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Labrys
estudos feministas
janeiro/julho 2004
Gênero: uma categoria útil para estudo
do corpo e da saúde?
[1]
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Resumo
Nosso objetivo neste trabalho
é duplo. Primeiro, fazer
uma síntese da proposta teórica de Joan Scott para os
estudos de gênero, presente em seu texto Gender: a
useful category of historical analysis. Queremos demonstrar
que esta categoria é realmente útil e tem, efetivamente, transformado
os estudos de gênero no campo da História. Em segundo, queremos defender
que estas formulações teóricas não devem se limitar às
análises históricas, já que possuem um caráter mais geral, pois
propõem, em última instância, uma quebra de paradigma. Acreditamos que
tal categoria pode ser adotada em diversos campos do
conhecimento, sobretudo pelas ciências da saúde, pelas
ciências sociais aplicadas e por outras disciplinas das ciências humanas,
que se dedicam ao estudo do corpo e da saúde humanos.
Palavras-chaves:
Joan Scott – gênero – corpo – saúde – pós-modernismo
Em 1986 foi publicado, no volume 91 da American Historical
Review, o artigo Gender: a useful category of historical analysis,
escrito pela historiadora norte-americana Joan W. Scott. Preparado originariamente
para ser apresentado na reunião da American
Historical Association, realizada em Nova York, em 1985, este texto
foi traduzido para diversas línguas, inclusive
o português, e causou um grande impacto
entre os historiadores em diferentes países. Apesar de já ter
completado 18 anos, este artigo continua sendo uma leitura fundamental
para aqueles que se dedicam ao estudo do gênero.
Joan Scott é professora da Escola de Ciências Sociais
do Instituto de Altos Estudos de Princeton, Nova Jersey. É especialista
na história do movimento operário no século XIX e do
feminismo na França. É, sem dúvida, uma das mais importantes teóricas
sobre o uso da categoria gênero em história. O artigo que passamos a comentar
apresenta algumas das suas primeiras contribuições à questão.
Em Gender: a useful category of historical analysis,
Scott apresenta e discute diversas acepções do termo gênero à luz
de diferentes correntes teóricas, elaborando uma definição para
tal categoria e apontando a importância de seu uso para
a renovação das pesquisas históricas. A seguir, vamos
apresentar as linhas gerais deste trabalho.
Scott inicia seu texto destacando que as coisas que têm
a função de significar algo, tal como as palavras e as
idéias, possuem uma história (p. 265), o que inclui o termo gênero. Desta
forma, aponta que as feministas norte-americanas, rejeitando
palavras que poderiam trazer a noção de determinismo
biológico e realçando o caráter relacional das definições de feminino-masculino,
importaram o sentido de gênero da gramática e passaram
a utilizá-lo para referirem-se à organização social das
relações entre os sexos (p. 266).
Ao adotar tal termo, segundo Scott, mais
do que insistir que as mulheres eram objetos da História,
as historiadoras feministas buscavam reformular os paradigmas
desta disciplina, redefinindo e ampliando a visão tradicional de fazer
história (p. 267). Neste sentido é que ela sublinha que para
o nascimento de uma nova história haveria que se desenvolver
a idéia de gênero, transformando-o em uma categoria de análise (p. 268).
A inclusão do gênero como categoria analítica,
tal como as de raça e classe, traria,
para Scott, a inclusão dos oprimidos
na História; a análise do significado e da natureza da sua opressão
e a compreensão acadêmica de que as desigualdades, face ao poder,
estão relacionadas ao menos a estes três elementos – gênero, raça
e classe (p. 268). Contudo, ela mesma aponta um entrave
a esta proposta: a falta de consenso, entre os estudiosos, sobre os significados
destas três categorias (p. 268).
A partir deste ponto
do texto, Joan Scott passa a discutir o sentido e o
uso dado ao gênero em trabalhos acadêmicos, destacando que o emprego desta
categoria deveria levar à passagem de análises descritivas
para analíticas, mas constata que estas só seriam possíveis
com a adoção de novos paradigmas teóricos (p. 268). Assim,
ela critica os trabalhos que utilizam o termo gênero como sinônimo de
mulher com o objetivo de dar um caráter mais acadêmico
e menos político às suas reflexões, já que consideram este termo mais
neutro do que as palavras feminino ou mulher (p. 270). Também critica
as pesquisas que apesar de analisarem as relações sociais entre homens
e mulheres atém-se somente ao estudo de certos setores
da organização social, como a família, a reprodução, as ideologias de
gênero (p. 271-272). Ela conclui estas críticas realçando que o mero uso
do termo gênero, sem uma mudança de perspectiva
teórica, faz com que as pesquisas continuem a estudar
“as coisas relativas às mulheres”, de forma descritiva,
sem que se questione porque as relações entre homens e mulheres estão
construídas como estão, como funcionam e como se transformam (p. 272).
Mas as quais mudanças teóricas Joan Scott se refere?
O texto de Joan Scott foi produzido em um momento em que,
nos Estados Unidos, os historiadores viviam a crise dos paradigmas. Mas
que paradigmas são estes? Até a década de 60 do século passado a explicação
histórica desenvolveu-se fundamentando-se em teorias que se assentavam
em paradigmas provenientes do pensamento iluminista,
[2] tais como a crença na razão, na existência de um sujeito
estável e coerente, na neutralidade da ciência, na objetividade da linguagem,
em leis gerais que regem os fenômenos, inclusive os históricos,
dentre outros pressupostos. Neste sentido, as análises históricas pautavam-se,
sobretudo, na descrição dos fenômenos, em explicações
causais, em estudos de caráter quantitativo, e em generalizações.
Só a partir de meados do século passado,
face à descrença com os progressos da ciência e do pensamento racional
e objetivo, um novo paradigma foi se constituindo: o
chamado pós-estruturalista ou pós-moderno.
[3] Os chamados estudos pós-modernistas realçam a subjetividade dos
sujeitos e da linguagem; a impossibilidade da neutralidade científica;
a importância dos estudos qualitativos e dos fenômenos particulares; negam
as leis gerais de explicação dos fenômenos; apontam para
a instabilidade dos conceitos e categorias etc.
O que Joan Scott propõe neste seu trabalho
é justamente que os estudos de gênero venham a se assentar
neste novo paradigma teórico. Para a
autora, esta opção permitiria às feministas acadêmicas não só encontrarem
“uma voz teórica própria”, como também aliados acadêmicos e políticos
(p. 287).
Para fundamentar a sua
proposta, a autora analisa, de forma crítica e à luz
da perspectiva história, três visões teóricas diferentes sobre o gênero:
a dos teóricos do patriarcado, a elaborada pelas feministas marxistas
e as teorias psicanalíticas de matriz pós-estruturalista e anglo-saxônica.
Os teóricos do patriarcado, segundo Scott, analisam o
sistema de gênero e apontam a sua primazia em toda a organização social.
Procuram explicar a dominação da mulher pelo
homem em função da reprodução e da própria sexualidade. Porém, não demonstram
como a desigualdade de gênero estrutura as outras desigualdades sociais
ou afetam aqueles campos que parecem não ter ligação
com o gênero.
[4] Além disso, estas reflexões se assentam nas diferenças
corporais entre homens e mulheres, consideradas imutáveis e, portanto,
ahistóricas (p. 274-275).
As feministas marxistas fundamentam suas reflexões na
busca de uma base material para o gênero e a encontram
na divisão sexual do trabalho. Scott
critica esta teoria principalmente devido ao fato de que, nesta perspectiva,
o gênero é considerado como um “produto acessório” nas transformações
das estruturas econômicas, carecendo, portanto, de status analítico
próprio e independente (p. 276-279).
As teorias psicanalíticas abordam os processos pelos quais
a identidade do sujeito é criada, centralizando suas
análises nas primeiras etapas da vida da criança. Estas teorias, apesar
de concentrarem-se nos sujeitos, como realça Scott, tendem a universalizar
as categorias homem-mulher, descontextualizando a construção
da subjetividade e reforçando o caráter de oposição binária do gênero
(p. 280-285).
Joan Scott rejeita cada uma dessas teorias que buscam
explicações gerais para o gênero e, pautando-se no paradigma
pós-moderno, propõe a busca constante pela historicização e desconstrução
dos termos que procuram denominar a diferença sexual
(p. 286).
[5]
Assim, a historiadora, inspirada pelas reflexões de dois
importantes filósofos pós-estruturalistas, Foucault e Derrida, mais do
que uma mudança de perspectiva teórica
no uso da categoria gênero, propõe uma mudança
radical na forma de fazer história,
que deveria apresentar novas questões, hipóteses e métodos;
abandonar a busca pelas origens dos fenômenos; reconhecer
a complexidade dos processos históricos, cujos elementos encontram-se
tão interrelacionados a ponto de não poderem ser
estudados isoladamente; discutir como se sucederam
os fenômenos, descobrindo os seus porquês; verificar
as ligações entre o sujeito e a organização social na
busca dos significados; considerar que o poder
não está unificado, não é coerente, nem se encontra centralizado no seio
das organizações sociais (p. 286-288).
Após todas estas considerações, a autora apresenta a
sua definição de gênero. Como ela mesmo aponta, esta definição possui
duas partes e várias sub-partes, que estão ligadas umas às outras. Primeira
parte: “o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas
nas diferenças que distinguem os sexos”; segunda parte: “o gênero é uma
forma primária de relações significantes de
poder” (p. 289).
E quanto
às sub-partes? A perspectiva de gênero de Joan Scott reconhece a sua “dispersão”,
que o faz presente nos símbolos e nas representações
culturais; nas normas e doutrinas; nas instituições e organizações sociais;
nas identidades subjetivas. Estes elementos operam juntos nas relações
sociais, mas não são reflexos uns dos outros (p. 290-292).
Por outro
lado, ainda que não seja o único campo de articulação do poder,
o gênero é a primeira instância dentro da qual, ou por meio da qual, o
poder se articula. Baseando-se em Bourdieu, a autora
afirma que os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização
de toda a vida social, influenciando as concepções, as construções, a
legitimação e a distribuição do próprio poder
(p. 292-293).
Depois de expor as considerações teóricas,
Scott passa, então, a apresentar diversos exemplos nos
quais o uso da categoria gênero na perspectiva pós-moderna pode
revolucionar os estudos históricos, já que sua aplicação
não se limita à análise das áreas “femininas e privadas” da história,
mas podem ser empregadas nos estudos sobre a política,
a guerra, a diplomacia, a demografia etc, e permite a construção
de novas problemáticas, hipóteses e interpretações (p. 294-300).
Em Gender: a useful category of historical analysis,
Joan Scott propõe, portanto, uma visão pós-moderna da categoria gênero.
A partir das suas idéias, podemos apontar
alguns aspectos que caracterizam os estudos de gênero:
- analisam
como, em diversas sociedades e momentos, um dado grupo ou indivíduo dá
significação ao feminino e ao masculino;
- elegem
o particular, renunciando à busca por leis causais e gerais para
a explicação das diferenças sexuais;
- tratam
os pares homem-mulher ou feminino-masculino não como categorias fixas,
mas constantemente mutáveis;
- consideram,
apesar de estarem atentos ao caráter relacional do gênero, que o
caráter binário sobre a diferença sexual, ainda que seja hegemônico nas
sociedades, não é invariável ou imutável;
- rejeitam
o determinismo biológico e a idéia de que a distinção sexual é natural,
universal ou invariante, a despeito das diferenças anatômicas
entre machos e fêmeas na espécie humana, mas que se constrói discursivamente
de forma inter-relacional, pressupondo relações hierárquicas
de dominação;
- discutem
como uma dada visão de gênero construiu-se e impôs-se num determinado
grupo num certo momento, apontando para a sua historicidade,
desconstruindo-a;
- visam,
mais do que descrever e buscar a causalidade
dos fenômenos, analisar e compreender
(o que Scott denomina de explicação significativa (p. 288) as construções
de gênero, que implicam na configuração de instituições,
de relações de dominação, símbolos e representações, normas, papéis sociais,
identidades subjetivas e coletivas e práticas, legitimando-as;
- atentam
que o gênero é disperso e está presente em todas os aspectos
da experiência humana, constituindo-os parcialmente, porém, não os determinando.
Gênero, dentro desta perspectiva teórica, é, portanto,
mais do que uma palavra; é uma categoria de análise que aplicada a um
dado objeto resulta em uma forma específica de abordá-lo.
Esta definição da categoria de gênero, porém, não é a única, como o próprio
texto de Joan Scott aponta. Há muitas outras formas de compreender
o gênero, em sua maioria assentadas no paradigma iluminista. Estas análises,
porém, não rompem com as construções hegemônicas de gênero e, muitas vezes,
as reproduzem nas pesquisas; não permitem identificar
a parcialidade do sujeito; usam categorias estáveis e
fechadas, e não pressupõem possibilidades de mudança
na organização social.
Acredito que a proposta teórica de Joan Scott realmente
é útil e tem, efetivamente, transformado os estudos de gênero no campo
da História. Suas formulações, porém, não devem se limitar
às análises históricas, já que possuem um caráter mais geral, pois
propõem, em última instância, uma quebra de paradigma, podendo ser
adotada em diversos campos do conhecimento, incluindo aquelas áreas que
se dedicam ao estudo do corpo e da saúde.
Como aponta Joan Scott, “o gênero é uma forma
primária de relações significantes de poder” e, portanto,
está presente em todas as dimensões da vida social, constituindo-as,
ainda que parcialmente. Ou seja, o gênero também está presente
nas reflexões acadêmicas das diversas áreas do conhecimento. Contudo,
esta presença tem sido ignorada ou desapercebida pela
grande maioria dos estudiosos. Isto se explica, em grande parte, pela
adoção, ainda hegemônica, do paradigma iluminista, que
considera, como sujeito universal, a
perspectiva do homem branco heterossexual.
Este dado torna-se mais flagrante quando o corpo e a saúde
são os objetos de estudo, pois há uma tendência, mesmo
entre os especialistas, a considerar que tudo o que se
refere ao corpo é estável, fixo, natural e ahistórico. Porém, como ressalta
Jane Flax, natureza e cultura não são elementos autônomos, pois
quando a natureza se torna objeto de estudo ou da ação
humana, ela perde a sua existência independente. Assim,
qualquer reflexão sobre o corpo e a saúde, seja no campo da Biologia,
Psicologia, Medicina, Genética etc rompe com as fronteiras
entre a natureza e a cultura e implica em uma série de seleções e interpretações
dos dados pelo pesquisador e/ou por uma equipe,
que por mais amparados que estejam em informações objetivas resultam,
ao final, em conclusões influenciadas por diversos fatores, inclusive
o gênero.
Há que ressaltar que a aplicação
desta categoria é recente e, em muitos casos, os especialistas ainda encontram
dificuldades em manejá-las. Neste sentido, nem todos os trabalhos que
passo a citar aplicaram o gênero exatamente como propõe
Joan Scott. Contudo, os exemplos selecionados apontam para
o seu papel nas reflexões e interpretações realizadas
sobre o corpo e a saúde elaboradas no decorrer da histórica,
bem como para a sua influência
na percepção dos estudiosos contemporâneos sobre tais temas. Foram selecionados
seis textos: Inventando o Sexo. Corpo
e Gênero dos gregos a Freud, de T. Laqueur
(2001); Atos impuros. A vida de
uma freira lésbica na Itália
da Renascença, de J. C. Brown (1987); Algumas reflexões
para estabelecer
a cronologia do “fenômeno
transexual” (1910-1995), de P. Castel (2001); Violência
sexual e lei deuteronômica, de C. Pressler
(2000); O crime de estupro
e o transexual, de Diaulas Costa Ribeiro (1997); A medicalização
do Corpo Feminino, de Elisabeth Meloni Vieira
(1999).
Durante centenas de séculos, segundo estudos realizados
por Thomas Laqueur, homens e mulheres foram considerados como duas variedades
de um mesmo sexo.
Durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres
tinham a mesma genitália que os homens, só que – como dizia Nemesius,
bispo de Emesa, do século IV – “a delas fica dentro do corpo e não
fora”. (...) Homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de
perfeição metafísica, seu calor vital, ao longo de um
eixo cuja causa final era masculina(Laqueur, 2001: p.
14-5).
Segundo Laqueur, no período pré-iluminista,
o corpo, assim como o sexo, era compreendido como um elemento acidental
ou secundário, enquanto que o gênero, para nós uma categoria
cultural, era concreto, “real”. Assim, neste período,
o que caracterizava o ser homem ou o ser
mulher não era o seu físico, mas a sua posição ocupada na sociedade.
Seus corpos, portanto, não eram vistos como fixos e poderiam sofrer
alterações, ganhando características de um e de outro.
Esta formulação, estruturada na Antigüidade, em que o
sexo único possuía duas versões, uma completa e perfeita,
o homem, e outra incompleta e imperfeita, a mulher, legitimava e fortalecia
o patriarcado.
No período pós-iluminista o gênero permanece.
Contudo, o seu fundamento torna-se, para o pensamento
acadêmico, o corpo biológico e a idéia dos dois sexos.
Este modelo ainda mantém-se hegemônico na atualidade
e nos é tão familiar que o consideramos como natural. Porém, sua estruturação
deu-se a partir do final do século XVII e não foi fruto
de um avanço meramente tecnológico, mas de transformações
políticas e epistemológicas.
A visão dominante desde o século XVIII... era de que há
dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos, e que
a vida política, econômica e cultural dos homens e das mulheres,
seus papéis no gênero, são de certa forma baseados nestes
“fatos”. A biologia – o corpo estável, não-histórico e sexuado – é compreendida
como o fundamento epistêmico das afirmações consagradas sobre a ordem
social (Laqueur, 2001: p. 18).
Laqueur, ao estudar o que chama de invenção
do sexo, alerta que tanto o modelo do sexo único como
o dos dois sexos são situacionais, ou seja, mais do que
verdades infalíveis e neutras, ganham sentido dentro do contexto da luta
do gênero e poder (2001: p. 23).
O gênero também influenciou as visões sobre a sexualidade
humana. Durante séculos, segundo aponta Judith C. Brown, o lesbianismo
foi praticamente ignorado pelos religiosos, juristas e médicos. Como a
sexualidade humana era pensada unicamente como falocêntrica, enquanto
o homossexualismo era amplamente discutido, denunciado e punido, praticamente
ignorava-se a possibilidade de contato sexual entre mulheres (1987: p.14).
Judith Brown aponta as razões para
que a sexualidade lésbica fosse ignorada: alguns não
admitiam a possibilidade das mulheres se sentirem sexualmente atraídas
por outras mulheres, já que a beleza do homem inspirava
mais desejo às mulheres; outros consideravam que a relação sexual entre
mulheres era uma forma de “aprimorar
e glorificar o sexo de verdade, isto
é o sexo com um homem”; havia os que insistiam que esta era uma forma
das mulheres, inferiores, tentarem desafiar os homens
(1987: p. 19-21). Segundo a autora:
as dificuldades conceituais que os homens da época
enfrentavam em relação à sexualidade lésbica se reflete
na falta de uma terminologia adequada. A sexualidade lésbica
não existia. Nem mesmo, aliás, lésbicas. Apesar da palavra “lésbica”
aparecer uma vez no século XVI na obra de Brantône, não
foi usada habitualmente até o século XIX, e mesmo então era mais aplicada
a uma série de atos do que a uma categoria de pessoas (Brown, 1987: p.27).
[6]
Segundo Brown, em grande parte, a ignorância
sobre a sexualidade lésbica era, na verdade,
uma extensão da ignorância sobre a sexualidade e anatomia
das mulheres em geral e do fato das mulheres serem consideradas mais fracas
e suscetíveis à sugestão (1987: p. 30-1).
O gênero também foi um fator fundamental na compreensão
do fenômeno transexual. No artigo Algumas reflexões
para estabelecer
a cronologia do “fenômeno
transexual” (1910-1995), publicado em 2001, Pierre–Henri
Castel discute as modificações históricas na percepção científica, cultural
e política da identidade sexual no século XX, e, por inclusão,
do chamado fenômeno transexual.
Segundo o autor, no início do século passado o transexualimo
foi considerado uma síndrome psiquiátrica. Esta visão
foi sendo rediscutida e interpretada ao longo do século por estudos de
sexólogos, endrocrinologias e sociológos. Na análise do fenômeno,
segundo Castel, o gênero teve um papel fundamental, ao
permitir que as análises superassem a oposição natureza/cultura,
ou seja, o transexual passou a ser visto não como uma
pessoa que sofria de um desequilíbrio fisiológico, mas
como alguém capaz de construir sua própria identidade
sexual (Castel, 2001: p. 86-7).
Assim, hoje, o fenômeno é registrado
no manual-diagnóstico da Associação Americana de Psiquiatria como “distúrbio
de identidade de gênero”, o que, para Castel, “consagra
o triunfo em psiquiatria de uma concepção sociológica particular da identidade”
(2001: p. 78).
Também o gênero foi um fator importante nos estudos desenvolvidos
por Carolyn Pressler sobre a lei deuteronômica. Suas investigações
a levaram a concluir que no sistema patriarcal hebraico
a sexualidade de uma mulher era propriedade de seu pai ou marido; a mulher
não tinha direitos sobre a sua própria sexualidade. Desta forma,
quando uma mulher era violentada, este ato não era visto como uma agressão
contra a mulher, mas contra os direitos legais e sociais do pai ou marido
(Pressler, 2000: p. 111-2). O ofendido, portanto, era o pai ou,
se fosse casada, o marido. A eles é que era feito o dano e, portanto,
eles é que recebiam a reparação, geralmente feita mediante
um pagamento. No caso da mulher solteira, já que uma
jovem violentada era considerada um bem danificado, um
casamento forçado também era visto como uma forma
de compensação para o pai.
Face a estas conclusões, a autora alerta que os
pesquisadores devem ter cuidado com o vocabulário
que usam em suas pesquisas, pois as categorias modernas
e antigas não se eqüivalem. E acrescenta:
aquilo que consideramos violência
sexual ou estupro, aquelas leis consideram adultério
involuntário, no caso de uma mulher prometida em casamento,
ou um dano financeiro, no caso de uma
mulher não prometida. Usar a palavra “estupro”
para descrever a relação sexual forçada
nas leis deuteronômicas, pode sugerir que as leis estejam
interessadas na integridade sexual da mulher ou na vontade delas, quando,
de fato, não estão interessadas nisto (Pressler, 2000: p.121-2).
O gênero também é um elemento constitutivo, nas sociedades
contemporâneas, no tratamento jurídico dado ao estupro.
Vejamos o caso do Brasil. Segundo o código penal brasileiro
de 1940, ainda vigente, estupro é definido como conjunção
carnal pêni-vaginal mediante violência ou grave ameaça
contra a mulher. Ou seja, para uma agressão
ser considerada estupro ela deve ser
falocêntrica, o agressor tem que ter pênis
e a vítima tem que ter vagina. A cópula em outras
partes do corpo, por exemplo o ânus, descaracteriza
o estupro, sendo classificado, então, como atentado
violento ao pudor. A lei, portanto, não reconhece, por exemplo, a violação
anal, que pode ser praticada por um homem contra outro
homem ou qualquer agressão sexual infligida por uma mulher contra um homem.
Em um interessante artigo disponível on line, Diaulas
Costa Ribeiro, comentando a declaração dada pela transexual Roberta Close
de que seu maior pânico é ser estuprada, afirma que,
pelo direito brasileiro, ela jamais
será considerada violentada. Ele explica:
a lei só considera mulher o ser assim
identificado na certidão de nascimento. É o chamado sexo jurídico (...)
Logo, se para o Direito, para os tribunais,
Roberta é um homem, para o mesmo Direito e
para os mesmos tribunais Roberta não pode ser
vítima de estupro, que exige uma mulher nessa condição.
Se os tribunais insistem que ela é Luís, não poderão conceber
estupro contra homem. (...) Por outro lado, não poderá
ser vítima de atentado violento ao pudor porque esse
crime exige que a violência sexual não seja pêni-vaginal. E vagina, Roberta
tem. (...)
O tratamento dado pelo direito brasileiro
ao estupro fundamenta-se, portanto, no gênero. A sexualidade
é pensada ainda como falocêntrica e as mulheres são vistas como seres
fracos e impotentes e, portanto, em última instância, as únicas que podem
ser vítimas de uma agressão sexual. Além disso, o corpo
é interpretado de forma contextual. Este é o caso do
sexo jurídico de Roberta Close. Ainda que fisiologicamente ela se aproxime
mais de um corpo de mulher, seu sexo jurídico é fruto de uma convenção
social, do gênero, que a identifica como homem.
Gostaria ainda de apresentar um último
exemplo. Em um artigo em que trata do olhar médico sobre
o corpo feminino, Elisabeth Meloni Vieira estuda o nascimento da obstetrícia
como especialidade médica (1999: p. 67-78). Segundo a autora, durante
séculos as mulheres dominaram os conhecimentos sobre a reprodução e eram
as responsáveis pelos partos. Com a medicalização do corpo feminino intensificada
no século XIX, relacionada à valorização da maternidade, as artes obstétricas
começaram a constituir-se como um saber especializado
que se aprendia na escola. Assim, cursos para parteiras
começaram a ser ministrados nas academias médico-cirúrgicas.
Porém, a obstetrícia ainda não era considerada uma especialidade
médica, ao menos no Brasil, e não figurava nos currículos das faculdades
de medicina. Como aponta a autora:
Até o final do século XIX, muitos médicos formavam-se
sem jamais terem feito um parto ou procedido a um exame
obstétrico (...) o ensino prático da obstetrícia encontrou
várias dificuldades além da falta de recursos e investimentos nas escolas
médicas. Entre elas, o aspecto competitivo da prática
liberal e a resistência das mulheres em usar
hospitais e enfrentar o olhar masculino
(1999: p. 71).
Só a partir do século XX a
Obstetrícia foi se afirmando como especialidade Médica; o estágio
prático em obstetrícia passou a ser
implantado como disciplina e parto transformou-se
em um “ato médico”. Porém, como aponta Vieira, pelo
fato dos partos terem sido realizados, por séculos, pelas mulheres, a
Obstetrícia era considerada uma especialização menor,
que não exigia tantos conhecimentos teóricos e práticos. Assim,
para consolidar-se academicamente, muitos foram os esforços
para controlar e/ou eliminar
as parteiras, que, sobretudo nos grandes centros urbanos,
praticamente desapareceram. A Obstetrícia enfim consolidou-se
e é hoje, como observa a autora, uma especialidade eminentemente masculina
(Vieira, 1999: p. 72-3).
Poderíamos alongar a nossa
lista com outros exemplos. Contudo, todos serviriam
para reforçar a idéia de que o estudo do
corpo e da saúde, assim como de qualquer outro tema, é sempre histórico
e, portanto, dinâmico. Ao interpretarmos um certo dado, diversos elementos
nos influenciam, inclusive o gênero, ou seja, o
saber sobre a diferença sexual presente em
nossa sociedade.
O mérito do texto de Joan Scott está, sobretudo,
em nos alertar para a historicidade
das interpretações, mesmo as elaboradas pela ciência. A ciência é uma
forma de explicar os fenômenos, não
a única maneira de apreensão e compreensão do mundo. Concluo este texto
com uma reflexão de Jane Flax: “não há força ou realidade
fora de nossas relações sociais e atividades (por exemplo história, razão,
progresso, ciência, alguma essência transcendental) que nos livrará da
parcialidade e diferença”(1991: p. 249).
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___., TILLY, L. Les femmes, le Travail et la Famille.
Paris: Rivage, 1987.
Vieira, Elisabeth Meloni. A medicalização do Corpo Feminino.
In: GIFFIN, K., COSTA, S. H. Questões da Saúde Reprodutiva.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 67-78.
Nota biográfica
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva é bacharel
e licenciada em História pela UFRJ. Mestre em História Antiga e Medieval
(1990) e Doutora em História Social (1996), é docente do departamento
de História da UFRJ desde 1992. É professora do Programa de Pós-graduação
em História Comparada da UFRJ. Desde o início de sua trajetória acadêmica
dedica-se aos estudos sobre a Idade Média, em especial
das penínsulas ibérica e itálica nos séculos XI ao XIII. É co-coordenadora
do Programa de Estudos Medievais da UFRJ (www.pem.ifcs.ufrj.br)
. Desde 2001 vem aplicando a categoria gênero em suas pesquisas sobre
o medievo. Como bolsista PQ do CNPq desenvolve o projeto Santidade
e Gênero na Hagiografia Mediterrânica no século
XIII: um estudo comparativo. Dentre seus
últimos trabalhos publicados encontra-se Gênero e descrições
corporais na hagiografia mediterrânica no século
XIII: um estudo comparativo (In: THEML, N;
LESSA, F. S.; BUSTAMANTE, R. M. C. (Org.). Olhares do Corpo.
Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 28-40) e Moda,
santidade e gênero na obra hagiográfica
de Tomás de Celano (In: COSTA, S., SILVA, A. C. L. F., SILVA, L. R.
(Org.). Ciclo A Tradição Monástica e o Franciscanismo, 2002, Rio
de Janeiro. Atas ... Rio de Janeiro: Programa
de Estudos Medievais, 2003). Para maiores informações,
visite: www.pem.ifcs.ufrj.br/andreia.htm e www.ifcs.ufrj.br/~frazao.
15 p. Word, times new roman, 12.
![](../images/magracinza.gif)
Labrys
estudos feministas
janeiro /julho 2004
[1] Este trabalho foi apresentado no I Congresso de Saúde, Gênero
e Corpo do CMS Waldyr Franco, evento multi e interdisciplinar promovido
pela Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro de 25 a 29 de agosto de 2003.
[2] O Positivismo, o Materialismo Histórico e o Estruturalismo,
apesar de suas diferenças, repousam nos mesmos paradigmas teóricos,
que Ciro Flamarion Cardoso denomina como Iluminista. Este termo não
é empregado por Joan Scott em seu texto, mas nós o utilizamos, seguindo
Cardoso, já que o consideramos mais elucidativo do que o que a
autora emprega, História Tradicional. Cf. CARDOSO, 1997: p. 1-23).
[3] Cf. Sobre o paradigma pós-moderno ver, além do citado texto
de Ciro Flamarion Cardoso, Flax, J. (1991). Este texto também apresenta
uma crítica aos trabalhos iluministas a partir da perspectiva pós-moderna.
[4] A organização dos estados ou a inflação são alguns fenômenos
que poderíamos apresentar como exemplos de campos que parecem não ter
ligação com o gênero.
[5] Desconstruir é reverter as hierarquias de um dado sistema,
rompendo-o (CULLER, 1997).
[6] Segundo Brown, diversas palavras e eufenismos foram usados
para descrever o que as mulheres faziam, como polução, cópula,
vício mútuo etc. As lésbicas eram denominadas de fricatices ou
tríbades (p. 28).
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estudos feministas
jjaneiro/julho 2004
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