labrys, estudos feministas, études féministes
agôsto/ dezembro 2004- août / décembre 2004
número 6

A DESCONSTRUÇÃO DO FEMININO NO DISCURSO LÉSBICO

Maria Fernanda Vasconcelos de Almeida *

Resumo

A presente comunicação pretende analisar o caráter performático da prática homossexual feminina e aprofundar a reflexão sobre  a identidade autoral  do sujeito homossexual feminino na cultura brasileira. Pretende, ainda, sugerir que se intensifique a pesquisa acadêmica sobre o discurso homossexual e a história do homossexualismo  feminino no Brasil.

Em primeiro lugar,  peço que vocês não interpretem “A Desconstrução do Feminino no Discurso Lésbico” como o título de uma comunicação  ou o tema de um texto, mas sim como o nome  que define um determinado tipo de performance ou, se preferirem,  um gênero performático. Identidade  é um conceito que se conjuga no plural e,  se ainda não é assim que acontece em todas as categorias, melhor será relacionar  a prática homossexual feminina a um sistema de gêneros performáticos. Seria este, a meu ver, o ponto de partida para a definição de uma estratégia  eficaz  de legitimização, ainda que hierarquizada, do discurso lésbico no escala hegemônica: em primeiro lugar, é preciso refletir de forma mais profunda sobre o papel performático que a prática homossexual feminina desempenha na cultura brasileira e indagar  quais seriam as interdições que atingem  o discurso da homossexualidade  feminina no Brasil, que função elas têm e que efeito produzem.

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Janet Flanner (1892-1978 , Cartão-postal, Paris, 1925 ( clicar para aumentar)

A proposta de trabalho que eu trago para reflexão começou a tomar forma no final do ano passado, quando voltei a morar no Brasil, depois de alguns anos no exterior. Chamou  minha  atenção  o  silêncio abissal que envolve  a prática homossexual feminina e a falta de inscrição do discurso lésbico na cena pública brasileira.  Não que esse silêncio já não se fizesse perceber ou que esse discurso já não estivesse rarefeito há alguns anos atrás, mas digamos  que,  aos olhos  de quem esteve longe, esse processo  evoluiu  perigosamente  rumo à diluição, no corpo do discurso social, da identidade do sujeito autoral e do caráter singular da prática homossexual feminina.

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Johnny DeLuca,  boxer  berlinense  , Berlim, 1997, The Drag ing Book,  Serpent's Tail Publishers

Não se pode falar de um discurso sem ocupar  seu lugar de fala para, dessa forma, investir  esse discurso de um sentido que lhe é dado pela experiência originária. Não há outra forma, a não ser o próprio discurso, e nem outro instrumento, a não ser o próprio corpo (verbo, imagem e memória), para avançar sobre as palavras, sobre as regras canônicas de gênero, sobre o status, as normas de boa linguagem, linhas argumentativas e outros elementos próprios  do discurso hegemônico. Por outro lado, não se deve avançar sobre as palavras  e buscar o poder de afirmação de um determinado discurso como uma simples oposição ao poder de negar, mas sim avançar sobre as palavras para nelas encontrar o poder de constituir o domínio de um território, a partir do qual se poderia afirmar ou negar proposições falsas ou verdadeiras

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Bridge Markland, Berlim 1997/1998 ,Portraits Bridge Markland,  Konkursbuchverlag

Portanto minha posição aqui hoje é ambígua e, em certo sentido, nada confortável: sou eu quem fala sobre o discurso lésbico que me comanda e é o discurso lésbico que fala através de mim; eu sou, ao mesmo tempo, conceito e  objeto, como um ready-made de Marcel Duchamp, tergiversando sobre a matéria difusa de que ele próprio é feito. São as minhas palavras sobre as minhas palavras, tecendo  o discurso histórico  de um sujeito que percorre, minuto após minuto, desde muitos séculos atrás, o labirinto de suas memórias. E a primeira frase poderia ser a seguinte: não me lembro de algum dia ter nascido homem. Do que eu me lembro, é do corpo que eu tenho: sobre ele, através dele, apesar dele é que está sendo (des)construído o gênero que me representa. Existirá alguma mulher que não seja, antes de mais nada, um sujeito sentimental? Poderíamos dizer que o romance é o que caracteriza primordialmente a condição feminina? No sentido aristotélico, as palavras são espelhos dos objetos;  no sentido foucaultiano, é preciso questionar as evidências e descontruir as realidades naturais. O gênero feminino  não é uma evidência inquestionável.

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         .         Amory Pert,  Londres, 1996, The Drag King Book,  Serpent’s Tail Publishers

Evidente  é que o lesbianismo  está sendo vendido pela mídia como  artigo de consumo, exposto nas prateleiras dos supermercados e das bancas de jornais  como sinônimo de vanguarda. O fetiche da mercadoria – representado, nesse caso, pelo produto lésbico - sugere,  mais uma vez,  uma abordagem  descompromissada e superficial  da sexualidade feminina , não ultrapassando as velhas  fronteiras de discussäo sobre maternidade e  trabalho doméstico. Se por um lado esse processo de mercadologização da homossexualidade  feminina sugere uma leitura  mais solta,  que alguns dirão ser também menos hermética,  menos  claustrofóbica, por outro lado minimiza o horizonte de significações do que Foucault chamou de sujeito fundante. É importante  considerar  a figura positiva  da autora homossexual. É importante que se restitua o caráter de acontecimento ao discurso que ela enuncia e que se redescubra o sentido  do que já foi dito no que ela diz.

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     Uncle Louie @ the Porno Store , Nova York, 1997,The Drag King Book, Serpent’s Tail Publishers                           

As condições de funcionamento de qualquer discurso impõem aos indivíduos que o pronunciam um certo número de códigos que não permitem que todo mundo tenha acesso a ele. Como também disse Foucault, “nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas; algumas são altamente proibidas, diferenciadas e diferenciantes”. A apropriação do discurso lésbico pela corrente  hegemônica traz, como consequência, a diluição da identidade das lésbicas na fumaça da mais pura fantasia,  sem nenhum efeito concreto. É um filme sem direção, que só existe nos olhos do voyeur. E aqui, mais uma vez, a autora é justamente aquela que possibilita sua inserção no real. A autora não é só alguém que escreve ou pronuncia um texto; ela é, antes de mais nada, um ponto de convergência, um princípio de agrupamento do discurso.

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  Murray Hill para Prefeito, Nova York, 1997,   The Drag King Book, Serpent's Tail Publishers                                         

Discurso social é o conjunto de retóricas e enunciados que se articulam na nossa cultura para dar forma ao dizível, ao narrável, ao opinável, e  assegurar a divisão das correntes discursivas entre o corpo hegemônico, onde está legitimado o que é dizível, e a órbita periférica dos discursos marginais, por onde transita o que Bertold Brecht chamou de “noch nicht Gesagtes” – o que ainda não foi dito. Para ilustrar o conceito de discurso social, poderíamos   recorrer  à imagem de um gigantesco mosaico formado por uma série de elementos metafóricos e interativos. Vale lembrar, a esse respeito, as palavras de Bakhtin, segundo as quais “(…) todo discurso concreto descobre sempre  o objeto de sua orientação como já especificado,  contestado,  avaliado, envolvido, se preferirmos dizer assim, por uma névoa que  o assombra  ou, ao contrário,  iluminado por palavras estrangeiras a seu propósito. Ele está sempre perpassado por idéias gerais, visões, apreciações  e definições  de outro”.

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Frida Kahlo (1907-1954)  Cartão-postal, México,  1924                                         

Pensando ainda no silêncio de que eu falava há pouco, acredito que se deveria indagar quais seriam as causas desse fenômeno de acentuada mercadologização da homossexualidade  feminina: se são internas, externas, históricas ou  institucionais,  e em que ponto elas se cruzam.  Poderíamos  falar dos mecanismos - às vezes sutis, às vezes violentos - de controle dos discursos e suas zonas de exclusão, da força perversa da matriz heterossexual, das relações de poder sistêmicas, do  assujeitamento  das mulheres,  do elogio à reprodução e da despolitização da feminilidade.  Reproduzem-se seres humanos em ritmo de fábrica, reproduz-se o mesmo discurso dominante dicotômico, reproduzem-se as doutrinas  de disciplina e domesticação do corpo das mulheres, o monopólio da moral cristã, as mesmas crenças nos mesmos papéis sociais e, em última instância, o mesmo sofrimento que garante, na melhor  das hipóteses, uma existência possivelmente infeliz. No sofrimento compartilhado, em consequência da marca comum, é que as mulheres, independentemente   de sua orientação sexual, podem trilhar o caminho para a construção de uma identidade política.

     clicar para aumentar         Johnny,   Cartão-postal, Londres

Que estranho destino nos faz, desde sempre,  homens e mulheres, oscilar  como pêndulos  entre uma possível  infelicidade e uma felicidade impossível. O movimento de oscilação representa aqui o sujeito que não ocupa um lugar definido,  estático  no universo, que não tem sua identidade  fixada por nenhuma norma discursiva. No caso das mulheres homossexuais, ao invés de uma identidade comum, o que temos são figuras performáticas  que, justamente por serem performáticas, são potencialmente desestabilizadoras. É na performance que  as regras vão sendo refeitas ou desfeitas. Dessa forma, o homossexualismo feminino representa um indicador de risco, no melhor sentido da palavra. Risco como símbolo  de  movimento  e movimento como símbolo de resistência e de reafirmação  da insatisfação,  do inexpressável,  do que excede a própria  linguagem.

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Stanley, o Grego,Londres, 1997,  The Drag King Book, Serpent’s Tail Publishers                          

Qualquer que seja a orientação sexual das mulheres, no campo social é sempre a anatomia  que  define os papéis. A anatomia é  um elemento icônico da identidade de gênero. Se as mulheres são especificadas pelo seu corpo, pela sua anatomia,  e se, como disse  Tânia Navarro-Swain, a heterossexualidade  só  se torna  natural pela reprodução,  melhor seria que nós adotássemos o termo feminitude, ao invés de feminilidade, para falar do sujeito homossexual  feminino  como  um sujeito sem núcleo  de  essência,  múltiplo  nele  mesmo.

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Simon & Jewels, Londres, 1996, The Drag King Book,  Serpent’s Tail Publishers             

Nesse sentido, acredito que a prática homossexual feminina é fundamentalmente anti-maternal e anti-patriarcal, o que significa, em outras palavras, que  se trata de uma experiência potencialmente revolucionária nos seus desdobramentos políticos, sociais, culturais  e filosóficos. As lésbicas são estrangeiras nativas da nação brasileira. Elas são o que Teresa de Lauretis chamou de sujeito ex-cêntrico, ou seja, um sujeito que sai, que está fora do centro . A posição excêntrica   faz  com que as lésbicas  também assumam um papel metaficcional,   de mediadoras entre a realidade tal qual nós a conhecemos   e o discurso  ficcional  que  corre  nas margens  do rio.

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 Jovem casal, 1900, Women in Pants,, Harry N. Abrams, Inc., Publishers

Para uma análise mais apurada sobre as interdições que atingem o discurso da homossexualidade  feminina no Brasil,  seria preciso  mergulhar  no  conjunto de discursos literários,  religiosos, éticos,  médicos  e jurídicos  nos quais,  em determinado período da nossa história,  a homossexualidade feminina viu-se retratada, descrita, metaforizada e julgada. Nessa tarefa, interessam-me particularmente os conjuntos discursivos da Inquisição,  nos quais o pecado nefando era nomeado e hierarquizado de forma explícita. Para citar Foucault, “a vontade de verdade funciona como uma maquinaria que exclui aqueles que, na nossa história, questionaram essa verdade e a colocaram em contraposição à verdade que justifica a interdição  e define  a loucura.”. De que forma esses acontecimentos discursivos da Inquisição se deslocaram e se rearticularam no movimento drag king dos anos 90? A história, como todos nós sabemos, não considera um elemento sem definir a série da qual ele faz parte; assim, seria interessante  explorar os caminhos  pelos  quais  as formas de exclusão  se formaram na história do Brasil, para responder a que necessidades,  como elas se modificaram  ao longo das últimas décadas, que força exercem e em que medida foram contornadas. O discurso histórico é um criador de memória.

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        My Handsome Devil,Paris, 1995,The Drag King Book, Serpent’s Tail Publishers                           

Não posso também deixar de incluir, na lista das probabilidades, os núcleos familiares  da classe média pequeno-burguesa,  onde os papéis  são fixados e o discurso  é apropriado  pelo mesmo grupo doutrinário,  reproduzindo   imagens  patriarcais. No Brasil, a ordem dos eventos familiares toma conta da esfera pública e algumas  instituições senhoriais  ainda funcionam como instrumentos silenciadores de qualquer queixa.

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Shón,Cartão-postal,Yvon Baumann, 1996

Na cena  pública de algumas sociedades, como por exemplo  a alemã, não é difícil encontrar personagens lésbicas com boa projeção na mídia, o que constitui uma marca positiva de reconhecimento e garante uma posição de maior prestígio para as lésbicas. Na Holanda, muito mais do que uma visibilidade midiática – e por que não dizer ilusória – a prática homossexual feminina  está amplamente representada na cultura pop. Embora eu reconheça o significado  dessas conquistas, não vai aqui nenhum traço de enaltecimento fervoroso à cultura gay  européia: se estamos falando de agentes silenciadores,   não podemos nos esquecer de que a Alemanha é,  ela mesma,  mestre na arte do silenciamento, como  é o que demonstram  o holocausto e a retórica nazista que, ainda hoje, ecoa nas ruas de Berlim.

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  Mulheres vestidas com uniformes. da Primeira Guerra Mundial, Cartão-postal, 1920                   

A simples importação de figurinos e modelos comportamentais   não  será o bastante  para que se afirme a identidade homossexual feminina brasileira. É preciso, antes de mais nada, reconhecer nosso passado, nossa raiz, nosso solo histórico, nossa tradição em comum, nossas escrituras, nossos gestos, nossos rastros, as letras que discorrem do nosso próprio punho. E, se a tarefa  parece difícil, basta pensar que identidade nada mais é do que um momento de reflexão,  através do qual eu posso recapturar aquilo que dá sentido à minha existência - onde estou agora, que língua eu falo, para onde vou .

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                               Fanny Herring, atriz shakespereana, vestida de pistoleira, 1880, Women in Pants,   Harry N. Abrams, Inc., Publishers   

     

      

                     

 Maria Fernanda Vasconcelos de Almeida    * Bacharel em Cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

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