Labrys
estudos feministas/ études féministes
agosto/dezembro 2005 -août/ décembre 2005

 

Fragmentos de um mosaico: escritoras brasileiras no século XIX

Norma Telles

 

 

Resumo:

No Brasil do século XIX algumas escritoras buscaram caminhos para uma expressão que rompesse com estereótipos e silêncios impostos. Faz-se um retorno a elas tendo em vista a importância da transmissão que desmancha o esquecimento e preenche lacunas em nossa memória.

A linguagem, como a descreve Barthes em sua Aula Inaugural, é o objeto onde se inscreve o poder.Repetir a mesma linguagem faz com que o que se diz pareça natural e inato. A esta palavra que se gasta na repetição chama estereótipo. Isto quer dizer que certas idéias passam como verdade embora sejam simplesmente engendradas à sombra do poder. O estereótipo é a cristalização de um único sentido, a coerção de outros, da ambigüidade, imposta por uma ideologia. Perrone-Moysés, em “Lição de casa”, posfácio à tradução de "a Aula", diz que toda a obra deste autor persegue, obstinadamente, o objetivo de caçar e fugir ao estereótipo. Isto porque o trabalho de Barthes é o de escritor, isto é, um trabalho que se efetua na linguagem; para ele e todos os escritores, transformar o mundo então é transformar a linguagem livrando-a de escleroses e resistindo a acomodamentos (1980:58). Literatura aqui é “o garfo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever” (Barthes:1980:17).

Não se pode destruir a língua ou viver no seu exterior, mas pode-se desviá-la de seus sentidos estereotipados, jogar com os signos. O que se denomina estereótipo pode ser considerado uma verdade universal que cada época pretende alcançar. A linguagem é um conhecimento que se atualiza historicamente no seio de uma dada comunidade. Mesmo a palavra conhecimento não tem um sentido único e é plena de significados através de elaborações filosóficas e outras, diz De Mauro (1969). No século XIX e ainda hoje no ocidente, por exemplo, a verdade bem estabelecida é um ideal totalitário, guiado por um pensamento essencialmente linear e um emocionar contraditório que ocorre, segundo Maturana (2004), num contexto de apropriação e controle orientado para obtenção de algum resultado particular, não observando as interações básicas da existência. Precisamente, um estereótipo.

É preciso ainda lembrar que para Barthes as forças de liberdade que estão na literatura não dependem da pessoa civil ou da posição política do escritor nem do conteúdo de sua obra, depende unicamente do trabalho de deslocamento que exerce.

Mas quando o que se pretende é considerar a literatura escrita por mulheres, melhor seria perceber a escrita como decomposição, a arte como multiplicidade e diversidade de sentidos, como contendo as ambigüidades e todos os tons sombrios. As condições da prática também merecem outro tipo de análise, pois, como mulheres, as escritoras têm outra perspectiva, que depende de sua situação na sociedade, e, portanto, outras expressões. Pretender, ou exigir, que as mulheres sejam levadas em conta modifica o que se estuda e também o que é relevante investigar, ao mesmo tempo em que politicamente desafia a segmentação disciplinar existente (Pollock:1999).  

 A literatura escrita por mulheres, especialmente nos séculos XVIII e XIX, faz parte justamente da tentativa de destituir a língua dos mecanismos de poder coercitivo estabelecido ao se opor aos estereótipos culturais. Tentativas de operar nas margens ou nas brechas da linguagem. “Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua” (Llansoll:1990:113), diz ainda hoje a poeta escritora. E uma outra poeta, nos idos dos setenta, nos alertou para que nos levássemos a sério, parássemos de repetir o mesmo, senão morreríamos; sugeriu nos livrarmos de Encantações,

“ritmos pelos quais temos nos movido, irrefletidamente, e resgatar a nós mesmas, preservar-nos para o silêncio, ou a escuta atenta, desobstruída de oratória, fórmulas, estribilhos, lamentos...” (Rich:1978).

E esse ato de buscar novos ritmos passou pelo resgate de escritoras do passado, por uma re-visão com olhar atento de suas obras, a leitura do texto a partir de uma nova direção crítica como ato de sobrevivência. Deixar essas mulheres falarem, nos dizer quem são e quem foram, para reparar, segundo Collin, injustiças, mas sobretudo perceber uma lacuna teórica.

E isto não só pelo silêncio imposto às mulheres, a sua exclusão, mas também porque a construção de gênero é ao mesmo tempo o resultado de um processo de representação e de auto-representação. Trata-se então não só de descobrir o passado, mas de encontrar uma nova forma de se relacionar com ele.

O presente, quando conta com o apoio do passado, é mil vezes mais profundo que o presente quando nos pressiona tão de perto que não se pode sentir mais nada, quando o filme da câmara só produz impressão na vista” (Woolf:1924).

Ao lado do trabalho de decomposição de estereótipos um trabalho construtivo que passa, prioritariamente, pela questão da transmissão a partir de uma aposta pelo início e o fragmento. O que se consegue assim depende ao mesmo tempo da visibilidade no âmbito publico de nossas ações e da persistência em transmitir o que foi recuperado, do próprio ato de relatar. Visto que a trama do relato confere unidade e inteligibilidade ao que de outro modo seguiria sendo uma seqüência insuportável de meros acontecimentos, sem tentar defini-los, esses novos fragmentos do passado nos obrigam a todo momento a re-pensar-nos, a modificar o nosso relato.

Então, as pérolas de misoginia, sempre citadas e nunca esquecidas pelos articuladores de opinião, poderão aparecer como são, jóias falsas e, em seu lugar, talvez possamos colocar novas pedras, novas jóias, fios de pérolas verdadeiras. Enfim, talvez se trate simplesmente de dar aos fragmentos arrancados de seu contexto e re-ordenados, o vigor de pensamentos novos para que tenham força sobre o presente.

É minha convicção que a crítica feminista deve fazer todo o possível para recuperar o potencial emancipatório dos textos que lê e relê. As várias vozes ouvidas, as várias línguas, permitem a liberação de intenções semânticos culturais e emocionais da hegemonia de uma linguagem única e unitária. Na linguagem unitária da história da arte não há lugar para as mulheres apesar do fato de terem existido inúmeras artistas.

A pesquisa de Pollack e Parker mostrou que as definições sociais do artista e da mulher historicamente seguiram dois caminhos diferentes que, recentemente, se tornaram contraditórios.

”A criatividade foi apropriada como um componente ideológico da masculinidade enquanto a feminilidade foi construída como pertencente ao homem, e, portanto, o negativo do artista.”(Pollock:1999:21).

Isso é apenas parte da questão. A oposição pejorativa entre homens que criam cultura e mulheres que criam filhos e são incapazes de serem artistas é também parte da questão de contribuições para as definições mais amplas dos papéis sociais. O que interessa ressaltar é que precisamos estar sempre atentas às definições fixadas pelas histórias da arte e literatura.

Para a artista mulher o processo de auto-definição, essencial à criação, era nos séculos XVIII e XIX, complicado por idéias como as citadas acima e pelas tramas dos textos escritos por homens. Anjo, musa, monstro, são as qualidades que pulam dos escritos do século XIX. Para poder escrever, diz Woolf, num texto já clássico (1985), é preciso primeiro matar o “anjo do lar”, os ideais femininos e estéticos que deixaram a mulher fora do campo da morte. E também seria preciso matar seu oposto, o monstro, a louca ou a bruxa, sempre à espreita. Matar o anjo e o monstro implica em dissecar essas imagens do feminino ideal que de tão ubíquas também se fazem presente no texto das escritoras. Aprisionadas pelas definições culturais e pelos romances, tiveram de escapar das definições de ninharia, nulidade ou vacuidade presentes no sonho masculino e adquirirem autonomia para propor alternativas à autoridade que as aprisionava (Gilbert e Gubar:1979: 64).

Para as mulheres que pensaram ser algo mais do que bonecas, ou inválidas, os textos masculinos colocaram problemas filosóficos, literários, metafísicos e psicológicos. Excluídas de participação efetiva na vida pública, da possibilidade de ocupar cargos, de assegurar dignamente sua sobrevivência e impedidas de ter acesso à educação superior, as mulheres do novecentos permaneciam fechadas dentro de casas e sobrados, mocambos e senzalas, construídos por pais, maridos, irmãos, senhores.

Viviam em espaços desenhados e planejados pela arquitetura masculina assim como estavam constritas e restritas – na feliz expressão de Gilbert e Gubar (1979) – nos Palácios da Arte e nas Casas da Ficção masculina. Julia Lopes de Almeida, em Eles e Elas diz que os homens teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos, grandes para escorrer os pecadilhos próprios e “extremamente miudinhas para nós; e o pitoresco é que nós mesmas nos convencemos disto!” (Almeida:1910:132).

       “Ah! o lar! a sagração da mulher...entretanto os homens, pelo menos meu marido...meu pai também...imiscuiu-se tanto na ordem da casa [...] afinal, quem faz, refaz, dá gostos, impõe vontades, não somos nós, pelo menos eu [...] Tudo é ele! Tudo! A casa é o mundo que está a seus pés, obediente a seu gesto [...] a minha virtude deve consistir em ser de fácil persuasão. Meu marido quer, meu marido não quer e acabou-se! Entretanto, as nossas opiniões são desencontradas; mas pela minha submissão concordamos infalivelmente! Ele nem se dá pelo sacrifício [...] É que o sacrifício da mulher é mudo, tanto quanto o do marido é barulhento [...] O meu dever de se boa esposa é calar-me, muito bem caladinha [...] para o sossego é preciso que eu dissimule...” (Almeida: 1910:131).

A personagem continua conversando consigo mesma e lembra que tem procurado ensaiar ao espelho uma fisionomia muda, mas qual! sempre que está diante do espelho sorri e só pensa em si! A avó de Lygia Fagundes Telles talvez pertencesse à geração de Julia Lopes. Quando mocinha, como tantas outras mocinhas, podia escrever seus pensamentos, estados d’alma em prosa ou verso em diários de capa dura, acetinada, com pinturas suaves de pássaros ou flores brancas; ou então em cadernos mais simples, com cromos de cestinhos floridos, animaizinhos ou crianças.

Mas, depois de casadas, nem pensar! Não havia sentido manterem um caderno e nele escreverem, pensavam logo que fosse bandalheira. Só lhes restava então usar o cadernão do dia-a-dia, o caderno de receitas e contas caseiras onde misturados ousavam escrever alguma lembrança ou confissão. São esses os cadernos caseiros da mulher goiabada. Como o da avó de Lygia Fagundes Telles, ou os das avós e tias de Pedro Nava, como os cadernos de Helena Morley, ou de minha avó Norma e até os de Cora Coralina, doceira premiada e poeta laureada.

“Vejo nas tímidas inspirações desse cadernão [...] um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na chamada carreira das letras – um ofício de homem” (Telles: 1980 e apud Averbuck:1982:49-55).

A conquista do território da escrita pelas mulheres no Brasil foi longa e difícil, assim com foi difícil derrubar as paredes da casa-prisão e da prisão-textual que as confinava tendo por motivos um corpo tido como frágil, enfermiço e um cérebro meio mole, ou menor, em todo caso incapaz de formular questões essenciais. No jornal O Garatuja, em 1889, Narcisa Amália escreveu:

       “A pena obedece ao cérebro, mas o cérebro submete-se antes ao poderoso influxo do coração; como há de a mulher revelar-se artista se os preconceitos sociais exigem que o seu coração cedo perca a probidade, habituando-se ao balbucio de insignificantes frases convencionais?”(apud Reis:1949:104).

Ninguém é realmente aniquilado porque a cultura a define como não-ser ou pelos textos literários. E muitas brasileiras não o foram, pegaram da pena e escreveram. A recusa em se deixar fixar, por sua vez, foi vista muitas vezes como “inconstância”, isto é, como mulher traiçoeira e enganadora. Mas, algumas escritoras enxergaram como positiva a inconstância, pois sugeria-lhes certo poder de criar-se, de se torna personagem múltipla, detentora de mobilidade ao contrário da tentativa de limitação que a máscara de inconstância nos textos masculinos lhe aplicava. Julia Lopes mostra a possibilidade de passar por toda a gama de cores, movimento-reconhecimento de humores:

“O preto: Sim, o preto não é mau... mas já o azul está pouco a meu gosto e o verde não me vai bem. Talvez o branco seja mais chique...não; o mais chique é o cinzento, apesar de dizerem que me vai melhor o marrom”. (Almeida: 1910:23).

Já a personagem Lésbia (1890), de Maria Benedita Bormann, ir às gargalhadas e imediatamente, “com a mobilidade de impressões que lhe era peculiar, tornou-se de súbito séria, fitando seu interlocutor com um olhar límpido e de estranha serenidade...! Noutra ocasião está lendo um livro e, de repente, segue a ´mobilidade de sua imaginação´, diz”. É desta mobilidade, dessa mudança brusca, dessa inconstância, que lhe advém a força criativa.

A vocação, ou a vontade de ter uma vida própria, requeria naquela época muita força de vontade e perseverança. As mulheres não estavam preparadas, não haviam sido educadas para escolher um caminho próprio que não fosse o serviço ao outro e o auto-sacrifício. Eram educadas para serem polidas e passarem desapercebidas. O prazer intelectual ou criativo era alguma coisa muito distante de seus horizontes e entrava em conflito com a subordinação e repressão imposta pelos modelos de feminilidade.

Os livros de moral e os tratados sobre o comportamento feminino faziam a escrita ou mesmo a leitura parecer algo egoísta afastando-a dos deveres e dos cuidados com os outros, de uma vida sem história própria. Talvez esses sejam alguns dos fatores que contribuíram para que no dezenove as escritoras se desculpassem continuamente, proclamassem sua falta de competência, sua humildade. E, ao mesmo tempo, seguissem em frente escrevendo o que pretendiam. Para isso, tiveram de lidar com a questão da obediência e da resistência e tiveram de superar a obediência antes mesmo de começar a escrever. Entre os cadernos caseiros e as publicações um abismo precisava ser ultrapassado. E muitas o fizeram, tomaram da pena e escreveram. Mais uma vez é Narcisa Amália, no O Garatuja, em 1889, quem nos descreve o processo:

       “É sobre a pressão esmagadora da desventura que a poetisa ou a pensadora anima-se a passar da Concepção à Execução – cerrados os olhos à multidão circundante – cerrados os ouvidos aos rumores circunstantes, a fim de evitar, no momento supremo, a hesitação ou o desfalecimento [...] Transposto o abismo que medeia entre esses dois hemisférios da arte, ela grita triunfante: Je suis une âme!

Narcisa Amália de Campos (1863-1895) foi poeta, jornalista, professora e diretora escolar. Quando publicou Nebulosas, em 1872, já era conhecida através de artigos na imprensa. Democrata, abolicionista, batalhou pela causa das mulheres e percebeu com acuidade os seus problemas específicos. Para ela, admiradora de Castro Alves e Victor Hugo, a Musa Inspiradora era a Liberdade que, sonhava, talvez num futuro não muito distante, permitiria aos povos, aos homens e às mulheres, viverem livres de violência, opressão e injustiças. Ora, era esperado das moças, e moças belas como era Narcisa Amália, que se ousassem tomar da pena, escrevessem poemas de amor. Não sociais, políticos ou revolucionários. E diz o crítico C. Ferreira:

“Mas perante a política, cantando as revoluções, apostrofando os reios, endeusando as turbas, acho-a simplesmente fora de lugar...melhor é deixar [o talento da ilustre dama] na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza [...] porque há o que quer que seja de desconsolador, quando se escuta a voz delicada de uma senhora aconselhando as revoluções...” (apud Reis:1949:123)

Essa é uma posição comum entre os críticos, os temas possíveis de serem abordados por uma mulher eles conhecem já que eles próprios os elencaram e vigiam de perto qualquer transgressão. Não deixam de apontar e criticar. Entenda-se que qualquer assunto que não seja amor e flores, era considerado transgressão. Outros críticos fizeram coro com C. Ferreira repetindo o mesmo refrão. Luiz Guimarães Júnior, em carta de 1873, diz a um amigo que acredita que a jovem bela e melancólica  de belos cabelos não deveria tocar em temas políticos pois então “flutua entre as lágrimas da elegia e o ímpeto desabrido da escola do partido. Em suas composições políticas parece que deixa de lado a alma, para tomar a baioneta, cousa pouco feminina” (Reis:1949:149-151). E a poeta, em “Invocação”, poema de seu livro, grita:

“Quando intento librar-me no espaço,

As rajadas em tétrico abraço

Me arremessam a frase – mulher...”

 

Para uma mulher na época, a afirmação do eu poético era bastante difícil. E a poeta se diz tímida, lívida, faminta, exaurida pela luta titânica para se firmar como poeta e jornalista.

“Ai que me sinto tímida!/ Quando me abala o desejo/ De descrever n’um arpejo...”

            Para Narcisa Amália a chama da poesia é igual à da idéia Livre, ao sopro do gênio do templo da inspiração, elas jorram de sombras móveis que trazem à luz ou talvez coloquem na luz que as canta. Os grandes temas românticos estão presentes em Nebulosas: a imaginação criadora, o desejo apaixonado e anseio pela inspiração e pelo poder de criar. O tema do livro conduz à mobilidade constante, à imaginação dinâmica, ao leite celeste que nutre e alimenta a alma triste da Peregrina que em “À Rezende”diz:

“Caminhei, caminhei sem ter descanso

E caminhei inda mais com nobre empenho

Penetrei no sagrado santuário

Onde o gênio em delírio arrasta o lenho...”

A poeta foi homenageada por homens eminentes e intelectuais da cidade de Rezende que organizaram uma festa literária para oferecer-lhe uma lira de ouro, uma coroa de louros e uma pena de ouro. Houve também baile na Câmara Municipal, salva de vinte e um tiros anunciando sua chegada. O Imperador indo a Rezende fez também questão de conhecê-la pessoalmente e ouvir de seus lábios os poemas que apreciava. Narcisa Amália sagrou seu canto ao feminino e da poesia tirava sua força como se lê em”Spes Sola”, de 1880:

Não, teu culto ideal eu não abjuro,

Musa dos livres que no espaço imperas!

Dei-te as rosas das vinte primaveras,

Dou-te o presente e...sagro-te o futuro!

............................................................

-Musa, que abriste-me o sorrir, primeiro –

Que encheste-me de flroes o regaço,

Sê me na terra o amparo derradeiro.”

Ao fazer uma homenagem ao jornalista José do Patrocínio revela que enxergava um grande poder na imprensa: “a palavra emociona, o livro instrui ou deleita, só o jornal cava, revolve, afeiçoa as mais endurecidas camadas intelectuais. A sua ação é lenta, mas contínua...” Narcisa Amalia tentou viver como jornalista, como tradutora e escritora. Aos trinta anos era famosa, apreciada e cultuada. Demonstra erudição estando a par não só da literatura européia como também dos desenvolvimentos e acontecimentos no campo da política e das reivindicações feministas.

Sua auto-afirmação custou-lhe, como ela mesma conta, a saúde. Não conseguindo se sustentar como jornalista, foi para o Rio de Janeiro, tornou-se professora primária. Porque silenciou, porque sua pena de ouro não mais escreveu, não se sabe. Em artigo de 1889, publicado em A Família, diz que a violenta oposição que um artigo anterior seu despertara fizera-a pensar que não se servira da pena Malat e sim de um estilete perigoso que “feriu certo e fundo”. Afirma que gostaria de continuar escrevendo mas,

“colheu-me de surpresa a nevrose cardíaca, enfraquecendo-me a energia, inutilizando-me absolutamente para as lutas da inteligência, para as pugnas incruentas mas extenuantes da imprensa”.

A luta constante para exercer a profissão, para a atividade da escrita, era extenuante para muitas mulheres. Narcisa Amália viveu mais trinta e poucos anos. Morreu, cega e paralítica, em 1924, tendo deixado, como desejava, seu nome registrado na história literária. (Telles:1998).

Que a jornada profissional era extenuante, já afirmara Nísia Floresta (1810-1885), escritora e educadora pioneira:

“Não sentindo nenhuma espécie de dor física, meu vigor natural se extenua assim num langor geral que toda a energia de meu espírito tinha dificuldade de superar” (Duarte:1995)

Diagnosticou e batalhou pelos problemas das mulheres. Advogou a participação da mulher nas lutas e na política. Republicana e abolicionista, transferiu-se para o Rio de Janeiro onde abriu um colégio e escreveu na imprensa. A oposição não tardou e ela viajou para a Europa onde viveu muito apreciada por intelectuais e escritores de renome. Morreu na França.

Em 1890, é Josefina Álvares de Azevedo (1851-?), dramaturga e fundadora do jornal A Família quem escreve:

“É tristemente desanimadora a contingência das brasileiras [...], ainda não é possível nem mesmo utilizar a sua inteligência. Que diriam por ai de algumas escritoras que se reunissem para formar um Clube, que não se destinasse a dar bailes, a suar as sedas farfalhantes e a rasgar as botinas incomodativas que martirizam dia e noite as nossas patrícias? [...] Seria uma loucura só pensar nisso” (apud Bernardes:1983:170)

Pouco se sabe sobre a vida desta escritora que nas últimas décadas do dezenove assinou uma série de publicações. Fundou A Família em 1888 em São Paulo e no ano seguinte transferiu-o para o Rio de Janeiro. Pelo que escreveu percebe-se que foi abolicionista e republicana, desenvolveu intensa campanha pela emancipação da mulher. Acreditava ser um absurdo o principio da autoridade na família estar com o homem, pois considerava a mulher mais inteligente.

Era favorável ao divórcio, ao voto e à elegibilidade da mulher. Confiava que breve teríamos o mesmo complexo de igualdade da América do Norte. Lia muitos periódicos estrangeiros, correspondeu-se com ilustres norte-americanos. Para sustentar-se foi professora primária. Em 1893 encenou uma sua peça, O voto feminino, representação noticiada por jornais parisienses. Ignora-se como terminou a vida ou mesmo o que fez depois de 1897, ano em que publicou Galeria Ilustre, livro onde traça a biografia de mulheres eminentes à moda dos livros sobre homens notáveis.

Poetas, jornalistas, seresteiras-compositoras como Chiquinha Gonzaga, dramaturgas e memorialistas, as mulheres foram também romancistas. O romance moderno focaliza personagens masculinos numa trajetória pública que estava vedada às mulheres. Na sua forma ideal segue o herói de classe média através dos obstáculos que surgem em seu rumo para uma melhor posição. Quando as heroínas ascendem, elas o fazem através deles. As tragédias também focam o herói cuja vontade férrea domina ou rebela-se e o torna nobre e vulnerável. Os heróis cômicos têm aventuras picantes, escapadas e aventuras. Nas novelas de detetive também só os homens perseguem criminosos pelas ruas e decifram casos difíceis. Mas o gênero romance era mal visto como leitura para moças, considerado pernicioso e perigoso.

As mulheres podiam até construir romances masculinos, com heróis e tudo o mais mas percebendo talvez que isso exigiria uma duplicidade de sua parte, várias escritoras tentaram outras estórias. Nelas percebe-se uma certa estranheza e um aparente isolamento, e talvez estes sejam traços comuns na luta das mulheres em busca de um espaço maior no Palácio das Artes, pensam Gilbert e Gubar. As mulheres produziram obras literárias que são em certo sentido palimpsestas, obras cuja aparência esconde ou obscurece níveis mais profundos e menos acessíveis, menos aceitáveis, de significados. Realizaram uma literatura conformando e subvertendo padrões que encontraram.

Uma maranhense, Maria Firmina dos Reis publicou, em 1859, Ursula, pela tipografia do Progresso, em São Luis. A autoria consta, nesta primeira edição, como sendo “uma maranhense”. Mais tarde foi identificada. Nesta época a capital do Maranhão era dominada culturalmente por helenistas e latinistas de valor. É difícil saber com exatidão qual foi a formação de Reis já que colégios para meninas eram pouquíssimos. Mas de um modo ou outro se educou o que se percebe pelas traduções que fez do francês.

Nascida em 1825, filha ilegítima viveu numa família extensa com a mãe, a avó, entre outras mulheres. Foi professora concursada e muito querida pelos alunos e por toda sua cidade, Guimarães. Reconhecida como Mestra Régia, lecionava na casa onde morava como era costume então. Aposentou-se depois de trinta e quatro anos no magistério e um pouco antes ainda instalou uma classe mista e grátis o que, para a época, foi um empreendimento ousado. Quanto a sua aparência ela mesma se descreve em anotações, de 1863, em um caderno goiabada:

“de uma compleição débil, e acanhada, eu não poderia deixar de ser uma criatura frágil, tímida, e por conseqüência, melancólica.[...] Encerrada na casa materna, eu só conhecia o céu, as estrelas e as flores que minha avó plantava com esmero.”

Os que a conheceram com oitenta e quatro anos a descrevem como sendo pequena, parda, rosto arredondado, cabelos crespos e grisalhos presos na altura da nuca. Nessa época ainda escrevia durante horas. Em alguns de seus apontamentos que chegaram até nós, podemos ler que quando jovem era ambiciosa, sonhava com um futuro radiante. Por trás da mulher plácida havia uma criatura atormentada, sofrida. O mundo “espelho impassível” desfez seus sonhos. No entanto, ela participou da vida intelectual maranhense, escrevendo na imprensa, publicando livros, organizando antologias. Foi também compositora e, segundo a tradição popular, musicou os Versos da Garrafa atribuídos pelos antigos a Gonçalves Dias, poeta nacionalmente aclamado. A tradição juntou assim dois maranhenses muito diferentes que nada indica terem se encontrado jamais.

            “São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas torrentes de inverno semelham o oceano em bonança calma...”

assim se inicia o romance Ursula que narra os amores e desventuras de uma moça do campo e um bacharel em Direito formado em S. Paulo. Entrelaçada ànarrativa a estória de vida de escravos da fazenda do vilão que ainda guardam lembranças da vida na África, da travessia num negreiro e da chegada à escravidão. Presa também está Ursula, não por correntes reais, mas presa a cama da mãe paralítica e perseguida pelo tio vilão.

Apaixonado pela irmã, o vilão comprara as dívidas do cunhado que logo morrera, para se apossar da amada, reduzir mãe e filha à miséria e mante-las só para si. Ursula e o amado, que um dia por lá surgira montado num belo cavalo, tentam fugir, mas são capturados. O jovem morre, Ursula enlouquece depois de amaldiçoar o tio que roído pelo remorso também morre.

O que mais distingue esse livro não são os temas românticos e sim o tratamento dado à questão do escravo. A autora não fala do escravo em geral, figura abstrata, mas o individualiza através de duas personagens que tem estórias, sentimentos e idéias próprios. Túlio se torna amigo do bacharel porque “as almas generosas são sempre irmãs” é um agente importante da trama, pois toma iniciativas que modificam a vida das outras personagens. Suzana, por sua vez, representa a guardiã da cultura africana, tem uma ética própria e por ela se guia. Ela verte lágrimas como “tributo de saudade” à sua vida em liberdade enquanto as esposas locais, todas vítimas dos maridos, derramam lágrimas de impotência por não sabe como agir, por não serem ouvidas.

O fim dos personagens só poderia se a morte pois, romantismos à parte, não havia lugar no Brasil de então para a amizade entre o bacharel e o escravo que libertara, para uma jovem sem dote com uma mãe paralítica a seu encargo e para os africanos que seguiam seus códigos mesmo perdidos em terra estranha. Devido à escravidão custou para o escravo se torna personagem.

A partir de 1870, cresce a presença do escravo nos livros na mesma medida que crescia o “perigo negro” em meio às camadas ricas do Império quando o padrão das plantações começa a se distanciar dos novos valores burgueses em ascensão. Vítimas e algozes de Joaquim Manoel de Macedo é de 1869, dez anos posterior ao livro de Firmina dos Reis. Retrata senhores ingênuos e gentis e escravos sempre à espreita fazendo feitiços, tramando mortes, envenenamentos. As vítimas haviam se tornado algozes.

É nesse contexto que se pode apreciar melhor a abertura proporcionada por Maria Firmina dos Reis que também escreveu um conto, A Escrava (1887) onde descreve a rede subterrânea de abolicionistas organizados que ia de São Luis até o Rio de Janeiro escondendo escravos fugidos e comprando-lhes a liberdade. Outro texto importante de Reis é Gupeva, uma narrativa do encontro violento entre raças, indígena e européia.(Telles:1987)

Nas últimas décadas do século XIX são várias as mulheres que escrevem em jornais e publicam livros no Rio de Janeiro e outros pontos do Brasil. Maria Benedita Câmara Bormann (1853-1895) foi uma delas, e das mais interessantes. Nascida em Porto Alegre, cedo mudou-se com a família para o Rio de Janeiro onde viveu e casou-se com o tio materno, José Bernardino Bormann, engenheiro militar, herói da guerra do Paraguai e também escritor.

Conta Inez Sabino que teve educação esmerada, tocava piano, cantava e desenhava. Falava várias línguas e sabia conversar com brilho e elegância. Escreveu sob o pseudônimo Délia em vários jornais como Cruzeiro, A Gazeta da Tarde, A Gazeta de Notícias, O Pais crônicas e folhetins alguns dos quais se tornaram livros. Seus títulos são nomes de mulher, Celeste, Madalena, Aurélia, Angelina, Lésbia ou aludem a mulheres como Duas Irmãs e Uma vitima.

            “A mulher ama e não calcula, desvive-se no carinho e no afeto”, escreve em Lésbia. Este livro narra a transformação de uma moça comum, de alta sociedade, em uma escritora de sucesso. Narra os obstáculos que precisam ser contornados para que a transformação se dê. Esses obstáculos são postos pelas ilusões incutidas nas jovens, pela falta de preparo para a vida, pelo casamento, pelos amantes. Longa e profunda crise da qual sai a partir da leitura das Máximas de Epíteto e das meditações que se seguem. Avalia sua vida pregressa, recorda os fatos, os sofrimentos e decide escrever. Dirige-se “ao seu toucador de mulher faceira, até então devotado ao far niente, e, dali em diante, transformado em gabinete de estudo”.

Os sete primeiros capítulos narram a gênese e a formação da escritora. Nascida de si mesma, nela o dínamo da transformação é a curiosidade e o interesse pelo estudo que desde sempre possuíra. E a escrita, também sugerida em Epíteto, revive as agitações e dores para operar revolução moral de onde surgiria a serenidade.

E, a seguir, a personagem escritora começa a busca de editor para seu romance. Obtém sucesso e escreve outro e outro. Ganha na loteria o que lhe permite comprar um palacete só seu onde trabalha e vive com um homem ideal, seu parceiro em intelecto e alma. Dissabores são poucos, como boatos que provoca porque freqüenta redações e que encara como obstáculo a sua afirmação. E reflete:

“Não só o espírito brasileiro ainda se acha muito eivado de preconceitos, como também a maioria dos homens não vê com bons olhos essa emancipação da mulher pelo estudo e pela independência de opiniões. Em parte têm razão esses leões sem garras; se todas as mulheres se conflagrassem, elevando-se pela instrução, movidas pela ambição, copiando-lhes os defeitos e os móveis, passariam eles um mau quarto de hora. Mas nada receiem, a mulher ama e não calcula, desvive-se no carinho e no afeto e não ambiciona; portanto será sempre a mais fraca.” (apud Telles:1987:379).

Ao contrário dessas mulheres, a escritora tem uma vida “de escopo mais abrangente e envolve mais experiências do que o comum das mulheres”, diz no prefácio. Neste livro de formação de artista, a autora  estabelece ligação entre a busca da protagonista por desenvolvimento artístico, independência financeira e amorosa e a idéia de um local de trabalho próprio.

Este é um livro que entrelaça as relações e tensões entre a paixão pelo conhecimento – leitura e escritura – e a paixão erótica. A escritora vive com prazer e intenso sofrimento os prazeres da mente e do corpo. A fronteira entre vida e arte é rompida e a ação decorre da alternância entre realização pessoal e o eu artístico que deseja liberdade ilimitada.

Os temas deste livro, a saber: casamento, relações entre homens e mulheres, situação financeira, hipocrisia da sociedade, escravidão, mulher superior, estão presentes desde os primeiros romances dessa escritora. Em doses diferenciadas esses ingredientes formam o rol de suas preocupações, de suas reflexões. Talvez ela tenha sido, a par do pioneirismo da personagem escritora, uma das primeiras a mencionar entre nós a necessidade de uma educação sexual para as jovens como preparação para a vida. Estilo elegante, ironia, inteligência, capacidade de síntese fazem que seus romances sejam até hoje de agradável leitura. A frase colocada na entrada do escritório de Lésbia, tirada de um verso de Horácio, que dizia: "não morrerei de todo, uma parte de mim evitará Libitina", aplica-se também à escritora da personagem escritora.

Julia Lopes de Almeida (1862-1934) foi jornalista e autora de vinte e sete romances, livros de viagens ou aconselhamento. Quando em 1885 começou sua longa carreira de mais de quarenta anos como escritora ainda encontrou grande oposição, mas foi adquirindo renome e prestígio. Logo foi convidada a fazer parte do grupo de redatores de A Semana do Rio de Janeiro do qual faziam parte Olavo Bilac, Artur Azevedo e Filinto de Almeida com quem se casaria. Escreveu em vários periódicos e por mais de trinta anos em O Pais. Em suas crônicas fez campanhas em defesa da cidade, da educação da mulher, do divórcio, da exposição de flores assim como fizera a defesa da Abolição e da República.

Preocupada com a urbanização, seu modelo ideal era a cidade jardim. O morro de Santo Antonio não foi arrasado, conta um de seus filhos, devido àoposição levantada por ela nos jornais. Ela queria o morro ajardinado, como uma estrada circular e abrindo-se, em um dos lados, para a vista. No topo planejava um amplo jardim e, ao centro, dominando a cidade, um grandioso Parlamento. Esteve envolvida com o caminho aéreo para o Pão de Açúcar; o Mercado das flores foi obra sua. Foi ela quem teve a idéia e lutou para que hortênsias fossem plantadas na estrada para Petrópolis. Fez campanhas por instalações de creches e estava imbuída de uma missão pedagógica de melhoria das condições de ensino, do modo de vida, da mudança do papel social da mulher.

  Essa mulher que discutiu com prefeitos e urbanistas, que opinou sobre questões contemporâneas,pertenceu àLegião da Mulher brasileira de Bertha Lutz,  ganhou a vida como escritora tentou conciliar companheirismo e organização, lutas com o papel sagrado de esposa, mãe e dona de casa perfeita. A ambigüidade gerada por esses compromissos, avanços e acomodações surgem em seus escritos.

Nos romances, muitos dos quais obtiveram sucesso e várias edições, Julia Lopes de Almeida trata da cidade e do campo, dos costumes e do cotidiano, de cortiços e palacetes. Um aspecto marcante é a comunidade de mulheres que surge num livro em decorrência da bancarrota familiar, ou dos descalabros financeiros do marido, ou por motivos semelhantes. Em A Falência a perda do marido/pai não é drama, mas abertura para novas possibilidades de vida. A ação se passa na época das grandes especulações na bolsa, no Rio. A trama gira em torno de Francisco Teodoro, comerciante português enriquecido com o comércio de café.

Proprietário de armazéns, de um palacete e dono, segundo os preceitos burgueses, da esposa, um filho e três filhas. Desconfia que a esposa e o filho mais velho têm vida secreta. Além da empobrecida família da mulher, Francisco também sustenta uma filha bastarda do cunhado. A falência se insinua, sorrateira, desde o início do enredo até estourar na família de Francisco Teodoro. Este se suicida, o filho se casa com uma moça rica e se afasta. Sobram as mulheres entregues a si mesmas, sem preparo para sobreviverem. Julia Lopes de Almeida acreditava que só o trabalho e a educação poderiam fazer surgir o verdadeiro talento e a capacidade para a luta na vida cotidiana.

Em Correio da Roça, romance epistolar, a separação das esferas se confirma. Uma mulher com duas filhas empobrece devido aos descalabros do marido. Mudam-se para uma pequena fazenda. Estão imensamente infelizes. Mas uma amiga, do Rio de Janeiro, através de ativa correspondência vai instruindo-as a plantar, cuidar, colher, modificar as relações com a terra. As três mulheres começam a gostar do que fazem, tornam-se laboriosas, ativas e, finalmente, vitoriosas. O tema da pequena propriedade rural era muito caro a Julia Lopes. Fez campanha durante quarenta anos em defesa da pequena propriedade produtiva que pensava ser a redenção nacional. Obcecada por um método de produção racional e pela mulher como agente da transformação da sociedade. A estória é emblema de auto-suficiência, de re-educação, e cria sua própria realidade corporativa. As personagens acabam vivendo num lugarzinho remoto tentando uma transformação de códigos que, no entanto, permanecem intocados.

Em um de seus primeiros livros, A família Medeiros, escrito antes mas só publicado em 1899, a autora já defendia a idéia da pequena propriedade, contrapondo-a à grande plantação escravagista. A narrativa transcorre no momento de transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. Opõe descrições da miséria da vida dos escravos e dos colonos recém chegados à opulência da vida dos proprietários. O contraponto é a pequena propriedade, modelo de Eva, moça instruída e rebelde com idéias modernas, também para a produção com trabalhadores assalariados.

  Memórias de Marta (1885) foi seu primeiro livro publicado. Aqui o elo comunitário está centrado em mãe e filha, ambas aplicadas e trabalhadoras vivendo em um cortiço do Rio Imperial. A mãe de Marta é engomadeira e como tal mediadora entre esse mundo e o da alta sociedade. Através dessas relações Marta consegue lugar na escola e se torna professora. Não há ascensão social, muito esforço e trabalho produzem uma melhoria mínima. E não há nenhum caso de paixão. A vida aqui é monótona, cinza, sem sobressaltos, sem ambições ou perspectivas. O que pode fazer uma moça feia e pobre nessa sociedade? Muito pouco. Precisou da ajuda assistencial de alguém da camada mais rica para conseguir um cantinho e uma profissão não muito rentável.

Em A viúva Simões (1897) mãe e filha são de classe alta, estão bem financeiramente. Mas se apaixonam pelo mesmo homem. No conflito entre as duas, a mãe experiente e conhecedora das artes da sedução e a filha inocente e ingênua, ambas enlouquecem e permanecem encarceradas nos anseios e culpas de uma vida sem nenhuma perspectiva a não se o casamento. Ficam literalmente trancadas em casa, as loucas da casa de janelas fechadas.

Além dos romances, Julia Lopes de Almeida escreveu para o teatro. Sua peça mais conhecida, A Herança, foi apresentada pela primeira vez em 1908. Também escreveu contos alguns considerados pelos críticos como seus melhores trabalhos. E escreveu um manual de jardinagem, Jardim Florido em 1922. Julia Lopes foi também palestrante de sucesso e viajou muito pelo país por conta desses compromissos e mais tarde, em 1922, juntou suas impressões em livro que teve vinte e duas edições.

Referencias:

 

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WOOLF, Virginia. Um quarto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

WOOLFVirginia. Moments of Being. UK: Harvest Books, 1985


nota biográfica:

Norma Telles, historiadora e cientista social fez doutorado na Puc-SP em 1987 com um trabalho sobre escritoras brasilerias do século XIX. Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais daquela mesma universidade. Estuda e pesquisa mulheres artistas dos séculos XIX e XX tema presente em seus cursos. Atualmente está terminando uma longa pesquisa sobre a escritora Maria Benedita Bormann, re-editando seus romances e escrevendo um ensaio sobre esta obra. Publicou Cartografia Brasilis (Loyola, 1984), Encantações (Nat Editorial,1998), Mínimas Rimas dos Ventos de Outono (Nat Editorial,2004) e inúmeros capítulos e artigos dentro os quais "Escritoras, escritas, escrituras" in Del Priori (Org) História das Mulheres no Brasil.

 

Labrys
estudos feministas/ études féministes
agosto/dezembro 2005 -août/ décembre 2005