análise documental sobre a qual trata este artigo envolvem mais de onze (11) profissões nas assinaturas dos documentos e vinte e três (23) unidades de atendimento socioeducativo (dentre todas modalidades de atendimento). As profissões envolvem o sistema de justiça e técnicos que atuam na socioeducação (na maioria, assistentes sociais, pedagogos e psicólogos).  Não há referência de cor/raça ou etnia nos documentos. O que analisei são parte das perguntas descritas pelos operadores de direito/técnicos sociais nos documentos.

Debora Diniz (2015) refere-se a prisão como uma máquina do abandono para mulheres banidas do espaço social.  A tecnologia punitiva do poder da segurança para o controle de corpos e vida das mulheres reflete-se na socioeducação, com ares cruéis de “cuidado”, próprio do campo da política da infância que trata as adolescentes.  Considerando que o tipo penal do tráfico de drogas para estas meninas não possa de comércio ilegal (em ínfimo porte) e exploração do trabalho infantil; fica explícito ao analisarmos as trajetórias que o banimento do espaço social é anterior ao seu ingresso na bandidagem.

Considerando que o tráfico de drogas é trabalho infantil, os documentos analisados referem-se àquelas adolescentes que foram acusadas pelo Estado de envolvimento com este ato infracional. Conforme a “Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação — Convenção 182” da Organização Internacional do Trabalho – OIT; o tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil. Este documento foi ratificado pelo Brasil pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000.

Na trajetória histórica da construção social dos direitos de crianças e adolescentes, talvez o atendimento aos adolescentes infratores seja a parte mais progressista da mudança das políticas públicas pós Constituição Federal 1988. O ECA representa um importante giro na restrição punitiva para um atendimento humanizado, pois reconhece uma política para todos considerando estes como “sujeito de direitos”, e ainda, propõe um sistema específico de atendimento àqueles a quem se atribui a prática de ato infracional. Anterior ao ECA, o Código de Menores tratava o marco legal das políticas públicas de infância destinadas a crianças e adolescentes abandonados e infratores.

Os estudos sobre socioeducação são repletos de análises relativas a desestruturação familiar, a pobreza como fonte de adesão ao crime e a cultura de violência da sociedade. Ou ainda, exaltações aos marcos normativos (ECA/SINASE) como expressão de conquista histórica.

O conjunto de paradigmas da redemocratização que transformou experiências sociais em conquistas políticas não é o retrato da conjuntura política de hoje. A fúria punitiva e a resolução dos problemas pelo encarceramento são explícitas nos dados do sistema socioeducativo e prisional, em especial para o aumento de mulheres encarceradas. O conceito de segurança pública aclamado pelo senso comum que pauta o neoliberalismo refere-se a esta como sinônimo de encarceramento, associado a uma vigilância moral a serviço do capital e do aprofundamento da desigualdade social brasileira. 

As parcas referências ao gênero (e correlatos, como diversidade sexual e/ou direitos sexuais e reprodutivos) que se encontra no vasto arcabouço de marcos normativos nacionais e internacionais o sistema de justiça juvenil são, em sua maioria, biologicistas; ao mesmo tempo em que reconhecem que gênero deve ser uma temática a ser trabalhada com os agentes públicos e transversal ao atendimento socioeducativo. Percebo uma relativa incorporação da transversalidade do gênero nos marcos normativos da política pública no Brasil, em especial a partir da década de 2000; porém o mesmo não se expressa nem é incorporado aos marcos políticos do atendimento socioeducativo.

 De forma ampla, podemos afirmar que os esforços empreendidos para a inclusão de gênero e/ou da equidade entre homens e mulheres pelas agências da ONU em articulação com o governo brasileiro não tiveram eco na nossa política de socioeducação. A existência das menções ao gênero apenas cumprem o papel das menções nos marcos liberais. No modelo liberal, os direitos humanos são vistos por uma perspectiva jusnaturalista, que entende a liberdade (individual) como valor prioritário e imanente aos seres humanos.

Por outra perspectiva, direitos humanos são vistos historicamente condicionados e construídos por uma ética política e social. Na perspectiva liberal, ao Estado cabe apenas reconhecer as liberdades; na perspectiva histórica, o Estado é agente dos instrumentais de igualdade (Berenice Couto, 2002). Lola Aniyar de Castro (2002, p. 122), ao analisar os postulados dos marcos legais dos direitos humanos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, refere-se que as indicações de igualdade apregoadas por questões como a igualdade perante a lei, sem distinção, são na verdade “ideias arquetípicas sem concretização possível” na medida em que a história é a história do massacre dos direitos dos mais fracos.

Portanto, essas orientações perfazem a medida das desigualdades dos marcos legais. A autora afirma que o Estado liberal utiliza diversos caminhos para evitar “direitos de amparo”, que deveriam acompanhar o reconhecimento das desigualdades, resumindo os tratados de direitos humanos restritos a direitos políticos e de proteção à liberdade (CASTRO, 2002).

Com isso, Lola de Castro (2002) afirma que o modelo liberal burguês sobre o qual se assentam as legislações de direitos humanos é meramente simbólico, visto que incompatíveis com o Estado liberal. Dessa forma, não há uma crise do Estado de direito, ou sua desfiguração. Ele é irrealizável. A proteção dos direitos humanos só faz sentido em sistema articulada especialmente aos direitos sociais. Portanto, ao verificar a desigualdade entre a dimensão normativa e efetiva do direito, a autora afirma que a desproteção institucional dos direitos sociais demonstra que não há direitos iguais para todos (CASTRO, 2002).

Mesmo com todo avanço, ainda persiste uma espécie de cegueira penal relativa ao atendimento socioeducativo, que mascara as práticas e metodologias e cortina a desigualdade social. Em outras palavras, nós mesmas, as técnicas que atuam na socioeducação em seus diferentes âmbitos, contribuímos para a punição vazia. Nossa prática importa para o debate, ainda mais quando se trata de gênero. Ao não pensar a perspectiva de gênero no atendimento; o resultado não é só invisibilidade; mas uma invisibilidade perversa. 

Há uma série de justificativas para o não olhar sobre o gênero: em especial, o número relativamente baixo de adolescentes que estão no sistema socioeducativo cumprindo medida de privação de liberdade. Outro ponto desta invisibilidade é o androcentrismo das ciências, em especial humanas. Há uma tendência universal de reduzir a raça humana aos “homens” e isto não é só um efeito de linguagem. Há  uma necessidade epistemológica de aproximação com o conhecimento feminista. Para Debora Diniz, “o feminismo é um entortador de torres do pensamento e do poder” (2014: p.49), sendo uma forma de ver e mover-se no mundo.

O feminismo é uma ferramenta poderosa na provocação dos regimes de poder, e na coragem de afirmar que a sexagem não é o destino da existência. Para ela, o “feminismo é, portanto, um conjunto de modos de ver e mover-se para resistir e enfrentar o poder patriarcal” (2014, p. 51). São formas de olhar o mundo e compreender os efeitos do patriarcado. De acordo com Sandra Harding (1993), utilizamos certos elementos dos sistemas teóricos clássicos para tratar de nossos temas, mas eles são insuficientes como categorias explicativas quando pensamos em tornar visíveis as vidas das mulheres e a visão feminista das relações de gênero (HARDING, 1993). 

 

Condicionantes da Seletividade Penal ou Quando as condições de criminalização são pobreza e gênero 

As experiências sociais de adolescentes em atendimento socioeducativo explicitam que a pobreza e o patriarcado são parte dos condicionantes de seletividade penal. Elas apresentam todas as características que as envolvem em um sistema penal punitivo, considerando que a seletividade penal é a expressa pelas condições de incriminação da população em níveis informais e formais (LOLA CASTRO, 2015). Nessa seara, a criminalização deriva apenas das condições de incriminação e é seletiva, uma vez em que os processos de criminalização informais são os que geram as condições de criminalização.

Os condicionantes da seletividade penal, para Lola Castro (2002) são exemplificados como: estigmatização dos níveis escolares, divisão da população pela sua classe social em conformistas e desviados por meio de estereótipos, distribuição desigual de oportunidades de acesso a educação, cultura, trabalho e bens disponíveis. Os filtros de seletividade podem ser exemplificados como, em nível formal: tarefas legislativas da incriminação (mecanismos de detenção, denúncia, acusação, sentença e execução penal); e em nível informal: processo de criminalização das condutas e de indivíduos; que configura-se em um sistema penal subterrâneo a serviço do sistema penal punitivo.

No percurso punitivo ao qual as adolescentes estão expostas pelo Estado penal; algumas questões apontadas por Lola de Castro (2012) são aparentes. Para a autora, no sistema penal subterrâneo há a criminalização primária exercida por meio do estereótipo do delinquente; a manutenção da marginalidade social por meio da falta de acesso a direitos individuais e sociais; bem como a operabilidade do controle policial em que é violada a presunção da inocência, sendo os negros e jovens o objeto principal das “batidas”.

Lola de Castro (2012) chama a atenção para o fato de que não é a condição grupal que determina a seletividade, considerando que isto não aconteceria se as pessoas pertencessem às elites. O controle social, para Castro, significa:

“ [...] predisposições de táticas, estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles que não se integram à ideologia dominante”.  (Castro, 1990 :22)

Destaco o que a autora chama de procedimentos diferenciados para as classes subalternas, que, embora proibidos pelo sistema penal aparente, são realizados, tais como: violações de domicílio, violências policiais, execução penal à margem dos direitos humanos, carência de condições dignas de vida, de acesso à informação, atividades culturais e esportivas; entre outros. Foram ressaltados apenas os procedimentos que foram perceptíveis na pesquisa ora apresentada. Ou seja: aqueles aos quais as adolescentes que passam pelo percurso punitivo do SINASE estão expostas.

No contexto específico das quarenta e uma (41) adolescentes que ingressarem no sistema socioeducativo do Distrito Federal sob acusação de tráfico de drogas, no período entre 2014 e 2016; alguns dados destacam a seletividade penal. Todas foram atendidas mais de uma vez, ou seja, tem mais de uma atribuição de cometimento de tráfico de drogas neste período. Entre as que completaram 18 anos neste período, os documentos apontam que duas estão reclusas em presídio feminino. Dentre elas, trinta (30) não estudavam, ou seja: apenas onze (11) estavam matriculadas na escola.

Mesmo com grandes variações, a maioria mora com mulheres: mães, tias, avós. Em três situações as adolescentes moram com o pai, porém: uma cuidadora é a avó, em a irmã mais velha e em outra o pai relata que não tem tempo para a filha (segundo a sentença judicial). Treze (13) adolescentes tinham familiares presos ou na internação socioeducativa e três (3) tinham irmãos/ãs em acolhimento institucional. Oito (8) estavam em situação de rua ou moravam sozinhas em ocupações com condições precárias. A renda de dezenove (19) adolescentes é ignorada, sendo esta a categoria para adolescentes cujo grupo familiar não tem renda (FROEMMING, 2016).

Isso demonstra que todas as variáveis sociodemográficas apresentam fatores que podem ser determinantes para a criminalização, bem como são relativos à estrutura patriarcal da sociedade. As adolescentes atendidas pelo Estado penal são mulheres em uma ordem de poder patriarcal e são adolescentes abjetas. Seu envolvimento com o tráfico de drogas deveria ser avaliado a partir da inclusão precária no mundo do trabalho, visto que é uma das piores formas de trabalho infantil. Ao invés disto, o Estado penal atua na gestão da precarização da vida e da legitimação da desigualdade social, pois o tráfico de drogas expressa a punição como domínio permanente da vida das mulheres pobres.

O tráfico de drogas tem especificidades: em primeiro lugar, precisamos incorporar que é uma economia política, mesmo que ilegal. E que é uma das piores formas de trabalho infantil. E que sendo mulheres, elas são ainda mais exploradas neste campo.  A geografia da vida delas, o território que elas habitam, nos trazem intersecções importantes.

São vidas marcadas pelo abandono e que ainda são punidas pelo Estado. Seus familiares têm envolvimento penal e infracional. Suas trajetórias, desde a primeira infância, têm momentos de situação de rua ou de abrigo em instituições sociais. A trajetória escolar já estava interrompida antes da medida de internação, há relatos de uso abusivo de substancias psicoativas e de violência intrafamiliar. Muitas delas trazem matizes da institucionalização.

O território, enquanto o uso do espaço público, é a periferia das grandes cidades.  A “fábrica” do problema que justifica e reitera a produção do castigo que acompanha desde muito cedo as meninas que não são capazes de introjetar regras de bom comportamento. 

O envolvimento com o tráfico de drogas é uma expressão da centralidade ontológica do trabalho na vida humana; mesmo que a margem da legalidade da economia política neoliberal. Esta é a forma encontrada pelas meninas de pertencer ao capitalismo marginalmente, na qual esta dinâmica econômica – política de gestão da vida apresenta uma série de faces perversas. Nesse sentido, as jovens mulheres abjetas, saídas ou não da socioeducação, são sujeitas a prisão. Ainda considerando que o patriarcado é a tecnologia do gênero no trato às mulheres, a vigilância reside sobre as mulheres delinquentes.

Segundo Judith Butler (2010), a precariedade da vida é uma condição compartilhada em todas as existências sociais. Porém, há mais níveis diferentes de riscos sociais alocadas em intersecções como raça, classe, território. A precariedade é inerente a vida humana, mas seu reconhecimento é construído politicamente: alguns enquadramentos políticos estão mais suscetíveis a necessitar de políticas para escapar da condição precária. No caso das mulheres, são inúmeras questões que precarizam nossas vidas: somos mais expostas aos crimes de ódio, a desigualdade salarial, entre outras tantas questões.

A precariedade da vida não exclui as meninas do pertencimento social. Ainda há prerrogativas de cidadania, mesmo que escassas. Aqui, novamente destaco que a maioria das quarenta e uma (41) adolescentes que foram envolvidas no tráfico de drogas tem relatos na sua análise documental de atendimento por instituições sociais anteriores ao cometimento de ato infracional.  Portanto, elas passam de meninas atendidas pelo Estado a símbolos de periculosidade e delinquência por sua relação de trabalho precarizado na economia ilegal do tráfico de drogas.

Vinculada a ideia de precariedade da vida, compreendo que existe um caráter formal dos direitos e a negação dos mesmos para certas populações. Mesmo que haja discriminação concreta com juventude habitante das periferias, os direitos inscritos constitucionalmente e não reconhecidos num regime de governabilidade democrático é negação do direito, e não uma barreira abstrata.

A gestão da vida nas periferias é acompanhada de uma série de controles às populações, em especial a interpelações por raça/etnia e classe, tornando-as objetos de desqualificação e facilitando o ingresso em atividades ilegais. As barreiras de discriminação policial, judiciária, de escola e trabalho são dinâmicas de ilegitimidade política e neutralização social. 

a vigilância do gênero e a precariedade da vida

A aplicabilidade das medidas socioeducativas é diretamente relacionada a quem são estas adolescentes. Como analisei, os pressupostos da socioeducação mantém correlações com tendências humanistas, porém a análise documental demonstra que elas são julgadas para além do ato infracional. Os procedimentos de responsabilidade do Estado são expressos pela atuação técnica dos agentes judiciários e da socioeducação; que demonstram que o Estado é punitivo para as meninas que estão na economia política ilegal do tráfico de drogas. A atribuição da periculosidade é o recurso de legitimidade utilizado para a violência de Estado na punição.

Uma das reflexões centrais é relativa à pedagogia social produzida pelos documentos: emerge dali a busca pela pacificação dos conflitos sociais por meio da adequação destas meninas às regras mínimas do capitalismo: trabalhe (de qualquer forma), tenha uma família estruturada e não se envolva em conflitos com a lei. Em última análise, quem são as usuárias desta política: meninas pobres. E sua rede de apoio é composta por mulheres: mães, avós, tias e amigas das famílias; que são as cuidadoras; ou são aquelas a quem o estado culpabiliza pela falta de cuidados.

No regime de precarização da vida, elas todas estão no mesmo lugar: aquele das vulnerabilidades sociais. Esse lugar é analisado pelos técnicos de humanidades pelo viés familista: os relatos das composições socioeconômicas quase sempre vêm acompanhadas de atribuições da família como o espaço em potencial do fracasso, ou do sucesso.  Nomeei como “vigilância do gênero” os aspectos que tratam da trajetória familiar e do controle sobre os comportamentos das adolescentes.

O primeiro aspecto, da centralidade da família aparece nos documentos de forma ampla: ora chamando à responsabilização as famílias cujas adolescentes já não moravam com as mesmas; e uma extensa atribuição das mães pelo ingresso na seara infracional, ora pela falta de controle e autoridade; ora pela falta de cuidados necessários ao bom desenvolvimento. Há diversas orientações “a genitora quanto à importância de impor limites aos filhos”. Mesmo em documentos que expressam as questões estruturais do envolvimento com o ato infracional; há repetições da ausência de acompanhamento por parte dos genitores.

A ruptura familiar pela separação dos genitores ou desconhecimento da identidade paterna; bem como o uso do termo famílias desestruturas são parte dos documentos. A face perversa da chamada “centralidade da família”, parte das premissas de políticas públicas em especial da Assistência Social; é um recorrente familismo ao qual culpabiliza as mesmas pelas condições sociais de seus membros.  Considerando o patriarcado como a tecnologia do gênero no trato às mulheres; a política pública é mais um vetor de dominação e exploração das mulheres.

Essa tendência familista, herança do modelo de políticas sociais do Estado de Bem-Estar Social, é redefinida a partir do século XIX como um reforço também para as desigualdades de gênero, na medida em que a mulher é a responsável pelo núcleo familiar. Nesta pesquisa, mesmo no caso daquelas adolescentes que já não moravam mais com suas famílias, essas eram chamadas à responsabilização. Aqui, são atribuídas às mães, em muitos momentos, o ingresso na seara infracional, ora pela falta de controle e autoridade, ora pela falta de cuidados necessários ao bom desenvolvimento.  

Ainda, em diversos documentos existe a ligação do cenário do contexto familiar com a prática do ato infracional. Em vários deles, a isso é atribuída a falta de autoridade da mãe; como no exemplo deste relatório:

“[...] (nome da adolescente) demonstrou estar fortemente implicada com o uso de substâncias entorpecentes, com um círculo de amizades que não influenciam de forma positiva, laços familiares fragilizados, além da falta de autoridade e comando por parte da genitora. Tal cenário corrobora para aprofundar seu envolvimento com a prática de atos infracionais” (atendimento inicial nº 29; FROEMMING, 2016. P. 141)

Contextos que expressavam o afastamento da escola também referiam-se a falta de cuidados das mães. Relato o indicativo dos técnicos ao judiciário após uma visita familiar:

“Encontra-se em situação de descumprimento. Sugerimos que à adolescente seja aplicada a medida de advertência. Outrossim, sugerimos que a genitora seja advertida em Juízo acerca de suas obrigações em relação à adolescente, uma vez que a aparente complacência apresentada que corrobora para a exposição da adolescente à situações de risco e vulnerabilidade (relatório informativo “ nº 09” FROEMMING, 2016, p. 142).

Os documentos expressam várias vezes o termo “comportamento”, que é acompanhado de algum adjetivo sobre o mesmo, sempre vinculado ao controle. Este controle, parte da vigilância do gênero, abarca questões como “hábitos pessoais de higiene” e expressões tais como “bom comportamento”.  Este termo é utilizado para expressar as orientações de convívio com a família e/ou amizades adequadas; bem como para citar a forma de agir em atividades com profissionais. Há a expressividade de que o envolvimento com más influências como objeto de avaliação do ingresso e da possível continuidade em atos infracionais. As meninas são codificadas nos documentos com afirmações de serem influenciáveis, que podem ser levadas a novo ato infracional, caso mantenham certas amizades. Nos relatos com conversas familiares, há uma série de apontamento da evolução de um comportamento incontrolável para um bom comportamento.

A peça documental nº 34 apresenta um “Termo de Declaração”, cujo conteúdo é transcrito integralmente a seguir. 

“Termo de declaração que presta a adolescente (nome da adolescente), nascida em (data), filho de (nome da mãe), alojado no quarto (número), do Modulo (número), desta unidade. Ao (data), neste Distrito Federal e na sede da (nome da unidade), perante a (nome do técnico social), presente a adolescente (nome da adolescente), perguntada da situação ocorrida no dia, respondeu QUE quem lhe passou o livro Cinquenta Tons de Cinza foi a adolescente (nome da adolescente), QUE estava lendo o livro, QUE sabia que o livro era proibido,  QUE (nome da adolescente) lhe passou o livro ontem, QUE não sabe quando (nome da adolescente) recebeu o livro, QUE (nome da adolescente) deve saber quem entregou o livro, QUE sabe quem foi, QUE nada mais foi dito ou perguntado, em consequência é encerrado o presente termo, o qual, depois de lido e achado conforme, segue devidamente assinado.” (DCA, nº 34 – FROEMMING, 2016, p. 130).

Esse curioso termo não acompanha outro documento que possa explicar o que motivou sua elaboração. Porém, podemos imaginar que existam livros proibidos para serem lidos, como ali está escrito. 

Um instrumento pedagógico que demonstrou importância nos relatórios foi a “ocorrência”. Na literatura socioeducativa, não há menção sobre seu papel, ou mesmo seu uso. Desta forma, utilizo aqui o sentido da pedagogia escolar ao uso de “livros de ocorrências”; em especial na dimensão adquirida na pesquisa de Ana Lúcia Silva Ratto (2007). Segundo ela, são instrumentos de registro de problemas disciplinares enfrentados no cotidiano escolar.

Os mesmos podem adquirir várias formas, inclusive tendo registros de medição de gravidade da falta cometida. Ela registra que os livros de ocorrência compõem “uma problemática delicada diante dos discursos humanizantes, emancipadores ou democratizantes que permeiam o campo educacional” (RATTO, 2007, p. 21), ao mesmo tempo que são vistos como um “mal necessário” a que as autoridades recorrem para assegurar a sobrevivência cotidiana na instituição.[3]

A intenção de trazê-los aqui é visibilizar quais aspectos pedagógicos enfatizam. Do ponto de vista da disciplina cotidiana, que serve para assegurar a convivência institucional, visto que todas as ocorrências mencionadas foram elaboradas no contexto da restrição ou privação de liberdade, compreendo que as normas devem ser estabelecidas e cumpridas para a convivência. Porém, na medida em que eles explicitam que há livros proibidos, roupas proibidas, uso de pomada ginecológica proibida, ou que o doce não pode ser comido antes do jantar, fica explícito o entendimento de disciplina punitiva na escrita dos mesmos.

Não há nos documentos espaço relativo a orientação sexual das adolescentes, assim como não há nenhuma expressão de vivências ou práticas sexuais; a não ser nas relatadas situações de namorados ou do companheiro. Esta não parece ser uma dimensão avaliativa para compor a identificação das meninas. A heteronormatividade que acompanha os processos de vigilância do gênero pode ser uma das possíveis razões para que esta não seja uma dimensão de composição dos relatórios. Outra dimensão que chama atenção é sobre direitos sexuais e reprodutivos; pois há uma redução do atendimento à saúde em descrição do uso de drogas e da atividade sexual das adolescentes.

A permanência de estereótipos pode ser observada nos documentos que citam a presença ou a necessidade de figuras masculinas na vida das adolescentes, como fator de proteção e limites.  

Ao mesmo tempo em que os documentos elaborados pelos técnicos sociais apontam descrições carregadas de juízos de valor, eles se eximem dos encaminhamentos relativos a medida socioeducativa, como sugestão pelo encerramento da medida ou mesmo de progressão para medida alternativa a privação de liberdade.

Mesmo que as expressões de controle/comportamento (e limites) tenham sido citadas em contextos que expressam mudança de trajetória de vida das adolescentes; o que parece indicar é uma neutralização da autonomia em prol daquilo que lhes é sugerido como norma. Além de compreender que as adolescentes são incapazes, no sentido de organizar suas vidas; ainda restringe o trabalho técnico a apontamentos morais. A descrição do atendimento técnico demonstra que a relação estabelecida segue o binômio obediência – desobediência.

A responsabilidade pelo ato infracional parece ser revelada pela atribuição de bom comportamento, o que se restringe a qualidade de sujeito das meninas. Ainda há uma forte tendência em considerar a responsabilização em uma relação intrínseca com culpabilização, sendo esta emergida dos documentos técnicos em duas especificidades: a culpabilização da conduta das adolescentes e a do engajamento das mães no atendimento socioeducativo e na vida das meninas.

Por fim, devemos nos lembrar que é o patriarcado, enquanto tecnologia do regime político do gênero (DINIZ, 2014); quem organiza as políticas. E por políticas, para além da concretude dos serviços estatais, entendo também os saberes profissionais que sustentam a reificação cotidiana das nossas práticas. A sociedade do controle e da vigilância do gênero não está fora de nós, ou no outro: a prática reificada é cotidiana e está no todo. Os regimes de verdade são construções, binárias, apostando que o mal está no outro. Nosso conceito daquilo que é humano também é uma construção: mesmo que com acordo comum entre militantes de direitos humanos, a abjeção que sofrem estas meninas não pode ser descartada.

O que os documentos analisados me mostraram foi uma máquina de produção de verdades punitivas. Os dispositivos de poder estão escritos ali, documentados: a narrativa nos mostra um arquivo disciplinar com elementos da vigilância do gênero que exigem no comportamento social das adolescentes atitudes típicas da abstração burguesa e performática do gênero para as mulheres; desconectadas totalmente das intersecções com os motivos de abandono que as levaram ali; e ainda sem instâncias concretas de construção de novos projetos de vida.

Os documentos da socioeducação poderiam ser testemunhos de resistência e não uma continuidade do poder disciplinar. Senão, realizamos um dobramento do poder judiciário que tanto criticamos.  Pactuo com a ideia de instituição de sequestro de Michel Foucault (1978) na medida em que isolamos e segregamos ainda mais meninas que já estão em privação de liberdade por meio de nossas chamadas ocorrências. Mecanismos disciplinares já provaram historicamente não são a melhor forma de responsabilização, e os marcos legais da socioeducação já superaram isto ao instituir o SINASE. Resistência e insubordinação são ações que não deveriam ser punidas por sanções disciplinares.

A mudança normativa em torno das práticas correcionais repressivas para o modelo pedagógico do SINASE não acompanha as peças analisadas. Em larga medida, sugere-se que os paradigmas institucionais dos programas de atendimento acompanham as práticas correcionais menoristas, indicando por meio dos documentos produzidos que o atendimento prestado gira em torno da busca pela melhoria do comportamento individual da infratora, com o apoio de sua família, cujas bases são a busca pela ressocialização e a reeducação das meninas para a vida em sociedade. A seletividade da socioeducação é sobre pessoas concretas, cujas vidas são marcadas pela precariedade e estão submetidas ao acaso da existência. 

O que se analisou são séries de encaminhamentos superficiais e repetidos, sem consideração aos contextos políticos e sociais de relações de dependência e vinculação de cada uma das meninas. O corpus de análise também deixa explícita a heteronomia das adolescentes sobre suas vidas, que, em última análise, representa alienação sobre seus corpos. A tutela do Estado abrange o poder familiar na figura da autoridade sobre as mulheres: a análise dos atendimentos dos técnicos sociais é sobre a capacidade de limites impostos pelas mães, cuja responsabilidade se estende a outras mulheres da rede de cuidados, como avós, tias ou irmãs. 

Há um paralelo entre ações de políticas sociais públicas e um modelo político criminal tutelar de direitos humanos para adolescentes que cometem atos infracionais expresso pelo SINASE. Este demonstra no plano discursivo a abordagem do discurso da modernidade sobre direitos humanos como direitos e garantias das pessoas. E no plano da instrumentalidade, a incorporação de ferramentas garantistas que proporcionam os mecanismos necessários para propiciar ações de garantias de direitos, em especial pela defesa técnica expressa pelas normativas e presunção da inocência.

Porém, ao traçarmos um diagnóstico do atendimento por meio do que movimenta o modelo da burocracia de direitos, desnuda-se a distância entre a norma e as condições de respostas das políticas sociais à precariedade da vida das adolescentes atendidas.

potência da vida - conclusão

A falácia do Estado de direito instituído pela Constituição Federal de 1988 mostra-se em duas faces complementares: em primeiro lugar, na insuficiência ou mesmo inexistência da rede socioassistencial do sistema de garantia de direitos; e, em segundo lugar, mas não menos central e importante nas descrições dos atendimentos de todos os profissionais e instâncias da medida socioeducativa. Isso pode ser considerado um ponto adequado ao Estado liberal, no qual as garantias de cidadania são expressas normativamente, mas ao qual sua demonstração de ação de política social é apenas a responsabilidade individual dos sujeitos.

Numa matriz patriarcal, a responsabilidade das jovens sobre o sucesso de suas vidas está em grande medida aliada aos seus vínculos geracionais e relações interpessoais, ou seja, uma menina não pode andar com outras meninas de sua geografia de vida. Em muitas peças, alia-se às orientações socioeducacionais a necessidade de afastamento das jovens de seus namorados ou amigas, a quem é atribuído o envolvimento infracional.

A esfera de proteção estatal acerca dos direitos sociais é vinculada ao Estado Social, portanto, os processos de reconhecimento de direitos coletivos e difusos são diversos da matriz liberal e neoliberal em voga. Neste sentido, a efetivação de políticas sociais públicas pressupõe investimentos que o Estado liberal não comporta. Soma-se a isso a profunda valoração das práticas punitivas destinadas ao crime em nossa sociedade.

Por fim, cabe salientar que a administração do SINASE, para fugir do modelo único menorista das Febem, passa para a descaraterização da responsabilidade sobre adolescente e a (contínua) legitimação do poder punitivo sobre a vida. Mas este poder não é o único: a expansão dos direitos humanos teve consequências político-criminais, e o SINASE está à mercê de grandes agências de punitividade: legislativas, judiciárias, executivas e da ordem policial da vida. A noção de direitos humanos universais, tais como estabelecidas pelo ECA, pode ser percebida também como perversa no contexto brasileiro de desigualdades sociais.

Um dos eixos possíveis do debate do que leva cada uma de nós a assumir papéis na cadeia cotidiana da punição social deve passar pela visibilidade das sutilezas das operações e armadilhas do capital no engendramento das estruturas punitivas que perpetuam desigualdades. Se nosso trabalho social resulta na produção de efeitos de encarceramento e culpabilidade, visíveis ou não, temos de pensar nos efeitos do exercício do poder dos relatórios sociais e peças documentais.

A função ressocializadora da medida socioeducativa parece passar pelo entendimento do ato infracional na perspectiva do tratamento de uma sujeita individual, desconectada das suas condições objetivas de vida. Os conflitos sociais são reduzidos a ajustes e desajustes familiares ou de condutas. O atendimento prestado pelo conjunto de redes da política de socioeducação, tanto executiva como judiciária, é retrogrado e não condiz com as perspectivas sociológicas definidas pela maioria das profissões envolvidas (Direito, Serviço Social, Psicologia, Pedagogia).

A partir de seus agentes, é desenvolvida uma larga trama de desresponsabilização do Estado pela situação social das meninas. A dimensão institucional é compreendida como uma totalidade, coberta por contradições e alienações. Ela produz subjetividades no controle, como as prescrições de higiene e da moral, que comprovam a tentativa de domínio biopolítico do corpo das mulheres vigiadas.  

A tentativa de compreender a lógica disciplinar nas descrições das ocorrências e na produção de comportamentos, bem como na punição das descrições das adolescentes, demonstrou a ótica moralista por meio das quais as adolescentes são descritas – o que exalta a política de produção de verdades que é base para a constante vigilância do gênero das mulheres. Aquilo que é escrito tem relações com o estabelecimento das regras, papéis e valores sociais; e nas narrativas sobre as vidas das meninas a descrição técnica (de todos e todas profissionais de humanidades) é feita em relação com os regimes de verdade.

Além disso, o discurso tem efeito sobre identidades, sendo expresso pela narrativa das situações, em especial as que tratam de sexualidade, família, escola; enfim; as instituições sociais que são dimensões da vida cotidiana, mas que para muitas destas meninas são também dimensões de violência pelo abandono e pela precariedade da vida. Elas sofrem as consequências desse abandono sendo punidas pelo atendimento socioeducativo. 

Os processos penais são um ato do Estado contra os sujeitos: desta forma, a economia política da pena voltada ás meninas é uma projeção genocida desta população parte do ciclo econômico da periferia do capitalismo. Essas meninas são posse do patriarcado, cujas vidas desde cedo marcadas. Nossa prática poderia elevar a potência e a autonomia das meninas. Mas são marcadas por suspeição, desconfiança e a ideia da culpa da adolescente.

O crescimento do encarceramento como tática de Estado não é uma falha da socioeducação, assim como os constantes pedidos de aumento do tempo de internação e da redução da idade penal. A socioeducação é uma instância analisada sempre pelo que lhe faz falta e raramente pelo que produz e faz funcionar. É importante também lembrar que a violência é produzida por uma sociedade extremamente escolarizada. Há uma série de relatos de judicialização de conflitos cotidianos no interior de unidades socioeducativas que produzem casos para o sistema penal. Assim como há relatos do uso de cumprimento de medidas socioeducativas como antecedente penal.

Os efeitos das escritas disciplinares nos documentos da socioeducação não são visíveis, mas produzem posições de sujeito, criando subjetividades vinculadas a conceitos como desestruturadas e delinquentes. Analisar a documentação das adolescentes não visa denunciar os trabalhos dos técnicos sociais ou mesmo em busca de veredictos diferentes das sentenças. O nível de exigência para os técnicos sociais não proporciona o espaço de reflexão necessária para outro tipo de resposta. Apenas deixa espaço para a satisfação do punitivismo social, muitas vezes apoiado em julgamentos de transgressões morais.

A prática reificada elimina o espaço da arte, da criatividade e naturaliza a vida em suas regularidades de adesão ao instituído. O medo da ruptura tem origem no medo à desordem. Mas a desordem também é resistência. É possível rever a máquina que produz abandono. Não se trata de pensar um novo sistema, mas de defender a radicalidade da proteção social considerando a centralidade do gênero e da classe.

Nota biográfica:


Cecilia Nunes Froemming - Assistente Social graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Mestra em Serviço Social pela PUCRS. Doutora em Política Social pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília- UnB. Pós Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UnB. Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Tocantins – UFT. Coordenadora do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE do Ministério de Direitos Humanos – MDH. As pesquisas que atua abordam os seguintes temas: direitos humanos, encarceramento feminino e política de drogas, estado penal, feminismo e socioeducação. E-mail para contato: ceciliafroemming@gmail.com . 

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[1] O artigo apresentado pauta-se nos resultados da pesquisa intitulada “Da seletividade penal ao percurso punitivo: a precariedade da vida das adolescentes em atendimento socioeducativo”. Esta pesquisa originou a tese defendida no Programa de Pós Graduação em Política Social da Universidade de Brasília – UnB; em Setembro de 2016; sob orientação da Profa. Dra. Debora Diniz. Foram consultados duzentos e noventa e sete (297) documentos relativos ao percurso no sistema socioeducativo do Distrito Federal de quarenta e uma (41) adolescentes, com idades entre 12 e 18 anos, que tiveram passagens por tráfico de drogas entre 2014 e 2016.

[2] A advertência e a obrigação de reparar o dano são medidas impostas pelos juízes na sentença, não constituindo serviços que necessitam de outros agentes públicos para sua execução.

[3] Recorri a pesquisas nos cadernos de orientação de aplicação da medida dos seguintes sistemas socioeducativos: DEGASE (Rio de Janeiro), FASE (Rio grande do Sul), FUNDAC (Bahia), Fundação Casa (São Paulo), SUBSIS (Distrito Federal) e não encontrei tal orientação de elaboração de ocorrências. Nas visitas que realizei aos sistemas estaduais socioeducativos, os livros de ocorrências são utilizados no âmbito da segurança; para registrar os comportamentos dos adolescentes de um plantão para outro; ou ainda resguardar as possíveis acusações de tortura ou maus tratos que os/as agentes socioeducativos possam ter. Não imaginava a dimensão das ocorrências como atributo do trabalho pedagógico, principalmente sendo matéria anexa aos relatórios; peças de avaliação de progressão ou extinção de medida pelo poder judiciário.  

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/ 2017- junho 2018 /juillet 2017-juin 2018