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Labrys
estudos feministas
janeiro/julho 2004
Intertextualidade: perspectivas
feministas e foucaultianas
tania navarro swain *
Resumo:
Os múltiplos feminismos , desnaturalizando as
essências
do humano criam o solo dos questionamentos que atravessam a segunda metade
do século XX. De fato, " diferença dos sexos",
aparece como a "evidência"maior, inquestionável
, nos diferentes discursos sociais, que atravessam e constituem as sociedades
atuais. Foucault, bem como outros autores ditos " pós-modernos"
enveredam pela desconstrução
das certezas e a destruição das evidências: neste
texto, pretendo traçar linhas de convergência entre as perspectivas
foucaultianas e os feminismos, que parecem criar campos de inspiração
mútua.
Palavras-chave: feminismos, Foucault, diferença
dos sexos.
Se a noção de intertextualidade nos conduz
a uma intersecção de textos e discursos, instituinte e
instituidores de formações discursivas e suas respectivas
condições de produção, é inegável
que as reflexões e propostas feministas cruzam-se com as análises
feitas por Foucault sobre a formulação dos discursos e sua
pregnância social.
O " linguistic turn" está presente neste movimento
de rediscussão do caráter construído do social e da própria ciência e
neste sentido, a autoridade de Foucault é incontornável, mesmo que seja
para criticá-lo. A literatura acadêmica feminista, porém, nos mais
diversos campos disciplinares tem sido sistematicamente ignorada no seio
institucional, notadamente no Brasil. Esta é uma ocasião para refletir
sobre esta invisibilidade e sobre a imbricação das propostas de crítica do
social e de transformação política do agenciamento humano, pois falar de feminismo
significa tocar em um dos tabus mais evitados, principalmente por mulheres,
que temem ser consideradas “feias, mal amadas, lesbianas,
inadequadas” .
* * *
A História nunca mais será a mesma, a das certezas e dos
positivismos, a das visões de mundo, e das contradições a serem resolvidas.
A História hoje, é uma disciplina instigante, aberta às questões e aos
paradoxos, perguntando, em lugar de concluir, cuja
preocupação central não é a descrição ou a compreensão de fatos ou comportamentos
esperados. A História, hoje, seria fator de desordem do discurso, apontando
a falácia das hegemonias, como construções interpretativas.
A História, hoje, não tenta esconder ou
driblar o conteúdo imaginativo de suas narrativas; ao
contrário, reivindica a poderosa força da imaginação para
detectar o possível, o silenciado, os comportamentos
e relações humanas que não obedecem aos estereótipos e padrões; aponta
para um universo onde a fissura é a superfície, pois
reconhece como construídos os paradigmas de “ mentalidades hegemônicas”
ou de “ visões de mundo” , compartilhadas por uma maioria.Depois de Foucault,
a própria idéia de “maioria” se torna disseminação, aglutinações provisórias
e temporais.
A História , hoje, de fato, é meta- crítica política de
sua própria instituição, enquanto disciplina acadêmica e discurso normatizador,
alicerce de tradições e costumes, recriadora de valores e modelos, cuja
justificação está apenas em sua constante repetição.
Esta força imaginativa nos permite adentrar
regiões desconhecidas apesar dos moldes das representações sociais em
que somos construídas, ensinadas, preparadas para repetir
e re- instituir uma realidade
solidificada em cânones interpretativos. Nada mais difícil que ultrapassar
horizontes epistemológicos, caminhos trilhados apenas por quem não se
conforma, não abdica da idéia da transformação, da mudança,
da diversidade. O fazer história é mais do que nunca
uma atividade política, recusando a repetição do mesmo, aquele murmúrio
infindável de reafirmação da ordem, de criação incessante de um
mundo pensado de forma binária, conjugado no masculino,
nas articulações de poder, nas economias gerais do saber,
construtoras de hierarquias, diferenças e desigualdades.
Mas que meandros criaram este momento profícuo de
se fazer “ histórias”, num presente
ainda de confrontações, onde alguns campos são “ mais históricos” que
outros?
Foucault sonhava
“ [...]com intelectual destruidor das evidências e das
universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente
os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar
se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por
estar muito atento ao presente; que
contribui, no lugar em que está, de passagem, a colocar
a questão da revolução, se ela vale
a pena ( quero dizer qual revolução e qual pena” (Foucault,1988:242)
Para Foucault também estava claro,
somente quem aceitasse arriscar a vida,
poderia falar de revolução. Não me refiro aqui a revoluções
armadas ou terrorismos, a uma inversão simplória de poderes – falo de
revoluções epistemológicas, da criação de condições de imaginação para
uma transformação das relações humanas, para além
de um binarismo simplificador, cuja aparente evidência em opostos complementares,
mas diferentes, arquiteta toda uma economia humana traçada em linhas
de poder e força.
As feministas em geral vivenciaram este desafio
em seu desejo de mudanças, e transformação das relações sociais
pode ser o único ponto em comum entre
a pluralidade dos movimentos e correntes militantes e teóricas feministas,
pois assim se nomeando arriscaram e arriscam suas
reputações, suas carreiras, seu lugar de fala, seus amores. Cherrie Moraga,
chicana, crítica de um feminismo branco e pretensamente
hegemônico falava de feminismo como “teoria da carne”, a que arranha
e machuca ao anunciar transformações, apontando
para um comprometimento incontornável com o político,
na prática dos feminismos.
Em termos de uma concepção tradicional de ciência, ou
seja, um discurso produtor de verdades sobre o mundo, os saberes só caminham
em linha ascendente, do simples para o complexo, do primitivo
para o civilizado, num continuum ininterrupto.
A ciência seria portanto, O saber, aquele
que detém a chave explicativa da natureza, do social, do humano. Como
bem sublinha Foucault,
« Não reconhecendo na ciência senão o acúmulo linear
de verdades ou a ortogenese da razão, não reconhecendo nela uma prática
discursiva que tem seus níveis, suas bordas , suas rupturas diversas,
não podemos descrever senão uma só divisão
histórica, cujo modelo é reconduzida sem cessar
ao longo do tempo para qualquer forma
de saber : a divisão entre o que
não é ainda científico e o que o é definitivamente. Toda a espessura das
interrupções, toda dispersão das rupturas, todo desnível de seus efeitos
e o jogo de sua interdependência encontram-se reduzidos ao ato monótono
de uma fundação que é preciso sempre repetir.” (
Foucault, 1969: 245, 246) “
De certa forma, a ciência seria o discurso
substituto do dogma religioso, baseando-se no mesmo sistema de crenças,
onde os pressuposto axiomáticos substituem os dogmas, onde a autoridade
do cientista supera a do sacerdote.
O sistema é similar: a enunciação de verdades, cujo fundamento
enunciativo se sustenta no lugar de fala de uma autoridade
instituída, com caráter universal e incontestável; os
efeitos políticos deste poderio discursivo tornam-se maiores, na medida
em que a construção social e histórica destes enunciados
desaparece, para dar lugar à força simbólica
da própria enunciação.
O discurso, esta prática modeladora de
significados no social e no político é , portanto, força que engendra
a percepção do real, ou seja, aquilo que interpretamos como real é o que
toma forma e sentido na nossa rede de percepção, em nossas
condições de imaginação, recortadas por “verdades” circulantes em discursos
científico-religiosos, que Foucault nomeia “ regime de
verdade”.
Esta imaginação esteve sempre presente
nas elaborações e analises das ciências físicas e sociais, vestidas,
entretanto, do manto da verdade e da autoridade
oriundas da univocidade do “racional” como expressão do real, livro a
ser decifrado pela ciência. .
Os feminismos e Foucault, em suas imbricações e eventuais
desencontros foram marcos para a mudança
nas perspectivas de se pensar e de se fazer
história e ciência, apontando para suas condições de
produção, compostas de todo um aparato simbólico / político,
discursivo e não discursivo.
Foucault, neste caso, exerce a função de autor, como
ele mesmo define, precipitando, no sentido químico da palavra, o magma
borbulhante das significações sociais, como “ [...]o indivíduo que
se põe a escrever um texto no horizonte do qual ronda
uma obra possível” (Foucault, 1971:10) expondo as heterotopias discursivas
do século XX, no sentido “ das formas
« que inquietam, pois
minam secretamente a linguagem, [...] pois quebram os
nomes comuns ou os entrelaçam, arruínam de imediato a “sintaxe”
e não apenas a que constrói as frases, mas aquela, menos evidente, que
“mantém juntas” [...]as palavras e as coisas. ( Foucault, 1966:.10)
Nesta ótica, os feminismos contemporâneos são expressão
desta heterotopias, quebrando as palavras e abrindo-as às suas significações
políticas De fato, se tomamos o Segundo Sexo de
Simone de Beauvoir, escrito em 1945 como a eclosão da visibilidade
dos saberes engendrados pelas mulheres e pelos feminismos, adentramos
uma perspectiva genealógica, na qual se contempla um dos momentos
em que as “palavras e as coisas” se desfazem de sua univocidade fictícia
e em que “mulher” deixa de significar o “outro” do humano
para reivindicar sua posição
de agente histórico e político, de sujeito, enfim.
Em que “mulher”, dotada de uma essência única e “
verdadeira”, desdobra-se em mulheres, seres localizados em suas especificidades
e experiências múltiplas. Betty Friedan, (1964) em seu The Feminine
Mystique , mostra, nos anos 50, a reconstrução da “verdadeira” mulher
no pós-guerra, em diferentes práticas de assujeitamento e convencimento.
A construção da diferença, na ciência e
nas práticas sociais, aí já estão explicitadas; podemos apontar,
por exemplo, na descontinuidade, de Virginia Wolf , no início do
século XX ou Nísia Floresta, que já no século XIX em sua função
de tradutora desfazia a noção de “fidelidade” ao sentido prescrito pelo
autor, anunciando a co-enunciação entre receptores e autores, ou
ainda Margareth Rago,[1]
uma das primeiras historiadoras da atualidade que ousou nomear-se feminista,
em suas obras de importância incontornável..
Assim, a eclosão de saberes não se dá em um ponto
específico do tempo apenas; é um movimento, que acompanha a dinâmica da
vida social e se contrapõe às pretensas hegemonias ao reivindicar
existência, voz, práticas instauradoras das diversidade. Vários foram,
portanto, os momentos de desnaturalização das relações humanas
baseadas em uma essência biologia, anunciados por incontáveis vozes femininas,
desvelando-se as práticas políticas de exclusão e de dominação nela fundamentada.
Destruir as evidencias, propunha Foucault.
A natureza sexuada do humano, divididos em opostos,
hierarquizados segundo sua essência, esta dotada de razão e de criatividade,
aquela de uma vaga intuição e de uma passividade
receptora foi a evidencia maior descontruída pelos feminismos.
Este idéia, disseminada em diferentes práticas discursivas,
entre as quais as ciências, como bem explicita Gayle
Rubin( 1975), instituiu a norma do humano conjugado no masculino, articulado
em hierarquia, reiterado pelos discursos mais variados,
criando, de fato, a desigualdade política ao instaurar
uma diferença. Esta autora discute alguns pressupostos de Freud
e Lévy-Strauss, apontando como suas elaborações teóricas de pretensão
universal repousam sobre construções e distinções
de gênero, apresentadas como evidentes e naturais, como a troca de mulheres,
ou a inveja do pênis e a sexualidade
como eixo e essência do humano e suas relações; esta evidencia da “ natureza
humana”, repousa, entretanto, apenas em sua própria enunciação e engendra
o sistema ao enunciá-lo.. Como diriam os positivistas: é porque
é.
Monique
Wittig, por sua vez indaga :
« quem deu aos psicanalistas seu
saber ? Por exemplo, para Lacan, o que
chama de ´discurso psicanalítico ‘ a experiência analítica´ ambos
“ lhe ensinam” o que ele sabe. E cada um ensina-lhe o que o outro lhe
ensinou (Wittig, février 1980 :47)
Foucault é um dos arauto desta percepção,
pois comenta que “
“Se os dos grandes vencidos destes últimos quinze anos
são o marxismo e a psicanálise, é porque tinham uma parte muito ligada,
não à classe no poder, mas aos mecanismos
do poder. “ (Foucault, 1970-1975 :724)
A ciência trabalha, portanto, com representações generizadas, representações
sociais que são premissas “indiscutíveis” de suas análises, como
mostram as feministas nos mais diversos campos do saber.
Emily Martin, por exemplo, aponta nos discursos sobre a concepção
humana, os papéis do óvulo ( passivo, inerte, receptor) e os espermatozóides
em plena ação, a reprodução, ipsis literis, das
representações sociais sobre o feminino e o masculino. Anne Fausto-Sterling
expõe as representações binárias e a imagem da “verdadeira” mulher contidas
nos enunciados médicos sobre a menopausa ou a famosa “ tensão pré-menstrual”,
que reinstituem na atualidade as imagens do feminino, doente
de seu corpo e presa de seus hormônios, que lhe dá e
lhe retira seu lugar no social, na cotação da bolsa de
valores da sedução da procriação.( Sterling,1999)
A filosofia, como analisa Genevieve Fraisse (1995), não
cessa de re-instaurar esta natureza de duas formas: por um lado,
utilizando sem cessar metáforas sexuadas e hierarquizadas,
que sublinham o valor do viril e do masculino e por outro , recusando-se
a pensar as instaurações políticas de gênero, pois
já que “naturais”, não apresentam interesse para análise.
Assim, por exemplo, a existência de esferas públicas e privadas
no social são tomadas como axiomas, baseadas na diferença “natural” entre
os sexos; Carole Pateman (1993), porém, . analisa com brilho
a genealogia destas categorias, a priori histórico de muitos trabalhos
e teses.
A apropriação simbólica e material dos
corpos e do trabalho das mulheres, explicitada por
Colette Guillaumin,(1978) a noção de patriarcado como sistema , como mecanismo
de poder e de instituição do real, imbricado ao capitalismo
mas a ele não redutível , como explicita Christine Delphy (1970) com a
categoria “modo de produção doméstico”, são obras feministas
descontrutoras de realidades criadas e cristalizadas pelas ciências e
pelas práticas socais.
No fim dos anos 1970, a reflexão de Monique Wittig contribui
a criar o solo sobre o qual se apoio
a crítica pós-moderna de todas as evidencias e de todos os naturalismos.
Nomeia “ pensée straight’ o quadro de pensamento binário e heterossexual
e esta categoria exprime de forma densa a íntima relação
entre o pensamento e suas condições de produção, pois
pensar, é também pensar historicamente,
um ato ancorado em um horizonte possível de interpretações e de interpelações.
A “pensée straight » para esta autora, é assim o
fundamento de todas as naturalizações e evidencias, escondendo sua construção
histórica sob o universal de um humano, inventado segundo
normas e valores locais e temporais. Wittig explicita:
“ Não posso senão sublinhar o caráter
opressivo que reveste a “ pénsée straight” em sua tendência a imediatamente
universalizar sua produção de conceitos,
a formar leis gerais que valem para
todas as sociedades, todas as épocas, todos os indivíduos” (février 1980 :49
)
A « pensée straight » é, portanto, um quadro
de pensamento histórico, cujos conceitos criam uma certa realidade
e a inauguram como fundadora do humano em uma iteração incessante. Desta
forma, não é suficiente desnaturalizar
o natural, mas, sobretudo mostrar
os mecanismos históricos, materiais, simbólicos, imaginários, que criam
as relações sociais e a própria realidade.
Os feminismos tem sido, assim, ponta de lança para
a crítica da ciência , das verdades instituídas, dos valores transformados
em leis, apontando para a historicidade absoluta do humano
e dos sentidos criados em práticas discursivas, marcadas de tempo e de
espaço e por elas universalizadas. Fala-se inclusive
de “ o feminismo”, ignorando a pluralidade e a riqueza
das análises produzidas em milhares de textos, marcando a produção
do conhecimento no feminino da mesma essência única que se atribui às
mulheres. De fato “ o homem” designa o universal, o humano,
“os homens”, as suas divisões individuais; a “ mulher” aponta para
uma espécie do humano, o “outro”, e “as mulheres” apenas o quantitativo.
A ausência das análises e da epistemologia feminista atuais
da academia e da economia do saber institucional, o anonimato
da intensa produção feminista em todos os campos do conhecimento,
demonstra de maneira clara a falácia histórica da construção
dos saberes: historiadores do futuro poderiam afirmar,
a partir dos compêndios acadêmicos e dos programas dos
cursos universitários, que as mulheres não participavam da produção
do saber, como vem fazendo a história em suas narrativas
tradicionais. E como costumo afirmar, “ o que a
história não diz, não existiu”.
Falando da educação Foucault comenta que
“ ´[...]ela segue, em sua distribuição, no que permite
e no que impede, as oposições e as lutas sociais Todo sistema de educação
é uma maneira política de manter ou de modificar
a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes
que carregam com eles.” (Foucault, 1971:46)
Ignorar a produção feminista
do saber é tentar manter
uma ordem discursiva androcêntrica. .Até o advento da “história das mulheres”
tudo se passava na narrativa histórica como se elas fossem invisíveis
participantes das relações sociais, matrizes, objetos de troca e de uso,
parte dos móveis e utensílios necessários, porém estáticos,a receptivos,
passivos. A própria história das mulheres, em algumas vertentes, padece
dos limites do quadro binário de pensamento, apontando para
as mulheres , na história, apenas em seus papéis tradicionais , dentro
de seu “ destino biológico” .
Em seu questionamento sobre
a instituição dos corpos sexuados e seus corolários de atributos e características
sociais, os feminismos solaparam, assim, a base arenosa da evidencia considerada
a mais clara e incontestável: a divisão biológica do
humano em feminino e masculino e este destino biológico
procriativo, atribuído às mulheres, aí nomeadas “ a mulher”.
Desta forma, considero que os feminismos,
em seus desdobramentos diversos , abalando as certezas ancoradas no que
seria o mais sólido, a natureza, criaram o solo para
a crítica sistemática das verdades científicas, no que se configurou o
chamado pós-modernismo. Trabalhando a noção de “diferença dos
sexos”, os feminismos apontam para a construção
política de modelos humanos cuja base, o sexo e a sexualidade, são a parte
que passa a representar o todo, arbitrariamente.
Se no vórtice das desigualdades, as raças se definiram
pelas características externas da pele e dos traços, derramando-se em
arcabouços culturais ou fenótipos ditos “ primitivos” ,no caso dos
sexos, feminino / masculino, a naturalização de uma diferença construída
alicerça, na exterioridade genital, características internas apontadas
como inatas, como constitutivas da identidade primária do humano.
A desigualdade de gênero precede a de raça
na ordem do discurso, pois se é mulher ou homem antes
de ser branco, negro ou amarelo, azul
ou roxo. No ápice das desigualdades
se é, portanto, mulher, negra, lésbica, pobre,
gorda, velha, feia, etc., numa escala que parte do “ natural”, da
norma, para as diferentes formas de “ diferença”.
Igualdade e diferença são categorias de extrema
atualidade nas ciências sociais, cuja imbricação é uma expressiva elisão
do binômio identidade / diferença, como bem explicita
a filósofa Géneviève Fraisse; (1995) De fato, o par de igualdade
é desigualdade , esta última enquanto resultado de uma política da diferença.
Uma desigualdade instaurada no político, como fundamental na taxionomia
do humano, é enraizada, assim, na noção de diferença
entre o feminino e o masculino; esta categoria ancora-se na noção de “natural”,
que toma uma parte do humano- seu aparelho genital- como sendo a expressão
de sua totalidade. O valor social que cimenta esta divisão
binária é a reprodução, traduzida em heterossexualidade
compulsória, como afirmam Monique Wittig( 1980) e Adrienne Rich (1980),
entre outras.
Ao mesmo tempo, atrela à “ natureza” uma série de características
socialmente construídas, criando uma escala binária de atributos, cujo
pólo positivo encontra-se fixado no masculino.Porém, só existem diferenças
lá onde se estabelece um referente e a “ diferença” dos sexos aponta apenas
para uma construção social de um parâmetro
corpóreo, fundamento de hierarquias.
O referente assim, é modelo desdobrado
em homem, branco, ocidental, jovem, de posses, origem de uma cascata de
desigualdades; classificou-se enquanto “outro” todas /os que não se adequassem
ao perfil do referente. A igualdade na diferença,
a meu ver, é uma expressão antinômica, já que é a própria
noção e instituição de diferença que cria a desigualdade entre
os seres. Quando esta diferença é apresentada como “ natural”, sua construção
social desaparece da ordem do discurso e ancora crenças e tradições que
organizam o feminino e o masculino em outro binômio: inferior /
superior, instituídas em sistemas de dominação. Foucault explicita o que
entende por dominação:
« [...] nas relações
humanas, há todo um feixe de relações de poder, que podem
se exercer entre os indivíduos, no seio de uma família,
em uma relação pedagógica, no corpo político. Esta análise das relações
de poder constitui um campo extremamente complexo. Encontra,
às vezes, o que podemos chamar fatos, ou estados de dominação,
nos quais as relações de poder, em lugar de serem móveis
e de permitir aos diferentes parceiros uma estratégia
que as modifique, encontram-se bloqueadas e fixas. Quando um individuo
ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações
de poder, a torná-las imóveis e fixas e a impedir
uma reversibilidade do movimento [...] estamos diante do que se pode chamar
de estado de dominação (Foucault, 1980-1988: 710/711)
A naturalização das relações entre o feminino e o masculino
criam este tipo de “ estado de dominação”. As desigualdades encontram-se
, deste modo, fundadas num discurso de “evidência”, ocultando-se
, desta forma, que a própria idéia de diferença
pressupõe todo um aparato valorativo, onde o sexo biológico é tomado como
parâmetro principal na classificação do humano.
As epistemologias feministas e os movimentos de mulheres
são expressão de práticas de liberdade e de liberação; em alguns países
os estados de dominação são quase herméticos, mas mesmo assim é possível
trabalhar ass fissuras no sistema; em outros, mais permeáveis,
como os ocidentais, a dominação se faz, não pela força, mas pela repetição,
pela educação, pela religião, por assujeitamentos diversos que flexionam
as auto-representações nos quadros binários habituais. Dos discursos midiáticos
à atividade legislativa, os corpos das mulheres são criados enquanto sexuados,
apropriados, destinados à procriação e à sedução, como
bem explana Susan Bordo (labrys 4, 2003)
O referente é o masculino, o sujeito que
exige, para compor sua identidade ,
a existência de um outro desigual, feito de oposição, de uma suposta complementaridade,
que apenas acentua a disparidade entre o feminino e o masculino nas práticas
políticas, em seu sentido mais amplo. De fato a “igualdade” hoje, para
as mulheres significa dupla ou tripla jornada de trabalho,
salários inferiores para tarefas iguais, ínfima representação
política, e corpos submetidos a uma violência social naturalizada, como
a doméstica ou a prostituição, a pedofilia.
E a luta pela igualdade se faz sob o signo da diferença,
solo construído sobre o qual se instauram
as assimetrias e as desigualdades sociais.
Neste sentido, os feminismos se pluralizam, em diversos
graus de comprometimento com os quadros de pensamento habituais, como
o binarismo explicitado na expressão sexo/ gênero, ou o diálogo com narrativas
universalizantes, como a psicanálise , presas de condições de inteligibilidade
coercitivas. Os feminismos vem fazendo teorias, porém, não como
quadros de pensamento rígidos, modelares, substitutivos; os feminismos,
hoje, ao teorizar, fazem uma poética, como sublinha Linda
Hutcheon, (1991: 29-30) “aberta e em constante mutação”, enunciados
provisórios, sem a ânsia das respostas e das definições, sem medo
dos paradoxos, traçando heterotopias ao decodificar as
artimanhas do poder sobre o simbólico / material do relacionamento
humano.
Estaria Foucault pensando nas feministas quando afirmou
que:
“ papel do intelectual não é mais de
se colocar um pouco antes ou um pouco de lado para
dizer a verdade muda a todos; é ao contrário,
lutar contra as formas de poder onde
é ao mesmo tempo objeto e instrumento na ordem do “saber”,
da “verdade”, da “consciência” , do “discurso”. É assim
que a teoria não exprimirá, não traduzirá, não se aplicará à uma prática,
ela é uma prática. Mas local e regional, nunca totalizadora.
Luta contra o poder, luta para fazê-lo
aparecer e estocá-lo, ali onde é o mais invisível e o
mais insidioso. “ (Foucault, 1970-75: 308/309)
Neste grande, imenso dispositivo da sexualidade identificado
por Foucault , em que o sexo se torna o eixo da existência, da identidade
, atraindo todos os olhares e investimentos individuais e sociais, não
se pode esquecer que sua definição é , de início, binária:
a heterossexualidade é portanto, a norma. Feministas
como Monique Wittig e Adrienne Rich, nos anos 1970 identificam na heterossexualidade
compulsória a prática social fundadora do “natural” da
divisão binária dos sexos e de sua hierarquização.
De fato, se Foucault expõe as tecnologias do sexo, fundadora
dos corpos normatizados e disciplinados, mas seu discurso permanece generalizante
. Diz ele:
“O poder seria essencialmente o que,
ao sexo, dita sua lei. O que significa, antes de tudo, que o sexo se encontra
colocado por ele em um sistema binário: lícito e ilícito, permitido
e proibido. O que significa que o poder prescreve
ao sexo uma “ordem”, que funciona ao mesmo tempo como forma
de inteligibilidade: o sexo se decifra em relação à lei. [...] a tomada
de poder sobre o sexo se faria pela linguagem ou melhor,
por um ato de discurso, criando, ao ser articulado, um
estado de direito. [...] a forma pura do poder,
seria encontrada na função do legislador, e seu modo de ação
seria, em relação ao sexo, do tipo jurídico- discursivo. (Foucault, 1976:10)
A sexualidade criada pela linguagem, em matrizes de inteligibilidade,
a lei como materialização em normas, aqui é explicitada. Foucault vê também,
nas tecnologias do sexo, a criação do “ sexo verdadeiro”
e nisto está clara a oposição heterossexualidade / homossexualidade.
Mas e a própria constituição da heterossexualidade?
Teresa de Lauretis ,( 1987) por sua vez, nos expõe as tecnologias
de gênero, que inventam corpos sexuados nos diferentes discursos
sociais e lhes atribuem diferenças incontornáveis, em hierarquia
e assimetria. De fato, o binarismo primário é o feminino
- masculino , a construção da heterossexualidade
e da norma em termos de natureza. Neste sentido, antes de terem
sexualidade, os corpos devem se tornar sexuados.
As tecnologias do gênero compõem os corpos humanos em uma
forma binária e neste sentido, como sublinha Judith Butler
(1990), não existem gêneros fora de expressões de gênero, ou seja, é o
social, com seus sentidos, valores e escolhas que define o sexo como prioritário
nas expressões do humano. É assim, que para Butler, é
o gênero que constrói o sexo, invertendo a proposição
sexo / gênero, que deixa intacta e sem questionamento
a naturalização da diferença.( Butler,1990) Desta forma,
fica claro que a diferença entre os sexos é criação político - discursiva
da economia binária dos gêneros “naturais”, cujo fundamento é a procriação.
Como método, a crítica feminista da produção
do conhecimento trabalha num constante re- significar
de suas próprias proposições e tem como ponto de partido
o que Sandra Harding chama de “objetividade forte “ (Harding, 1998) ou
seja , a constante reflexão sobre as condições de produção
do conhecimento, incluindo as suas próprias, explicitadas em saberes localizados
e específicos, no tempo e no espaço.
Teresa de Lauretis sublinha a noção
de experiência, incontornável para os feminismos, “ um
complexo de efeitos significativos, de hábitos , disposições, associações
e percepções” ( De Lauretis, 1987:.18) “ um processo
pelo qual todos os seres sociais são construídos” ( 18)Localizando
sua produção de saber e assentando-a
na experiência, os feminismos escapam assim às generalizações abusivas
, às características biológicas universalizantes com as quais se institui
a representação DA mulher, inclusive em seus próprios
discursos.
De fato, quando a crítica feminista se anuncia, é
o domínio do arquivo foucaultiano que se desvela, ou seja
“[...] o conjunto de regras, que em uma dada época
e para uma sociedade determinada, definem
os limites e as formas do dizível [...] quais são os enunciados destinados
a não deixar traço? Quais são destinados, ao contrário,
a entrar na memória dos homens ( pela recitação ritual,
a pedagogia, o ensino, a distração, ou a festa, a publicidade)?
Quais são anotados para poder ser
reutilizados e com que fins?[...](Foucault, 1954-1969:681)
A história das mulheres tem aberto este
arquivo, localizando em seus silêncios e suas fissuras o espaço
de ação do poder instituidor dos corpos
sexuados em hierarquia, discursos recitados em ladainhas
pela tecnologias do gênero.
Acrescenta Foucault, a respeito das perspectivas do arquivo:
“Quais são os enunciados reconhecidos como válidos
ou discutíveis ou definitivamente invalidades? Quais os tipos de relações
são estabelecidas entre o sistema de enunciados presentes e o corpus de
enunciados passados?[...] Que indivíduos, que grupos, que classes tem
acesso à que tipo de discurso?Como é institucionalizado a relação do discurso
com aquele que o pronuncia, com aquele o recebe? Como se desenvolve, entre
classes, nações, coletividades lingüísticas, culturais ou étnicas, a luta
pela tomada dos discursos? (Foucault, 1954-1969: 682)
Poderia ser aqui uma feminista falando
da exclusão das mulheres da ordem do discurso acadêmico, político, social
e a desqualificação da reflexão feminista no sistema de apropriação
social simbólico – discursiva. .
A crítica feminista da realidade em que vivemos poderia
ela mesma ser uma das heterotopias descritas por Foucault,
entre aquela de crise e aquela do desvio: dentro da norma e em processo
de ruptura, em crise e fora da norma, lá
onde, como aponta Foucault, estão os indivíduos cujo comportamento é desviante
em relação à média ou à norma exigida”.( Foucault, 1980-1988:
757) Este é o sujeito feminista, nomeado eccentric
subject por Teresa de Lauretis, dentro de suas condições de produção
e de sua experiência designada enquanto mulher ; fora delas, ao indicar
as linhas de força e de poder que constituem o humano
em corpos sexuados.(De Lauretis, 1990)
E a história, afinal? A história encontra-se valorizada
enquanto disciplina, já que todas as outras reconhecem, em maior ou menor
grau, a incontornável historicidade de suas proposições. Enquanto historiadoras
feministas, procuramos não o ecoar monótono
da repetição do mesmo, mas as vibrações dos acordes múltiplos de
uma história possível, instauradora de diversidade, não da diferença.
*Este
texto foi apresentado em mesa redonda no encontro " O legado de Foucault",
UNESP/ Araraquara, agosto 2004.
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[1] Ver, por exemplo, livros de sua autoria como
O que é Taylorismo? ,Brasiliense,1984; Do Cabaré
ao Lar. A utopia da cidade disciplinar,
Paz e Terra,1985; Os Prazeres da Noite.Prostituição
e Códigos da Sexualidade Feminina em
São Paulo, Paz e Terra,1989; Narrar
o Passado, Repensar a História,
com Renato Aloisio Gimenes ,Unicamp,2000 e Entre a História
e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo,
ED.da Unesp, 2001.
Labrys
estudos feministas
janeiro/julho 2004
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