Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003

Pedagogias do corpo 1


Carmen Lúcia Soares

Resumo:
A educação do corpo é intermediada por múltiplos saberes e práticas que vão da higiene às boas maneiras, dos banhos como limpeza às inúmeras pedagogias que trabalham no adestramento e na modelagem dos corpos. Este texto propõe-se a discutir alguns aspectos desta educação.
Palavras-chave: corpo, educação, educação do corpo

 

Uma pergunta inicial poderia ser colocada como ponto de partida para a escritura deste texto: como mulheres e homens se tornam“educados” e passam a tratar-se com “boas maneiras” ? (Ribeiro, 1994 :9) Pode-se inferir que isto não ocorreu de imediato e que foi necessário um lento, intenso, extenso, meticuloso e obstinado trabalho de constrangimento do corpo para que isto ocorresse. Foi preciso considerar inadequado satisfazer as necessidades fisiológicas em qualquer lugar, hora e em público. Não é demasiado lembrar que até há três séculos e ainda até os dias de hoje, em muitas culturas, ou mesmo em grupos e classes sociais distintas, (Gonçalves, 2002) pessoas não tem qualquer pudor em satisfazer as suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar e diante de outros.

Arrotar, escarrar, urinar e defecar em qualquer lugar e hora não foram sempre consideradas ações que expressam comportamentos não civilizados e próprios de pessoas “mal educadas”. A cultura material é pródiga em objetos requintados destinados a essas funções orgânicas, como escarradeiras e penicos de porcelana, prata e outros materiais nobres. Havia um certa “naturalidade” nessas ações, mais tarde combatidas e tornadas restritas ao âmbito não só do privado, mas do individual (Elias, 1994, vol. 1).

Os usos do elemento água também atestam transformações de costumes e se colam à educação do corpo.“Impossível retroceder às origens dos elos entre a água e o corpo humano. Na biologia e no imaginário, a água constitui os corpos, assim como ela se confunde com a essência da vida” (Sant’Anna, 2002a :100). Seu uso como elemento fundamental de higiene, por exemplo, nem sempre teve esta finalidade aparentemente única e universal. Um longo percurso foi percorrido para que a água se tornasse este elemento central destinado à limpeza do corpo, uma limpeza que, por muito tempo, e ainda hoje, em diferentes culturas e grupos sociais, é feita “a seco”.

Muito mais do que a higiene, os usos da água, na longa duração, revelam os divertimentos do corpo, as preliminares amorosas, os jogos eróticos e o próprio trabalho. Banhos públicos e mistos, lugares onde se misturavam os corpos e os sexos, por muito tempo, foram uma prática comum. (Vigarello, 1985). Simultânea ou seqüencialmente a essa prática, pode-se fazer referência aos banhos terapêuticos nas águas do mar, dos rios ou das termas, sem esquecer que a água foi e ainda é lugar de trabalho, e sua aceitação generalizada como lugar de divertimento é recente. (Corbin, 1989 e 1995; Hasse, 1999) “Importante testemunho do corpo, a água se presta aos mais íntimos e desclassificados serviços e, ao mesmo tempo, aos mais abençoados e higiênicos atos (Sant’Anna, 2002a :100)

A educação do corpo, portanto, percorre caminhos múltiplos e elabora práticas contraditórias, ambíguas e tensas. Prescreve, dita, aplica fórmulas e formas de contenção tanto de necessidades fisiológicas, contrariando, assim, a “natureza”, quanto de velhos desejos. É onipresente e manifesta-se em tudo o que envolve indivíduos, grupos e classes. São distintos atos de conhecimento e não apenas a palavra o que constitui esta educação diuturna e intermitente. Vejamos alguns aspectos de seus aspectos.

O corpo é educado pelas roupas que são escolhidas, por exemplo, para meninos e meninas; desde cedo, as crianças do sexo feminino são constrangidas, corporalmente, pela moda (Sant’Anna, 1994), pelas pequenas torturas que devem aprender a suportar para tornarem-se adultas belas, para tornarem-se mulheres que consideram “natural” e normal equilibrar-se sobre um salto de 10 cm de altura e atender à moda.

As crianças do sexo feminino, desde muito cedo, são educadas a constranger seus corpos e a usar unhas pintadas, saltos altos, maquiagem, mechas coloridas nos cabelos e são educadas a consumir moda.
Em matéria publicada no caderno “Equilíbrio”, da Folha de S. Paulo de 09/05/2002, intitulada “Pequenas peruas”, o jornalista Antonio Arruda, que entrevistou crianças do sexo feminino entre 4 e 10 anos, assim inicia sua incursão por um universo estarrecedor:

As entrevistadas em questão não são novas top models ou recém contratadas apresentadoras de programas de entrevistas da TV. Mas crianças que ainda não são nem meninas-moças. Têm entre quatro e dez anos de idade, mas se vestem feito mulheres adultas.
Para os pais, esse é um processo natural, uma vaidade imanente, um modo "atual e inevitável" de ser menina.
[...]O mercado da moda e mídia, por meio de programas de TV e da publicidade, bombardeiam as famílias com padrões de crianças vestidas de mulheres e, em muitos casos, com comportamento de adulto.

A beleza torna-se imperativa para a educação feminina. Ela é resultado de um esforço, de um autocontrole do corpo, de uma educação cuidadosa, de uma certa predisposição para a tortura, ou, como afirma uma jornalista francesa, de uma retomada bíblica: “Você ganhará a beleza com o suor do teu corpo”. (Caviglioli:12)
Na educação corporal de homens e mulheres, outro aspecto a ser considerado é a arquitetura (Zarankin, 2002), um caso particular de linguagem e, portanto, de possibilidades concretas de materialização de discursos.
As ruas das cidades educam os corpos de seus habitantes, assim como o tamanho das casas, dos cômodos, assim como o mobiliário, os objetos, a luminosidade do ambiente, a ausência ou presença de cores, texturas, conforto. (Sant’Anna, 2000) O corpo é também educado pela comida, pelas religiões, pela mídia, pelas diferentes práticas convencionadas como mais ou menos adequadas para que dele se “cuide”. Falar de uma educação do corpo, portanto, é falar de um lento processo civilizatório, da lenta e complexa mudança de sensibilidade, da tolerância ou intolerância por atitudes e práticas humanas, de uma consideração cada vez mais eloqüente que confere ao corpo uma importância sempre mais alargada. Ele é o texto que revela trechos bem marcados da história de uma dada sociedade. 2

Há uma afirmação de Foucault que me parece adequada para pensar a educação do corpo, qual seja, a de que “cada época elabora sua retórica corporal”. Portanto, todas as marcas, as formas, as eficácias e os funcionamentos do corpo transformam-se, mudam com o tempo, subvertem-se, substituem-se e representações deslocam-se.
O culto à magreza e a obsessão pela atividade física orientada, assim como pela “saúde perfeita” (Sfez, 1995), talvez possam ser uma nova representação do corpo. Tomando como exemplo o lugar da gordura, que já foi sinônimo de opulência e até de saúde (e ainda o é em determinados grupos e culturas), percebe-se claramente uma nova sensibilidade e tolerância em relação à sua existência.

A gordura, hoje, converteu-se no grande mal a ser combatido, um mal que, aliado ao sedentarismo, outro vilão contemporâneo, torna-se objeto de combate incessante desde a mídia até programas e políticas de saúde pública. (Fraga, 2002)3 Típico de uma sociedade da abundância, o modelo de magreza torna-se imperativo e ocorre de cima para baixo. Nele a gordura e a obesidade são consideradas ruins e até vulgares. Mais amplamente, pode-se falar em uma “estética da magreza” - que se impõe, sobretudo, às mulheres, mas não somente a elas - cuja ampla divulgação se dá pelo sistema midiático, o qual opera uma espécie de “intimação” aos “santuários do culto ao corpo”4, locais que sempre apresentam alguma “novidade”, seja ela adequada à estação, ao que está na “moda” em outros países etc.

Este culto do próprio corpo exige sacrifícios: financeiros (gasta-se menos com roupas e mais para “manter a aparência”) (...) os meios de comunicação repetem a todo momento “cada pessoa tem o corpo que merece”, o que leva a um novo sentido de responsabilidade. Esse corpo a ser produzido, desnudo, na praia, deve estar de acordo com os cânones do momento. (Vincent,1992 e Fischler, 1987)

A sensibilidade atual enraíza-se em um rompimento daquilo que se chamou de controle-repressão e na invenção do que se denomina controle-estimulação, enraizamento este já assinalado por Foucault e que resulta em sua célebre afirmação: “Fique nu, mas seja magro, bonito, bronzeado!”(Foucault, 1984) Os índices relativos à composição corporal, como as quantidades de massa magra e massa gorda, não foram sempre objeto da atenção de mulheres e homens desde que estes dados estão disponíveis. Hoje, não só estão em moda como freqüentam até as escolas, como é o caso de uma pertencente à rede privada em uma cidade do interior paulista e que mantém um convênio com uma academia de ginástica.

"(...) O Colégio cuida da mente e a Companhia Athletica cuida do corpo. Desde 1999, as aulas tradicionais de Educação Física (...) foram abolidas e deram lugar a um programa completo realizado na Companhia Athletica. O Programa inclui avaliação física anual, prescrição individual de treino (voltada para os objetivos de cada um) e avaliação dos resultados. Faz parte desse programa a premiação do estudante que obtiver o maior progresso de qualidade de vida. Cada estudante concorre com ele mesmo, realizando um exame físico inicial e uma reavaliação após um ano. Henrique Bastos Lima, 17 anos, recebeu dois pacotes de viagem (passagem e hospedagem) para Porto Seguro, pois apresentou o maior progresso entre todos os participantes. Em um ano, ele perdeu 3% de sua massa de gordura, ganhou 2 quilos de massa muscular e melhorou seu condicionamento aeróbico em nada menos que 10%. Enfim: o Anglo cuida da cabeça e a Companhia Atlhetica cuida do corpo, pois os benefícios da atividade física trazem, como conseqüência, melhor desempenho escolar”. (Macedo e Nunes, 2001)

Há aqui uma maneira explícita de educar o corpo para um padrão de normalidade ora em voga. O modo como se aprende a lidar com o corpo, o modo como as pessoas são alertadas em relação aos deslocamentos do “mal”, as classificações estéticas não são mais aquelas que as precederam. Por isso, talvez, seja sempre importante, como nos ensinam Sant’Anna e Vigarello, perguntar pela sensibilidade de cada época. No que concerne ao corpo, pensar nos cuidados a ele destinados, cuidados que abarcam, que congregam diferentes estratégias para manter o seu equilíbrio e, assim, prolongar a vida. Perguntar sempre como foi possível o corpo ser o que ele é hoje; como foi possível construir, por exemplo, esta obsessão pela saúde e pelo sexo, em um mundo onde tanto uma como outro se tornam nossos déspotas, como sugere Pascal Brukner.(2000)

1. A educação do corpo

Se somos educados por tudo o que nos envolve, pela matéria da qual é feito o mundo, conforme as palavras de Pasolini (1990), há formas específicas, codificadas, cognoscíveis, elaboradas com requinte e junção de saberes, de práticas e de vontade política que se impõem a cada época e que, talvez, hoje, o façam com uma velocidade sem precedentes. Na descontinuidade das retóricas que se elaboram em torno do corpo e de sua educação, há também permanências, e uma destas é a afirmação de uma naturalização do corpo e dos fenômenos a ele ligados, e que produzem um discurso que toma por base referências explícitas às metáforas maquínicas.

Se diferentes épocas elaboram diferentes retóricas e pedagogias do corpo, parece que a confiança e a autoridade do discurso são maiores quando apoiadas em argumentos, em explicações e, sobretudo, em provas construídas por um vasto campo de conhecimentos de natureza física e biológica. Veja-se a quantidade de artigos que tratam da saúde do corpo veiculados em periódicos não especializados de grande circulação 5; veja-se o seu conteúdo, geralmente tratando de uma infindável variedade de regimes alimentares, de medicamentos, de cosméticos, de chás milagrosos, de ginásticas rejuvenescedoras, de roupas apropriadas para caminhar, correr, fazer ginástica, de maneiras de se obter mais prazer no sexo; vejam-se os conselhos de beleza que rompem completamente com aqueles de outrora 6 e inauguram uma espécie de tribunal quando apresentam as famosas fotos do “antes” e “depois” do conselho dado. Aquelas que não o seguirem ficarão feias, gordas, com a pele espinhenta etc...E não serão amadas, não conseguirão trabalho, ficarão solteiras. E esse discurso é veiculado diuturnamente, multiplica-se infinitamente a cada dia, basta olhar as revistas dedicadas ao público “feminino”. 7

Veja-se por exemplo a quantidade de exames médicos 8 que se multiplicam e que buscam revelar o que se passa no interior do corpo; veja-se a sofisticação tecnológica existente para percorrer o interior do corpo ainda misterioso e cheio de surpresas. Aquilo que antes fazia parte da vida de comunidades inteiras e as singularizava hoje passa a ser visto como o grande mal. Esta afirmação pode ser traduzida pelo modo como as pessoas se alimentam, amam, divertem-se, vestem-se. Para tudo é necessário um “especialista”, e tudo fica pateticamente igual. O que representava força e vitalidade transforma-se na causa de inúmeras doenças, não é mais parte do conjunto de elementos que compõem uma cultura, é algo que se comercializa separadamente de sua origem e funções. A própria dor, antes um sinal para que o indivíduo se voltasse para si e escutasse este chamado do corpo, foi completamente abolida. Não sabemos mais escutar o corpo e atender-lhe aos chamados, relacionar este apelo à totalidade da vida que inclui a emoção, os afetos, as mágoas, as angústias, os relacionamentos. Os analgésicos para o corpo...os antidepressivos para a alma. Novas sensibilidades constroem-se. Mas talvez seja possível pensar que há um empobrecimento na compreensão deste corpo apartado do sujeito que o habita. Parece que na época atual cada momento é portador de uma nova possibilidade de antecipar-se ao mal, que tanto pode ser uma doença ou sua suposta aparição em algum momento da vida9, como pode ser a obesidade (hoje considerada uma doença), mas também pode ser a velhice, este grande mal a ser combatido por múltiplas armas que são descobertas, enaltecidas e abandonadas com a mesma velocidade, em uma época em que uma anatomia juvenil se impõe.
O corpo reduzido a um conjunto de células, líquidos, órgãos, músculos, nervos, reduzido a uma materialidade esquadrinhada por atos de conhecimento causa surpresas infindáveis e não cessa de mostrar que há universos que estão mais além e que seus espaços internos, assim como sua aparência, são também construídos com uma variedade de elementos invisíveis. As marcas visíveis do tempo constroem-se com lentidão, são os traços da experiência, contam histórias; talvez apagá-las signifique apagar um trecho importante da história da sociedade em que se vive. Talvez esse apagamento seja, de fato, a fonte mais privilegiada para pensar, para escrever uma história do indesejado no que concerne ao corpo contemporâneo: as rugas, a idade, a gordura, a flacidez, os cabelos brancos, a lentidão, a velhice. Tudo isso talvez para se viver em uma sociedade de jovens velozes, brancos e magros, uma sociedade profundamente fascista.
A ambição de conhecer e de controlar o corpo, de adentrar sempre mais e mais neste território obscuro e que parece sempre reservar algo a ser ainda explorado, revela uma compreensão predominante: os discursos sobre a materialidade corpórea constroem-se ao largo da história e da subjetividade...
As referências teóricas buscadas para a elaboração das retóricas corporais revelam permanências: para falar do corpo, consultam-se os tratados de anatomia, de fisiologia, de higiene, de bioquímica e agrega-se a este acervo, tanto em um passado recente como no presente, uma dose de convencimento da necessidade imperiosa de colocar o corpo em movimento, sem o que não há saúde e, nos dias de hoje, também não poderá haver felicidade, e ser feliz cada dia mais passa a ser uma obrigação. 10

2. Uma nova antiga compreensão da educação do corpo

“Quanto mais quente melhor - Enérgica, a instrutora incita os alunos do Sports Club de Los Angeles a pedalar mais depressa na bicicleta ergométrica. “Tenho uma turma supermotivada de indivíduos agressivos e competitivos”, ela diz.
[...]Um corpo bem treinado é uma máquina eficiente e complexa...(idem)
[...]VO2 máx. Expresso em milímetros por quilo de peso corporal por minuto, o VO2 máx. indica a quantidade de oxigênio que o corpo usa durante o exercício. (idem)
[...]Copa do Mundo de Saltos Ornamentais, considerada um ensaio para as Olimpíadas. Dezenas de competidoras de 30 países estão se aquecendo. [...] Menos de 3 segundos depois, cada mergulhadora fura a superfície, mal perturbando o espelho-d’água.
“As pessoas adoram ver isso na TV”, comenta Valerie Beddoe, superintendente da equipe australiana de saltos ornamentais. “

Mas não muitas tem vontade de fazer. É difícil de aprender. Muito técnico. Dá medo. E leva anos para se atingir o nível de elite”. Além disso, apesar da graciosidade dos saltos, os repetidos choques contra a água a mais de 64 quilômetros por hora podem ser uma agressão brutal ao corpo.
O esforço intenso, a freqüência das lesões e as pressões da competição - não só para os competidores de saltos ornamentais, mas para todos os atletas de elite - podem conduzir a outro problema muito comum: a tentação de reforçar o treinamento com drogas como esterórides anabólicos-androgênicos, que geram massa e força musculares artificiais. (Gore, 2000)

O uso indiscriminado do GH, hormônio produzido pela hipófise e responsável pelo crescimento humano, fornece elementos para a compreensão contemporânea do corpo tanto do atleta como de qualquer indivíduo desejoso de adquirir um corpo “sarado”. A produção natural deste hormônio pelo organismo humano atinge seu auge entre a idade de 13 e 18 anos e entre os 25 e 30 anos começa a cair. Há cerca de 35 anos começou a ser utilizado em crianças que apresentavam problemas de nanismo. Nessa época era retirado da hipófise de cadáveres humanos ou de vacas.

Na última década, passou a ser produzido sinteticamente e passou a ser chamado de hGH, deixando os consultórios médicos e conquistando adeptos entre interessados em obter resultados estéticos quando acompanhado de exercícios físicos e dieta balanceada: redução de gordura, aumento de massa muscular, sensação de bem-estar. Foi considerado o anabolizante do verão nas academias de São Paulo, conforme matéria assinada pelo jornalista Roberto Oliveira, intitulada “A droga do verão” e publicada na Folha de S. Paulo (28/01/2001). Os prejuízos que pode trazer à saúde são inúmeros: risco de desenvolver diabetes resistente à insulina, acromegalia, que é o risco de ter um crescimento desproporcional das extremidades ósseas como os dedos das mãos, pés e queixo, inflamação e dores nas mãos, câncer de fígado.

O conteúdo das citações iniciais é bastante representativo de um modo muito particular de pensar o corpo e traduz os resultados de um lento processo de especialização de discursos, de investimentos tecnológicos, de pesquisas científicas, de implementos, de códigos, de regras, de saberes e práticas. Esse modo de pensar e educar o corpo presente nessas citações revela, ainda, o aporte teórico hegemônico utilizado para se falar do corpo, para explicá-lo. Revela, sobretudo, a importância dada a essa compreensão de educação corporal, a essa concepção de corpo, nem sempre explícita, por vezes difusa ou sutil, mas que goza, nos últimos 200 anos, de uma singular consideração, muitas vezes apenas presente em discursos, mas sempre em pauta.
É inédita a maneira como o corpo começa a ser tratado em fins do século XVIII, mas sobretudo no XIX. Ele passa a ser o lugar de expressão de civilização. A ginástica, em um primeiro momento, intervém de modo direto, explícito, prescreve uma educação física e higiênica para toda a população e não apenas para o soldado. Ela agrega e busca argumentos científicos para compor um conjunto articulado de prescrições, para reunir algo que estivera difuso. Ela atuará de modo mais minucioso e mais explícito. (Ver Vigarello, 1978)

Não bastam mais os manuais de civilidade (Roterdão, 1978), não basta saber se portar à mesa, em público, cuidar da higiene pessoal, da aparência. É necessário adestrar (Vigarello, 1978) as forças, economizar energias, empregar o tempo adequadamente. A força e o vigor devem ser adquiridos, reorientados; saúde, vigor e beleza resultam deste modo novo de “cuidar de si”. Um imaginário energético impõe-se e a busca da eficácia no gesto tem a sua entrada triunfal na educação do corpo. (Vigarello, 2001 e Sant’Anna, 2001).

Parece que essas idéias, tão bem desenvolvidas por Georges Vigarello em obras já citadas aqui, constituem-se em permanências no pensamento contemporâneo da educação do corpo e conferem uma linha de continuidade a idéias caras ao higienismo vitorioso desde o século XIX, idéias que fundam esta obsessão pela saúde, pela “performance esportiva”, e que traduzem novos conceitos de beleza, novos modos de viver e de comportar-se.
Por estas razões, talvez fosse interessante problematizar a ruidosa cultura de massa e tudo o que arrasta consigo, sobretudo o enaltecimento das práticas corporais e a ausência, quase absoluta, de questionamentos e de elucidação de suas contradições e ambigüidades. Pensar, por exemplo, nos problemas causados pelo doping, sejam aqueles vivenciados muitas vezes silenciosamente pelos grandes atletas (e pela mídia [Pires, 2002]), sejam aqueles dos freqüentadores da academia de ginástica do bairro em que vivem.

Análises desta natureza podem permitir ainda que se rompa com a romântica e perene visão de uma positividade imanente relativa ao fenômeno esportivo, quer seja como espetáculo de massas, quer seja como prática e como forma de educar o corpo. Nunca é demasiado recordar que o esporte moderno é o divertimento aceito e representativo da sociedade industrial, aquele que se impõe e deseja substituir outros divertimentos que passam a ser considerados bárbaros ao lado de uma atividade tão ordenada e “civilizada”.(Ver Lucena, 2000; Mello, 2001 e Adão, 2001)

Se o corpo pode ser pensado como primeiro lugar de visibilidade humana, como um texto escrito 11 pela sociedade da qual é parte, pensar os modos como se opera sua educação é pensar nossa própria sensibilidade e vida em sociedade.


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Dados biográficos:

Carmen Lúcia Soares é professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas/SP. É membro do Conseil Genéral de la Société Internationale de l’éducaion physique et du sport; membro pesquisador do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte(CBCE) e editora da Revista Brasileira de Ciências do Esporte(RBCE). Publicou os livros Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados 2001, Imagens da Educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no século XIX. Campinas: Autores Associados, 2002 e Corpo e História (org.) Campinas: Autores

Associados, 2001. Organizou o dossiê “A visibilidade do corpo” , Revista Pro-Posições. Campinas, Faculdade de Educação-UNICAMP,v. 14, n. 2 (41) maio/agosto de 2003.

1 As idéias que deram origem ao formato final deste texto foram apresentadas na conferência de abertura da “I Reunião Anual do PROEFE: por que educação física”, realizada na Escola de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, no período de 28 a 30 de novembro de 2002, sob o título. “A Educação do corpo e a Educação Física”
2 Nunca é demasiado fazer referência aos textos clássicos de Marcel Mauss, como uma espécie de fundador de um olhar sobre o corpo como objeto histórico. Ver especialmente Mauss, 1974.
3 É bizarra esta afirmação, considerando a fome no mundo e, em particular, a fome no Brasil! Abundância para quem? Para quantos? Para aqueles que inventam o modelo! Ver Sant’Anna, 2003.
4 Expressão que utilizo para me referir, por exemplo, às academias de ginástica. Ver Vaz, 1999 e 2001.

5 Por exemplo, somente no ano 2002, as revistas Veja e IstoÉ publicaram cada uma mais de seis matérias sobre temas concernentes aos cuidados corporais como regimes alimentares, cirurgias, ginásticas etc. Para uma leitura crítica, consultar Dantas, 2002.S
6 Os conselhos de beleza freqüentam periódicos desde muito tempo, porém, não com a velocidade e intensidade, nem com a quase determinação e ordem dos dias de hoje. Ver a respeito Sant´Anna, 1994 e Goellner, 2003.
7 Por exemplo, as revistas Boa Forma, Capricho,Nova, Marie Claire, entre outras. Para uma análise crítica, ver o excelente trabalho de Dantas, 2002.
8 Conforme o filósofo colombiano Felipe Prieto (2001), “(...) vivemos na sociedade mais medicalizada da história, desde fetos nos medicalizam, ai daquele pobre bebê que quando não atende, não pára quieto, não se movimenta bem, de imediato se diz que isto ocorre porque ele não tem estimulação precoce, [...]ai daquele pobre, já maduro, já adolescente que não realize plenamente sua saúde, pois daí em diante está precisamente nas garras da eficácia transformativa do corpo, na qual não há descanso possível nenhum, para nenhum ser humano (...)” .
9 Há mulheres nos EUA que extirpam suas glândulas mamárias para “evitar” o câncer de mama; fazem mastectomias preventivas! Ver a respeito Silva, 2001.
10 Brukner (2000 :17) (...) "Par devoir de bonheur, j’atends donc cette idéologe propre à la deuxième moitié du XXe et qui pousse à tout évaluer sous l’angle du plaisir et du désagrément, cete assignation à l’euphorie qui rejette dans la honte ou le malaise ceux qui n’y souscrivent pas. Double postulat: d’un côté tirer le meilleur parti de sa vie; de l’autre s’affliger, se pénaliser si l’on n’y parvient pas.
11 Utilizo aqui a expressão e o conceito de Certeau, 1999 e Poirier, 1998.

Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003